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II. Revisão da literatura

4. Manuais escolares

4.2. Funções dos manuais escolares

4.5.1. Género

4.5.1.1. Distorções Sexistas

A selecção cuidada dos manuais escolares é uma acção fundamental para um processo de ensino-aprendizagem eficaz. Todavia, apesar da existência de um diploma alusivo à adopção e selecção dos manuais escolares (Decreto-Lei n.º 369/90), não se vislumbra qualquer referência quanto às desigualdades de género.

Enquanto docentes, ao realizarmos a tarefa de selecção de um material pedagógico como é o caso do manual escolar, será que temos em consideração o modo como estão representadas as mulheres e os homens? Será que temos presente a questão da igualdade de oportunidades entre sexos?

Talvez tenha sido no seguimento destas ideias, que Romão (1989) afirmou que “um material pedagógico só será bom, se não apresentar distorções de qualquer tipo, nomeadamente no que se refere às imagens femininas e masculinas” (p.5).

Segundo vários autores (Romão, 1989; Henriques e Joaquim, 1996; Pinto, 1999), podemos encontrar diversos tipos de distorções sexistas nos manuais escolares, quanto à invisibilidade, aos estereótipos, à selectividade e ao desequilíbrio, à linguagem e às imagens.

Invisibilidade

Refere-se à sub-representação ou omissão das mulheres e de informação relevante sobre elas nos manuais escolares. Pode ser detectada a partir do desequilíbrio entre o número de personagens femininas e masculinas presentes nas imagens, ou através do desequilíbrio entre as personagens femininas e masculinas em contextos, situações e actividades diversificadas (Pinto, 1999).

Aliás, pelas imagens e pelos textos presentes nos manuais, vemos que estes ignoram quase completamente todas as questões ligadas às mulheres e fazem-no

de diferentes maneiras: raramente mencionam os contributos das mulheres para determinada situação, acontecimento ou tema; reportam-se às mulheres apenas nas suas funções de mães ou de mulheres casadas, isto é, restringem a sua participação à vida familiar; lembram esporadicamente os papéis que algumas mulheres desempenharam ao longo dos séculos (Henriques e Joaquim, 1996).

Consequentemente, a invisibilidade das mulheres conduz ao fortalecimento do currículo oculto. Este, reflecte-se na ausência de modelos femininos positivos e fortes, com os quais as raparigas se possam identificar e desenvolver as suas auto- confiança. Acresce ainda que transmite às raparigas a ideia que as mulheres são menos importantes e que têm menos peso na nossa sociedade do que os homens (Romão, 1989). Por último, dá a ideia que os contributos das mulheres são sempre pontuais (Henriques e Joaquim, 1996).

Estereótipos

Este aspecto trata da atribuição a homens e mulheres de características e papéis sociais estereotipados do ponto de vista do género, fixando à priori as habilidades, interesses e potencialidades das pessoas (Pinto, 1999), como já referimos anteriormente.

Os estereótipos têm a ver com: a) a caracterização do comportamento, sendo geralmente os traços associados aos rapazes considerados mais desejáveis e positivos do que os associados às raparigas; b) a associação sistemática de cada um dos sexos a determinadas actividades; c) a associação sistemática de cada um dos sexos a determinadas ocupações, sendo as das mulheres em número muito mais limitado (Romão, 1989).

Veja-se que as mulheres são associadas a características tais como a beleza, sensualidade, debilidade, fragilidade. Quanto aos papéis sociais, são-lhes atribuídos os que as remetem para a vida privada, para o lar, ou para os sectores com menor importância social. Porém, este tipo de preconceitos, sem qualquer fundamento com a realidade actual, representa um desfasamento total com a dinâmica das sociedades contemporâneas, onde as mulheres se encontram em todos os sectores da vida científica, económica e política (Henriques e Joaquim, 1996).

Os estereótipos impedem os/as alunos/as de conhecer a diversidade, a complexidade e a evolução de qualquer grupo de indivíduos. Os/as alunos/as que só se vêm retratados/as de formas estereotipadas, podem interiorizar esses estereótipos e não conseguir desenvolver as suas plenas capacidades, de acordo com os seus interesses (Romão, 1989).

Selectividade e desequilíbrio

Os manuais escolares perpetuam as distorções quando apresentam apenas uma interpretação de um tema ou de uma situação. Neste caso, está-se a restringir o conhecimento dos alunos e das alunas quanto às múltiplas perspectivas que podem ser atribuídas a uma determinada situação (Romão, 1989).

Um manual escolar de História que mencione unicamente os feitos e contributos históricos protagonizados por homens, está a negligenciar uma importante fonte de conhecimento e cultura. Repare-se noutro exemplo. Um manual de EF que apresente apenas imagens masculinas na parte destinada à matéria de basquetebol, está a fomentar uma perspectiva limitada e desequilibrada desta matéria de ensino. Está a transmitir a ideia de que o basquetebol é praticado somente por rapazes e apropriado para eles.

