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2.1 Sobre o Universo em Análise

2.1.3 Mediações Culturais no Olhar dos Consumidores Gaúchos Porto-Alegrenses

Pensar a cultura gaúcha como uma das possíveis mediações culturais presente no discurso dos sujeitos entrevistados requer compreender o contexto específico no qual ela se forma como uma contraposição à identidade nacional brasileira e enquanto uma identidade cultural ligada à região platina, transcendendo os limites políticos territoriais impostos pelos países que cortam essa região - Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. É igualmente pertinente analisar a representatividade dessa identidade regional gaúcha inserida no contexto urbano em que vivem os porto-alegrenses entrevistados, visto que a figura do gaúcho remete à vida campeira da região do pampa platino.

Iniciando pela primeira questão pontuada, se por um viés os estereótipos entre Brasil e Argentina, conforme demonstra Gustavo Lins Riberiro (2003), são construídos a partir das diferenças entre esses dois países, em contrapartida, a imagem do povo do Rio Grande do Sul, representado pela figura do gaúcho, parece estar mais próxima do ideário identitário dos países platinos – Argentina, Paraguai, Uruguai – que do restante do próprio país, o Brasil. Que estrangeiro iria imaginar que em um país “tropical” como o Brasil existiriam temperaturas próximas a 0ºC? Isso porque muito pouco das características do Rio Grande do Sul, de modo geral, e do seu povo são representadas na construção da identidade brasileira. Nesse sentido, não é a toa que, por vezes, há uma maior identificação dos gaúchos do Rio Grande do Sul com os países da região platina, uma vez que há um compartilhamento da cultura gaúcha que nessa área formou-se, sem mencionar a proximidade geográfica. Tais proximidades não diminuem com a diferença dos idiomas – decorrente da presença de colonizadores portugueses no atual espaço territorial brasileiro e colonizadores espanhóis no outro lado da fronteira.

E nossa tribo é muito mais ligada ao rio da Prata do que restante do Brasil. Tenho a nítida impressão que quando saio em direção ao Uruguai e Argentina, só muda o idioma. O resto é tudo igual. Já quando viajo acima de São Paulo, continua o mesmo idioma, mas muda todo o restante. É outro país, sem a menor dúvida [...] Não temos nada a ver com o resto do Brasil e nem eles conosco (MESE, 1998, p. 54).

Essa passagem do texto Os gaúchos e o seu país, escrito pelo fotógrafo gaúcho Flávio del Mese e publicado na obra Nós, os gaúchos, deixa transparecer o sentimento de proximidade de gaúchos do Rio Grande do Sul com os países platinos, assim como o evidente distanciamento étnico-identitário do restante do Brasil. Questão que mantém vivo o sentimento separatista em alguns gaúchos – ou, no mínimo, certa diferenciação entre nós, os gaúchos e eles, os brasileiros. Ideário separatista presente na Guerra dos Farrapos pela independência Rio-Grandense, também chamada de Revolução Farroupilha, iniciada em 20 de setembro de 1835. Contudo, esse sentimento apresenta ambigüidades, pois a derrota dos farrapos, que fez com que a província de Rio Grande continuasse a ser território brasileiro, futuro Estado do Rio Grande do Sul, é um fato comemorado pelos gaúchos nos dias atuais na chamada Semana Farroupilha, realizada no mês de Setembro, promovida principalmente pelos grupos tradicionalistas. Sobre o sentimento separatista, esse desejo por autonomia está registrado no trecho a seguir, escrito pelo fotógrafo Leonid Streliaev, igualmente publicado em Nós, os gaúchos:

Nós, gaúchos, já tentamos pedir demissão dessa federação de vez. A República Rio-Grandense já existiu e sua capital era a cidade de Piratini. Tem gente lamentando até hoje que não tenha dado certo. Brincamos, às vezes, que os separatistas, ou farrapos, foram pouco ambiciosos, que podiam ter incluído em seus planos, para formação de um país independente e viável, o estado de Santa Catarina e o Uruguai, o que nos asseguraria, além da pujança dos nossos vizinhos do norte e a tradição cultural dos vizinhos do sul, algumas belas praias e uma boa representação na Copa do Mundo (STRELIAEV, 1998, p. 59).

Para Ruben Oliven (apud FIGUEIREDO, 2006), a questão acerca do pertencimento do território do Rio Grande do Sul ao Brasil é fundamental na constituição de uma identidade regional gaúcha, a partir da qual são evocas as singularidades e diferenças que contrastam com o restante do país e que não são representadas pela nação. A criação de uma identidade nacional pressupõe a dissolução das divergências culturais internas para que seja facilitada a centralização do poder e a circulação de mercadorias, concretizando a formação do Estado- Nação (BARBERO, 2003). Para isso, uma comunidade imaginada é criada de forma homogênea e coesa à custa da tentativa de supressão das identidades regionais descentralizadoras. Como um contraponto, o regionalismo “é um recorte da realidade das lutas simbólicas entre dominadores e dominados [...] qualquer unificação que assimile aquilo que é diferente encerra o princípio da dominação de uma identidade sobre a outra, da negação de uma identidade por outra” (FIGUEIREDO, 2006, p. 48).

Dessa maneira, a identidade gaúcha do Rio Grande do Sul desempenhou uma forma de resistência frente à tentativa de supressão das peculiaridades regionais realizada com a proposta de uma identidade nacional. A identidade do povo do Rio Grande do Sul tem outra peculiaridade: está enraizada em um território culturalmente delimitado, que transcende os limites territoriais políticos, uma vez que a região platina é caracterizada pelas fronteiras. Nesse contexto, Joana Bosak de Figueiredo (2006) demonstra que para compreender a formação social do Rio Grande do Sul é necessário considerar a sua inserção no contexto platino, uma vez que há nessa região “uma comunidade não apenas imaginada, mas real, que se define no embate com os governos centrais respectivos e que, apesar de aparentemente não ser vitoriosa no âmbito político, é extremamente profícua na questão cultural” (FIGUEIREDO, 2006, p. 52). Portanto, o gaúcho remonta a condições territoriais, políticas, históricas e culturais que aproximam os sujeitos mediados por essa identidade regional.

