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2.2. Aporte Metodológico de Análise e Técnica de Coleta de Expressões

2.2.2 O Dispositivo de Análise

Tendo em vista que a Análise de Discurso propõe-se a trabalhar nos limites da interpretação, a perspectiva teórica da Análise de Discurso vem a complementar os apontamentos teórico-metodológicos até aqui apresentados, no sentido de que há uma possibilidade de diálogo entre os pressupostos já discutidos a partir da Antropologia da Experiência e por meio da teoria das Representações Sociais. Isso porque a Análise de Discurso (AD), ao considerar os processos de produção de sentido, realiza uma articulação entre sujeito, história e linguagem através do discurso produzido. Para isso, o campo teórico da AD constrói um olhar próprio sobre as concepções que entrecruza. Considera o descentramento do sujeito, que passa a ser concebido como universal e ao mesmo tempo particular, dialogando com o conceito norteador desse estudo, no qual o sujeito é tomado como social e individual. Também, indica a relativa autonomia da língua ao considerar a sua ordem interna, mas, sobretudo, as condições externas que determinam as formas como essa é articulada, ou seja, o modo com que uma fala ao ser produzida é atravessada pelas condições históricas, pelo contexto de produção (BRANDÃO, 2004; ORLANDI, 2003; PINTO, 1999).

Na teoria da AD a linguagem passa a ser articulada ao social. Assim, extrapola analiticamente a autonomia das regras internas da língua ao considerar fatores externo. A língua é vista enquanto a base a partir da qual se materializam os sentidos produzidos pelo sujeito sob dado contexto histórico. Partindo do pressuposto acerca das condições históricas de produção, a AD traz para a discussão o conceito de ideologia como “mecanismo estruturante do processo de significação” (ORLANDI, 2003, p. 96) – tangenciando a idéia de Representação Social como mediação, enquanto saberes situados na história através dos quais outros sentidos são formulados; também margeando a discussão de Michel de Certeau sobre a formalidade das práticas, ou seja, o universo simbólico não-dito que orienta as formas de fazer carregadas de sentido. Continuando, a língua representa a condição material de existência do discurso. Todavia, a apreensão do sentido não se esgota na análise da estrutura lingüística, visto que há por traz da realização do discurso uma rede de sentidos partilhados que circula no âmbito social influenciando nas formas de conceber os discursos.

Diante dessa posição, há uma aproximação entre língua e fala no sentido de que a observação analítica não busca as regularidades internas da língua, mas os sentidos que, a partir de determinada conjuntura histórica, se materializam através da base lingüística, posta em circulação através das falas, da constituição do discurso. A partir desse viés, o discurso passa a representar o objeto de estudo central da AD.

Estudiosos passam a buscar uma compreensão do fenômeno da linguagem não mais centrado na língua, sistema ideologicamente neutro, mas num nível situado fora da dicotomia saussuriana. E essa instância da linguagem é a do discurso. [...] O ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos é, portanto, o discurso (BRANDÃO, 2004, p. 11).

Michel de Certeau (1994) também reflete em torno da língua e da fala, pensando a relação entre estrutura discursiva e sentido posto em circulação através do discurso. Argumenta que o código lingüístico seria o mesmo na sua estrutura para todos os indivíduos de uma sociedade. No entanto, afirma o teórico, haveria diferentes formas de praticar esse código, de colocá-lo em movimento. Essas formas de fazer, as maneiras de falar e articular as palavras, por exemplo, expressariam na sua materialidade as marcas e os sentidos presentes no contexto histórico sociocultural no qual estão inseridos os sujeitos que realizam essas práticas. Existiriam, então, diferentes formas de fazer envoltas por sentidos que justificariam esses modos de praticar a língua, nesse caso, mesmo sendo significados não sabidos pelos sujeitos. Debate que vem ao encontro do posicionamento teórico-metodológico central da AD situado por Michel Pêcheux (1997) acerca da discursividade como estrutura e acontecimento.

Nos estudos discursivos, não se separam forma e conteúdo e procura-se compreender a língua não só como estrutura, mas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento a forma material é vista como acontecimento do significante (língua) em um sujeito afetado pela história (ORLANDI, 2003, p. 19).

