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CAPÍTULO 3 RUBEM FONSECA EM CENA: ANÁLISE DO

3.2 LÚCIA MCCARTNEY

3.2.1 DISJUNÇÕES E CONJUNÇÕES EM LÚCIA McCARTNEY

Ao realizar a análise do conto e do episódio Lúcia McCartney se conclui que a prin- cipal das conjunções é a manutenção da história e dos personagens principais o que permite que a obra seja reconhecida na tela, mas prevê o exercício das adaptações, são muitas as dis- junções entre as obras.

Entre as diferenças mais marcantes que podem ser observadas está o cenário onde a obra se desenvolve. No episódio não existe praia e o cenário que representa a roda de amigos é substituído pelo ambiente noturno da boate Zum Zum. Um cenário inserido na trama para valorizar a posição social de José Roberto é o jatinho que aparece logo no início do episódio quando o personagem solicita uma garota de programa para Renê.

Outra disjunção importante se dá no modo em que são construídos alguns persona- gens, Chico Roleta, por exemplo, inexistente no episódio, serve para representar a vida social de Lúcia no conto e o grupo da praia que não sabe dos seus mistérios.

Isa também é construída na trama de uma outra forma, de uma maneira menos amar- ga que no conto e de forma bem humorada, encenada como uma personagem mais jovem a- miga e confidente de Lúcia que apesar de ter a mesma história do conto não é representada por uma mulher mais velha que trata Lúcia como criança, mas uma amiga ainda bonita, mais experiente e capaz de alertá- la.

No episódio os outros homens que fizeram parte do primeiro programa de Lúcia e José Roberto são encenados por Antônio Paulo que divide as primeiras cenas e serve para ilustrar a posição de poder que José Roberto ocupa:

‘Se você for da arraia miúda eu sou o cocô do cavalo do bandido’.

Antônio Paulo um dos personagens novos, inclusos na trama, apesar de aparecer poucas vezes serve como importante elemento de caracterização dos protagonistas. No come- ço da trama Antônio Paulo através das suas falas, ajuda a compor o ambiente em que José Roberto vive: uma rede de relações poderosas, alto ramo de negócios e prática da prostituição. No meio da trama este personagem solicita a ajuda de José Roberto ao argumentar que ele faz parte da alta esfera da república, indicando deste modo o poder do protagonista. O mesmo personagem também serve para situar as mazelas da profissão de Lúcia e o modo como ela repudia os seus clientes através da ironia como na cena inicial do encontro em que ela se ima- gina matando Antônio Paulo em que o espectador é cúmplice do desejo desta personagem.

Os tios de Lúcia, personagens com os quais ela vive os últimos momentos do conto, são suprimidos no episódio.

Outra disjunção presente na narrativa é o modo de apresentação da personagem Lú- cia. No conto, ela é apresentada a partir da narrativa que constrói descrevendo suas confidên- cias e é ela mesma quem diz seu nome na segunda parte, quando se apresenta para o coroa: “Já me chamei Lúcia McCartney”.

No episódio, a personagem é apresentada através da ação, na cena da boate e na cena descritiva, quando a câmera passeia pelo corpo de Lúcia enquanto ela se veste, tendo como trilha a música dos Beatles.

Em Lúcia McCartney, o espectador saberá o nome de Lúcia na primeira cena quando Chico roleta menciona o nome dela na boate:

‘Lúcia, quer dançar comigo?’ ‘O que é que tu faz na encolha quando tu so- me do mapa, hein Lúcia McCartney?’.

No conto o nome de José Roberto só aparece na parte III quando Isa menciona a li- gação do cliente. No episódio José Roberto já se apresenta ao dizer seu nome na cena 2 quan- do no seu avião particular ele liga para Renê pedindo uma garota de programa.

A indicação de que Lúcia e José Roberto se envolveriam acontece na quarta parte do conto, apesar de na terceira parte já haver a indicação de que não será apenas um programa:

Lúcia – ‘Alguma novidade?’