Se a diplomacia e a política esforçaram-se ao longo dos séculos em reforçar as fronteiras entre o Brasil e a Argentina enquanto limites, a cultura parece ter feito o percurso contrário, ao conseguir, na contracorrente, aproximar os territórios artificialmente afastados. [...] Nessa aproximação antinômica, a separação causada pelo Estado nacional configura um hibridismo original, de que decorre uma nova identidade, não pertencente a um ou a outro estado, mas às franjas e aos espaços constituídos no intervalo: o fronteiriço, ou seja, um mestiço transfronteiras (FIGUEIREDO, 2006, p. 57-9).

Diante desse contexto, penso que a cultura gaúcha é mediação passível de estar presente no discurso dos sujeitos entrevistados de modo mais expressivo que a mediação do universo simbólico constituído a partir da identidade nacional brasileira. Assim, algumas aproximações entre a identidade argentina e a dos “rio-grandeses” podem ser encontradas nos discursos analisados.

Contudo, na mesma media em que uma identidade nacional não é capaz de abarcar a pluralidade das culturas regionais, uma identidade regional demonstra igualmente insuficiente para representar os múltiplos fragmentos culturais das esferas locais abrangidas na unidade da região, principalmente no que diz respeito a diversidade sociocultural contida nos espaços urbanos. Nesse sentido, da mesma forma que o gaúcho não contempla a complexidade da vida cotidiana dos portenhos, sendo apenas um dos fragmentos culturais expressos nos espaços que compõe a cidade de Buenos Aires, a identidade regional do Rio Grande do Sul, formada sobre a figura do gaúcho, também representa parcialmente a complexidade cultural que marca o cotidiano dos porto-alegrenses.

De acordo com Ruben Oliven (1992), a figura idealizada do gaúcho exclui alguns grupos sociais presentes no território do Rio Grande do Sul e suas expressões culturais: os italianos, alemães, negros e índios. Por exemplo, Porto Alegre, no final da década de 1980, possuía cerca de 2.500 casas de culto onde eram praticadas atividades umbandista e de batuque – um número expressivo acerca das práticas da cultura negra (OLIVEN, 1992). Ainda, a figura do gaúcho gira em torno do cotidiano campeiro da região dos pampas, em um contexto rural. Todavia, mesmo distante de representar o cotidiano urbano, alguns costumes da cultura gaúcha estão presentes na vida dos porto-alegrenses: a roda de chimarrão, o churrasco, o carreteiro, as apresentações de danças gauchescas mantidas pelos Centros de Tradições Gaúchas - CTGs. Esses são aspectos capazes de demonstrar a pluralidade cultural existente na capital do Rio Grande do Sul, que acaba por conformar o cenário híbrido de Porto Alegre.

As questões apresentadas acima são pertinentes na medida em que falar do porto- alegrense é falar, ao mesmo tempo, da própria cidade praticada - seja porque seus espaços contêm as expressões dos múltiplos grupos sociais que por ela circulam; ou ainda porque os sujeitos que nela habitam são feitos dela na medida em que a cidade compõe as imagens dos quadros de suas memórias e das referências memoriais contadas por seus antepassados. Se não fosse assim, não seriam porto-alegrenses. As experiências da cidade constituem imagens, códigos, sentimentos, sentidos e imaginários através dos quais os sujeitos passam a se relacionar com o mundo. Portanto, a experiência de ser porto-alegrense poderá estar expressa no discurso dos sujeitos sobre a cidade de Buenos Aires ao tentarem classificar os lugares visitados a partir de referenciais específicos àqueles que vivenciam Porto Alegre. Questões que serão contextualizadas no decorrer da análise dos discursos de acordo com a sua relevância para a interpretação.

É importante pensar que ao mesmo tempo em que Buenos Aires pode parecer distante para os gaúchos porto-alegrenses por ser um destino internacional, a cidade está logo ali: tanto no que diz respeito à proximidade geográfica e identitária (região platina), quanto no que tange à flexibilidade do trânsito de fluxos na fronteira político-econômica, através do Mercosul. Ainda, há o indicativo de uma cumplicidade cultural entre os gaúchos porto- alegrenses e portenhos, possível através de uma identidade gaúcha compartilhada em parte, posto que os costumes gaúchos representam apenas um dos múltiplos fragmentos culturais que compõe identidade dos sujeitos (HALL, 2003) e a complexidade das cidades de Porto Alegre e de Buenos Aires. Nesse sentido, turistas gaúchos porto-alegrenses ainda podem deparar-se com características contrastantes do seu dia-a-dia na experiência turística da cidade

de Buenos Aires. O que remonta à busca pelo exótico – “o que chama atenção do turista, em qualquer uma dos casos, é o diferente e o inusitado” (SILVA, 2004, p. 32). Na perspectiva de Urry (2001), o olhar coletivo seria aquele cuja atratividade residiria nos grandes centros urbanos, locais públicos e aglomeração de pessoas.

A partir dessas discussões, procurei expor algumas características do grupo entrevistado, turistas gaúchos porto-alegrenses, sem desconsiderar que a complexidade da identidade do sujeito pós-moderno não se restringe aos recortes descritivos aqui apresentados. Ressalto, por fim, que os sujeitos entrevistados são de classe média.