Nesse sentido, “a análise de discurso não se interessa tanto pelo o que o texto diz ou mostra, pois não é uma interpretação semântica de conteúdos, mas sim em como e por que o diz e mostra. Costumo dizer que a ela interessa explicar os modos de dizer” (PINTO, 1999, p. 23). Conforme define Orlandi (2003) o que se coloca é como esse texto significa. A partir desses indicativos fica evidente o discurso enquanto uma prática social (ORLANDI, 2003; PINTO, 1999), acontecimento, e não puramente como uma estrutura lingüística – o discurso é “um processo em curso. Ele não é um conjunto de textos, mas uma prática. É nesse sentido que consideramos o discurso no conjunto das práticas que constituem a sociedade na história” (ORLANDI, 2003, p. 71). Toda essa discussão aproxima-se da visão teórica desenvolvida no campo da Antropologia da Experiência no que diz respeito à constituição das expressões e sua performance; quando aquelas são postas em movimento, praticadas, performadas, dando circularidade aos sentidos produzidos a partir de determinadas condições histórico- socioculturais. E vem a dialogar também com a discussão sobre a construção da realidade e os processos de interpretação. Sobre a AD, Orlandi salienta:

Ela se apresenta como uma teoria da interpretação no sentido forte. Isso significa que a análise de discurso coloca a questão da interpretação, ou melhor, a interpretação é posta em questão pela análise do discurso. [...] O que faz efetivamente a Análise de Discurso: ela interroga a interpretação (ORLANDI, 2001, p. 22).

Ainda na teoria da AD o olhar paira sobre os processos de produção de sentido, apoiando a análise não apenas no contexto histórico que se inscreve no discurso e que o conforma, mas também na circunstância de produção do discurso em si. Nesse processo de produção discursiva a memória exerce papel de interdiscurso, pois é a fonte que carrega o universo simbólico através do qual as palavras ganham sentido, mesmo que esse universo esteja esquecido. É esse esquecimento que atribui a aparente unicidade dos sentidos que o sujeito introduz através do discurso, quando pelo outro lado dessa aparente singularidade existe um arcabouço de sentidos produzidos no campo social que no discurso materializa-se.

O interdiscurso é todo conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas façam sentido. E isso é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na minha memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras (ORLANDI, 2003, p. 34).

No âmbito das circunstâncias imediatas de produção do discurso, é preciso que as palavras façam sentido tanto para o sujeito que o produz e quanto para o seu interlocutor. Dessa forma, outra questão é posta: a capacidade do indivíduo de antecipar a posição do outro, posicionar-se e então formular um discurso de acordo com as circunstâncias imediatas de produção. Há, portanto, a evidência de relações políticas e um universo simbólico partilhado entre aqueles inseridos no processo de produção do discurso. Fica claro, também, o fato de o discurso ser produzido na inter-relação.

De forma mais ampla, considerando o contexto histórico, a concepção de formação discursiva torna-se “básica na Análise de Discurso, pois permite compreender o processo de produção de sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no discurso” (ORLANDI, 2003, p. 43). As formações discursivas “representam no discurso as formações ideológicas” (ORLANDI, 2003, p. 43), em outras palavras, remetem à “expressão cristalizada da visão de mundo de um grupo social” (BRANDÃO, 2004, p. 92). Desse modo, a formação discursiva determina o que pode e deve ser dito em uma conjuntura sócio-histórica.

toda FD [formação discursiva], no universo do gramaticalmente dizível, circunscreve a zona do dizível legítimo, definindo o conjunto de enunciados possíveis de serem atualizados em uma dada enunciação a partir de um lugar determinado. Ao fazer isso, ela circunscreve uma zona do não-dizível, definindo o conjunto de enunciados que devem ficar ausentes do seu espaço discursivo; delimita, dessa forma, o território do Outro que lhe é incompatível, excluindo-o do seu dizer (BRANDÃO, 2004, p. 93).

Portanto, sempre o que é dito poderia ter sido enunciado de outra maneira, mas não o é em decorrência da posição social em que se encontra o sujeito dentro de uma conjuntura histórica específica. Ainda, uma mesma palavra pode ter sentidos distintos na medida em que se inscreve em diferentes formações discursivas; por exemplo, a palavra Terra tem sentidos diferentes para um proprietário rural, para um sem terra e para um índio, pois “as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem” (ORLANDI, 2003, p. 43). Assim, considerando os lugares específicos em que se situam os sujeitos dentro de uma conjuntura histórica dada, os usos e sentidos das palavras variam de acordo com as perspectivas ideológicas presentes no contexto de produção. Essas diferentes perspectivas representam o bojo no qual sentidos são construídos, culminando na estruturação do próprio discurso. Ao mesmo tempo em que a ideologia cristaliza-se através do discurso, o conforma criando formações discursivas específicas – “todos esses usos se dão em condições de produção diferentes e podem ser referidos a diferentes formações discursivas” (ORLANDI, 2003, p. 45). Vale ressaltar, ainda, que a formação discursiva não é homogênea, mas apresenta contradições. Ainda, pode haver no discurso uma polifonia de formações discursivas que constituem uma formação dominante ou que se constituem em contraste a outras formações discursivas. Essa polifonia foi identificada como uma dispersão do sujeito e do texto que esse produz (ORLANDI, 2003).