José Roberto – ‘Eu queria me encontrar com você’.

No episódio, no final do bloco 1, na última cena, é implantado o envolvimento dos dois, mas a situação é intermediada por Isa e serve de gancho para a história que continua no bloco seguinte:

Lúcia – ‘Que horas Zé Roberto Ligou hein?’ Isa – ‘Ao meio dia’.

Lúcia – ‘Mas ele falou se ia ligar de novo, deixou algum recado?’ Isa – ‘Disse. Mas afinal, quem é esse José Roberto?’

Outra dissonância é como o universo de fantasia de Lúcia é construído, no conto ela relata a história como se escrevesse num diário e é possível se perceber um rebuscamento na linguagem, na forma de escrever a história e inclusive no modo de organizá-la graficamente. O narrador personificado por Lúcia brinca com as palavras e com a composição das frases colocadas de tal forma que se solicita que o leitor monte os diálogos como pode ser observado no trecho em que se segue (p.224):

Você: É carioca? Gosta de quê?

Gosta de quê, poetas? Gosta de Kafka?

É a primeira miss que diz que leu Kafka e leu mesmo. leu Pessoa etc.?

Eu: Sou

Gosto de música e de poesia.

Gosto de Fernando Pessoa, Beethoven, Lennon & McCartney. Já me chamei Lúcia McCartney.

Gosto de Kafka também. Aquele pobre homem virando inseto! (Conto a história chamada Metamorfose)

não sou nem li. Um garoto me contou a história, chama-se Metamorfose. Faz sempre um grande efeito, nas conversas.

Li Pessoa etc.

No episódio a história é contada de um modo mais simples e neste caso não se recu- pera a linguagem rebuscada de Fonseca mesmo com a reprodução exata do diálogo, pois não há como se solicitar do telespectador a montagem do diálogo, a organização da estrutura, pois já vem organizada no roteiro e a partir daí é apresentado em imagens.

Como foi abordado anteriormente, é possível transpor a narrativa, mas difícil e des- necessário é transpor o discurso. Para exemplificar, vale ressaltar que o diálogo da escolha das garotas de programa no conto e no vídeo tem o mesmo conteúdo, mas não o mesmo discurso. No conto, entre os clientes é recriado por Lúcia:

A moreninha tem um ar melancólico que me seduz. E a loura é um ser es- plêndido, cheio de luz que me atrai como se eu fosse uma libélula. (“Lúcia McCartney”, p.243)

No episódio, o diálogo é mostrado através da câmera e acontece entre Antônio Paulo e José Roberto:

A de cabelo solto me lembra uma atriz de cinema mudo, sem falar que Arle- te é a deusa do..., a outra com trança me lembra Dominique Sandart um anjo de candura, mas eu garanto que por traz daquela áurea angelical existe uma mulher capaz de cometer as piores torpezas.

O mesmo acontece no que se refere à escolha de Lúcia e o tipo de ojeriza que ela tem de paulista é construído de um modo diferente nas duas obras. No conto ela dá um depoimen- to:

‘Eu não gosto muito de paulista, eles são todos ignorantes e brutos e acham que resolvem tudo com dinheiro. Torço para o paulista não me escolher. Ele me olha e quase enfio o dedo no nariz para ele ficar com nojo’. (“Lúcia Mc- Cartney”, p.243)

No episódio ela dialoga com Arlete:

‘Tenho horror a paulista, paulista é tudo grosso, acha que pode comprar tudo com dinheiro. Depois eu li num jornal que a pior forma de solidão que existe é a companhia de um paulista’.

No momento em que Lúcia está com o paulista, no quarto, também há diferenças no discurso, apesar dos acontecimentos narrados serem muito similares. No conto, Lúcia descre- ve os acontecimentos:

‘Eu não quero fazer isso’, diz ele tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos, ele sempre dizendo que não quer, mas me papando assim mesmo. (“Lúcia McCartney”, p.244)

No episódio, o telespectador acompanha através da câmera o diálogo entre Lúcia e José Roberto:

Lúcia - Vamos para o quarto?