Para Silva et al. (1999), se um manual escolar transmite ideias tais como “a menina vai ao ballet e o menino ao Karaté”, ou “a cozinha (…) para as meninas e o futebol (…) para os meninos”, então é considerado inapropriado porque veicula a separação dos sexos e pode provocar auto-censura. Se “ela” joga futebol pode vir a ser considerada “maria-rapaz”, porque este não é desporto para meninas.

Estes exemplos mostram de que forma se pode restringir o conhecimento dos/as alunos/as quanto às múltiplas perspectivas pelas quais uma situação específica pode ser analisada. Como resultado, os/as alunos/as têm uma visão limitada e desequilibrada no que respeita à contribuição e participação das mulheres, nos mais diversos sectores da sociedade (Romão, 1989).

Linguagem

A linguagem é o meio através do qual as distorções sexistas são mais evidentes. Esta é talvez, uma das formas de discriminação cuja presença é mais constante mas simultaneamente, é aquela que menos consciência se tem. A linguagem é adquirida espontaneamente ao longo do processo de socialização e como essa aquisição não é racionalizada, não é normalmente alvo de análise (Romão, 1989). Por isso, a linguagem afigura-se como o aspecto mais controverso de intervenção (Henriques e Joaquim, 1996).

Podemos detectar distorções sexistas pela presença de uma linguagem masculinizante. Conforme alude Villalva (2003), no sistema de género da língua portuguesa existem dois valores: o feminino e o masculino. Sempre que nos referimos a uma dada situação que inclui ambos os sexos, torna-se necessário

seleccionar um dos valores como referência. Assim, é sempre seleccionado o valor masculino, mesmo que a entidade protagonista nessa situação seja predominante, mas não exclusivamente feminina.

Comummente servimo-nos da linguagem universal masculina e nem damos por isso. Recorremos ao termo “Homem” para designar o ser humano homem e mulher; utilizamos o termo “alunos” quando nos estamos a referir aos alunos e às alunas. Servimo-nos somente do masculino para designar realidades sexualmente distintas e adicionalmente, como os termos são todos remetidos para o masculino, não damos visibilidade ao feminino (Henriques e Joaquim, 1996; Pinto, 1999).

Mas as distorções sexistas também podem ser assinaladas pelo uso de uma linguagem depreciativa em relação às mulheres ou a tudo aquilo que com elas se associa. Exemplos não faltam: “conversa de mulheres” para designar uma conversa sem conteúdo; “maria-rapaz” para designar uma rapariga que tem um comportamento considerado socialmente inapropriado para o seu sexo. Este tipo de linguagem leva a que as raparigas se sintam excluídas de um grande número de actividades, interiorizam uma imagem desvalorizada de si próprias e percam a auto-confiança (Romão, 1989).

Imagens

As imagens presentes nos manuais escolares devem mostrar e retractar homens e mulheres em diversos contextos sociais, em variadas actividades, em diferentes situações.

Nesta linha, as imagens podem favorecer o aparecimento de distorções sexistas ao padronizarem os contextos de vida do homem e da mulher, segundo estereótipos sexuais. As imagens que exibem rapazes em situações activas e de energia e mostram as raparigas em papéis passivos, ilustram o masculino e o feminino ligados aos tradicionais estereótipos comportamentais.

Não obstante estes factos, Martelo (1999) constatou que nos manuais escolares de Língua Portuguesa do 1º ao 4º ano de escolaridade, a imagem do masculino está superiormente representada relativamente à imagem do feminino. Por seu lado, Ferreira (2002) analisou 10 manuais escolares de Língua Inglesa e encontrou dados que apontam na mesma direcção: as imagens masculinas são as dominantes.

E a ter em conta o caso particular dos manuais escolares de EF, o panorama parece ser idêntico. O estudo de Marques et al. (2003) revelou que a imagem masculina predominava em 6 das 15 matérias analisadas – futebol, basquetebol,

andebol, atletismo, badminton e ténis – enquanto que a imagem feminina predominava somente nas matérias de ginástica acrobática, patinagem e dança.

Suponha-se que as alunas ao consultarem um manual escolar de EF são confrontadas apenas com imagens masculinas, na parte destinada à ginástica de aparelhos. Será que irão julgar que se trata de uma matéria também indicada para elas, ainda que a ginástica de aparelhos faça parte do programa da disciplina? Irão ter confiança para aprender as destrezas gímnicas que lhes serão propostas, mesmo que a escola esteja equipada em termos materiais para o efeito?

Mas o inverso também pode ocorrer. No contexto social acredita-se que as actividades rítmicas e expressivas são indicadas para elas. Um aluno educado neste contexto, se porventura depara com esta mesma realidade no seu manual escolar, irá interiorizar um sentimento positivo, que o leve a participar de forma activa e motivada?