Partindo desses pressupostos, Eni Orlandi (2003) apresenta os princípios da práxis analítica do discurso. De acordo com a autora, o pesquisador deve criar um dispositivo de análise de acordo com a investigação que propõe, criando um recorte específico sobre a totalidade de sentidos que um discurso carrega, garimpando apenas aqueles significativos à análise. Nesse sentido, salienta Orlandi (2003) que o discurso enquanto objeto de análise pode ser interpretado de diferentes formas, variando de acordo com o recorte proposto. O que vem ao encontro da perspectiva construcionista acerca da ciência enquanto uma prática social e ela mesma como uma forma específica de construir a realidade (FREZZA; SPINK, 2004).

Assim, a prática analítica realizada através de um dispositivo de análise insere-se no campo da interpretação por duas vias: por um viés, o discurso analisado faz parte de um processo de construção de sentido e é ele próprio uma interpretação; por outro lado, o

pesquisador reconstrói esse discurso ao analisá-lo, criando uma interpretação científica sobre o objeto analisado.

O que permite a interpretação do pesquisador sobre o discurso é o corpus teórico desenvolvido. A teoria permite o deslocamento entre o analista e o objeto de estudo – o corpus teórico torna-se a mediação que permite o acesso ao objeto de análise, viabilizando a criação de uma interpretação, ou seja, uma leitura analítica sobre a interpretação sujeita à análise. O corpus teórico é utilizado em um movimento dialético incessante entre o material de análise empírico e a possibilidade de interpretação criada pelo pesquisador, apoiado em um campo teórico específico.

O texto representa o material empírico sobre o qual o pesquisador debruça-se com o aporte do dispositivo teórico de análise para construir uma interpretação científica. Contudo, a análise do discurso não pode ficar restrita à superfície lingüística, pois essa superfície é empregada apenas enquanto suporte para a criação do objeto discursivo através do qual, então, torna-se passível de compreensão o processo onde a ideologia textualiza-se. Esse critério metodológico é decorrente dos pressupostos teóricos constitutivos da AD.

Se, por um lado, a AD surge na França na década de 1960 a partir de um prisma estruturalista, sob o qual a análise estava focada nas formas de organização dos elementos do texto (mantida atualmente na linha filosófica americana), já na década de 1980 o panorama intelectual francês avança através de uma crítica ao próprio estruturalismo por deixar em suspenso a dimensão simbólica (PÊCHEUX, 1997). De acordo com Michel Pêcheux (1997) essas duas perspectivas trazem diferentes formas de trabalhar sobre a materialidade discursiva – a estruturalista diz respeito às práticas de leitura de arranjos discursivo-textuais; por outro lado, a segunda remete às práticas de análise da linguagem ordinária. Nesse último caso, é posto em evidência o esforço de ir além da descrição da estrutura discursiva ao buscar interpretar a rede simbólica que a envolve. Para isso, Eni Orlandi (2003) esclarece os passos metodológicos da AD. Na orientação metodológica da autora, o pesquisador passa por dois momentos distintos, interdependentes no processo analítico:

O primeiro seria o instante em que a superfície lingüística é trabalhada teoricamente de modo a construir o objeto discursivo, ou seja, a conversão do dado empírico em teórico. O pesquisador deve analisar o que é dito, como é dito e em que circunstâncias de produção – modo de construção, estruturação, circulação de sentidos e gestos de interpretação. A partir desse primeiro recorte, o pesquisador contrapõe essas formas de dizer a outras formas possíveis, desconstruindo a possibilidade enunciativa. Assim, acaba por construir o objeto discursivo ao passar do texto para o discurso.