Lúcia – ‘Você quer que eu tire a roupa?’ José Roberto – ‘Você quem sabe...’

José Roberto – ‘Lúcia, você pode tirar a roupa?’

A forma que a narrativa intelectual é construída é praticamente a mesma, a garota que gosta de Kafka e tem o nome de Lúcia McCartney. No conto, é através de um diálogo entre Lúcia e o cliente, que acontece na parte II, antecedendo a ida dos dois para o quarto que Lúcia se apresenta para o personagem e para o leitor:

‘Já me chamei Lúcia McCartney’. (“Lúcia McCartney”, p.244)

No episódio, esta referência é feita através de um diálogo entre Lúcia e José Roberto, na cena antecedendo a ida dos dois para o quarto:

“Sabe que eu já me chamei Lúcia McCartney”.

É possível perceber após a realização da análise das duas obras e a percepção das dissonâncias existente a analogia na produção do sentido devido à manutenção dos elementos básicos do fio narrativo como a história contada, a temática que as obras tratam e os principais personagens que protagonizam as duas narrativas. Nos dois casos Lúcia é uma garota de pro- grama jovem que se envolve com um cliente mais velho. Ela tem uma vida misteriosa, nem todos sabem que ela é garota de programa. Ele é misterioso no discurso que constrói, na rela- ção com Lúcia e na profissão indefinida. Lúcia vive com Isa com quem divide as confidencias de um amor que ela cultiva, mas não é correspondido e acaba em abandono. A história da prostituta abandonada e sozinha se repete, assim como Isa, Lúcia acaba sozinha, mas decide retornar a sua vida antiga.

Realidade nua e crua, violência moral e psicológica: prostituição, abandono, idéia de suicídio fazem parte dessa trama protagonizada na TV e que como a maioria das obras de

Rubem Fonseca, não há redenção ou saída para a situação que o personagem vive. Lúcia idea- liza uma paixão romântica enquanto o que existia de fato era uma relação de sexo e negócio, portanto o encontro amoroso dos dois estava fadado ao fracasso.

As citações de Fonseca a outras obras artísticas podem ser observadas também na Lúcia exibida na TV, não só na referência aos Beatles, mas também na cena em que Antônio Paulo liga para José Roberto de um bordel que o personagem denomina de rendez-vous japo- nês, chamado “La Chinoise”, mesmo nome do filme de Jean-Luc Godard, de 1967.

No que diz respeito às gravações e ao tipo de imagem, na maioria das vezes a câmera está em movimento, há poucos planos fixos. Os recursos de câmera e montagem estão a servi- ço da subjetividade dos personagens. Uma das inovações de movimento de câmera é quando esta realiza uma panorâmica de 360 graus, ou seja, roda sobre o próprio eixo, acompanhando em plano próximo Lúcia e José Roberto, que andam em círculos.

Como conclui Angélica Coutinho, em Todas as Lúcias do mundo, é possível dizer que, no plano do conteúdo, as Lúcias de Rubem Fonseca e Geraldo & Talma são análogas. As alterações ocorreram no plano da expressão (2001, p. 28). Enquanto no conto apenas a histó- ria de Lúcia e José Roberto é o bastante para fazer a narrativa existir, na adaptação para a TV buscou-se montar uma estrutura, criando novas histórias para dar ritmo ao episódio, mas é a trama entre os dois a responsável pelo reconhecimento da narrativa.

Pode se concluir, a partir desta análise, que, mesmo diante de tantas conjunções entre o conto e o episódio, cada uma dessas obras apresenta suas particularidades na narrativa. Co- mo são as semelhanças entre o enredo que permitem a identificação da obra matriz, vale res- saltar que o tom fonsequiano foi transposto para a tela, não apenas através dos acontecimentos da narrativa, mas no tipo de atmosfera construída durante o discurso audiovisual, garantindo a funcionalidade dramática da obra.