Pronto para a segunda etapa de análise, diante do objeto discursivo construído o pesquisador deve lançar mão das formações discursivas perceptíveis a partir dos vestígios teoricamente levantados. Ao relacionar as formações discursivas, que permeiam o discurso, com o contexto histórico e com universo simbólico que orienta as formas de interpretar o pesquisador alcança o processo discursivo e as formações ideológicas, situadas em um determinado contexto histórico, que atravessam esse processo e influenciam nas formas de constituir o discurso.

A partir dessa demarcação metodológica e dos princípios de investigação desse estudo, para tratar as expressões coletadas através das entrevistas em profundidade e aquelas presentes nos materiais coletados dos produtores do turismo, segue abaixo um quadro representativo do dispositivo de análise criado para analisar o material referido.

QUADRO 1

DISPOSITIVO TEÓRICO DE ANÁLISE

PROBLEMA DE PESQUISA

Em que medida as Representações Sociais de atrativo turístico, enquanto parte constitutiva das mediações simbólicas inerentes ao turismo que direcionam os olhares interpretativos sobre o local no contexto da experiência turística, influenciam nos sentidos atribuídos ao local tanto por aqueles que produzem os produtos turísticos quanto por aqueles que os consomem?

Objetivos gerais: clarear o conteúdo simbólico das Representações Sociais de atrativo turístico; verificar a dimensão do compartilhamento desse conteúdo entre produtores e consumidores.

TEXTOS

Discurso dos gaúchos porto-alegrenses que visitaram a cidade de Buenos Aires; Discurso dos produtores do turismo: Viajar Hoy, material do Audio Guía Móvil e a reportagem Buenos Aires em Dose Dupla da Revista Viagem e Turismo.

CORPUS TEÓRICO

Corpus teórico através da qual se produzirá os objetos discursivos e a interpretação final dos discursos analisados. Categorias teóricas que possibilitam compreender os sentidos silenciosos nas formações discursivas.

CIUDAD AUTÓNOMA DE BUENOS AIRES; A COMPLEXIDADE DO ESPAÇO URBANO;

OS PRODUTOS TURÍSTICOS: RECORTES SOBRE A COMPLEXIDADE DO ESPAÇO URBANO;

MEDIAÇÕES CULTURAIS NO OLHAR DOS CONSUMIDORES GAÚCHOS PORTO-ALEGRENSES

PROCEDIMENTOS

1) Utilização do corpus teórico para transformar o objeto empírico em objeto discursivo, buscando o que se diz, como se diz, em que circunstâncias é dito e como poderia ser referenciado de outra forma.

2) Delineamento das formações discursivas e comparação dessas com a teoria das mediações culturais para compreender os sentidos não-ditos do processo de construção de sentidos (o processo discursivo).

3 INTERPRETANDO INTERPRETAÇÕES

Neste terceiro capítulo, desenvolvo a análise do material coletado a partir dos pressupostos teórico-metodológicos demarcados anteriormente e, juntamente, por meio das categorias de análise criadas sobre a complexidade do espaço urbano, a lógica de concepção dos produtos turísticos e a mediação da cultura regional do gaúcho porto-alegrense. Objetivando compreender a forma como as Representações Sociais de atrativo turístico influenciam nas percepções dos produtores e consumidores sobre o local vivenciado no contexto da experiência turística, em meio à análise, outra concepção emergiu: a de atratividade. Para expor o universo semântico no qual mergulha o conceito de atratividade do urbano, que aí surgiu, uma narrativa visual fez-se necessária, levando a adentrar no campo teórico da Antropologia visual.

O dispositivo de análise, sustentado no capítulo metodológico, foi utilizado na formulação dos objetos discursivos sem sofrer modificações ou complementações teóricas frente às especificidades de cada discurso analisado – peculiaridades advindas das condições de produção da textualidade de cada discurso. Se por um lado o texto dos produtores apresentava uma linearidade narrativa devido a sua produção técnica, facilitando a identificação do seu fio condutor e trazendo a precisão das informações; por outro lado, a textualidade do discurso dos sujeitos consumidores estava marcada pelos fragmentos da memória. Mesmo diante dessas diferenciações, os objetos discursivos foram criados através do seguinte ferramenta:

QUADRO 2

FERRAMENTA DE ANÁLISE Identificação do material

Fragmento do texto analisado. (Índice remissivo)

Análise sobre o que é dito, como é dito e como poderia ter sido dito (o que não foi dito). A dialética entre a materialidade do texto e a teoria.

Análise seguinte - continuação do fragmento anterior. Análise. Observações finais sobre a totalidade discursiva.