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Atualmente, existem no mundo 70 países que ain- da consideram as relações homossexuais como crime. Desses países, em 44 a criminalização é válida para todos os gêneros e, nos demais, só para homens. E em seis, há a possibilidade de pena de morte previs- ta em lei (ver Ilga, 2019). Ao mesmo tempo, muitos países deixaram de punir oficialmente a diversidade

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sexual e de gênero. Em alguns, há leis que permitem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e que criminalizam a LGBTfobia. É crescente (pelo menos por enquanto) o entendimento da questão LGBT como pauta política e direito social. Nestes países, mesmo diante do recente retrocesso conservador na política institucional, constituíram-se espaços de maior tole- rância e igualdade e novas formas de conceber as ex- pressões sexuais não hegemônicas.

Não podemos negar que entre o capitalismo in- dustrial e imperialista do século XIX e os dias atuais houve uma mudança significativa na maneira como as sociedades ocidentais tratam a diversidade sexual e de gênero. Essa mudança se acelerou sobretudo a partir do final dos anos 1960, com o surgimento da segunda onda do feminismo e do movimento homos- sexual – conforme discutiremos no quarto capítulo. Esses movimentos eram a expressão política de uma mudança maior que se constituía em torno da luta pela liberdade e igualdade para mulheres e para su- jeitos LGBT. Tais movimentos, suas bandeiras e con- cepções já haviam se difundido e se estabelecido nos países capitalistas ocidentais quando se consolidou a fase neoliberal do capitalismo, no final dos anos 1970.

O neoliberalismo é mais visível como orientação e conteúdo das políticas econômicas e sociais, que pas- saram a ser desenvolvidos já no início dos anos 1970 no Chile, quando o país se tornou uma espécie de laboratório para sua implementação, processo que era garantido pela ditadura militar. No final da mesma dé-

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cada, ele se constituía como orientação hegemônica da ação governamental dos EUA e Inglaterra, voltan- do-se para a privatização do Estado e o combate aos direitos sociais e trabalhistas.

Em essência, contudo, o neoliberalismo é uma ideologia que se torna política econômica e social, alicerçadas no individualismo, na privatização e na meritocracia que interpelam as subjetividades, os va- lores e a cultura. Essa concepção envolve um processo disciplinador das pessoas, pautado na construção de que cada um/a é uma “empresa de si mesmo”, cujos passos devem ser planejados e analisados economi- camente no intuito de extrair a maior produtividade e lucro possíveis.

Na medida em que as lutas pela diversidade sexual e de gênero avançavam, o capitalismo neoliberal mos- trou que, neste momento histórico, é capaz de assi- milar (seletivamente) a pauta LGBT desde que ela se constitua como um nicho de mercado e que não se po- sicione politicamente contra a economia de mercado. Assim, essa pauta não pode ter um viés revolucionário, que procure de alguma maneira subverter as relações patriarcais e heterossexistas que herdamos dos nossos antepassados ou que questione a própria organização desse modo de produção e de reprodução social. O que importa é que a questão LGBT seja apropriada e reconduzida pela lógica da mercantilização e privati- zação de diferentes aspectos da vida.

Se esse recente nicho produz moda amplamente consumida e é capaz de ditar tendências, o que con-

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tribui para legitimar socialmente a expressão e a vi- vência LGBT, o acesso ou não a esse mercado divide, por outro lado, a população LGBT. O acesso pleno está disponível para um grupo seleto de gays e lésbicas das camadas mais ricas e que, em vasta medida, não contempla as travestis e transexuais. Além disso, a di- versidade sempre é vista como o “outro” diferente da norma social, que pode ser aceito ou não de acordo com o contexto, e o heterossexismo continua sendo uma forma fundamental de inteligibilidade da reali- dade social (Toitio, 2016, p. 75-76).

Ao mesmo tempo, é importante apontar que essas décadas de privatização neoliberal foram acompanha- das de certa “desregulamentação moral”, sobretudo nos grandes centros urbanos, na qual se expandiram “as possibilidades sexuais, mas também [se] promoveu novos tipos de conformismo”. O mercado gay pode ser grande, mas não é modelo de diversidade. A cons- trução desse mercado tem aumentado o estigma e a marginalização das pessoas LGBT, na medida em que cria certos padrões normativos, em que “pessoas com os corpos errados, com as roupas erradas, com as práticas sexuais erradas, com o gênero errado ou com a cor da pele errada são vistas como ruins para o

marketing e são frequentemente excluídas” (Drucker,

2017, p. 203).

Todo esse processo de assimilação neoliberal da questão LGBT gerou uma nova homonormatividade, nos termos de Susan Duggan (2002), que estabelece os parâmetros de uma assimilação baseada no consu-

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mo e na domesticidade. Essa homonormatividade não questiona, mas apoia as instituições do heterossexis- mo, como o casamento monogâmico e a lógica binária do gênero. A homonormatividade forjou a construção de uma cultura LGBT que procura se mimetizar com a cultura heterossexista, racista e classista, privilegiando especialmente gays e lésbicas cisgêneros, brancos/as, de classe média ou das classes ricas.

O capital pode assimilar a questão LGBT como forma de aumentar a exploração econômica a partir da desigualdade de sexualidade e gênero. Trabalha- doras travestis, transexuais, “bichas” afeminadas, “sapas” masculinizadas etc. estão constantemente em empregos precários e informais, porque não po- dem acessar uma série de empregos que garantem certos status sociais. O fato de fugirem muito do padrão heterossexista é uma desvantagem na hora de conseguir os melhores empregos; o que muitas vezes leva trabalhadoras/es LGBT a se submeterem a trabalhos estressantes, repetitivos e mal remu- nerados (como telemarketing, salões de beleza e atendimento em loja).

Além disso, a homonormatividade encaixa-se em uma dinâmica em que a desigualdade de gênero é camuflada pelas instituições políticas aparentemente neutras ao gênero. O Estado utiliza “o status marital para canalizar muitos benefícios a casais, especialmen- te aos mais prósperos, como seguro de vida e isenções de impostos sobre herança e ganhos de capital”. En- tretanto, a orientação neoliberal, que descontrói os

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mecanismos de proteção social e trabalhista, acaba “penalizando os casais e famílias atingindo despro- porcionalmente as pessoas da classe trabalhadora, de baixa renda e pobres” (Drucker, 2017, p. 204).

Essa dinâmica neoliberal é decisiva para intensificar a produção das desigualdades de classe, o que tem impacto sobre outras relações hierárquicas, intensifi- cando-as ao impor outras divisões e assimetrias. Con- tudo, Peter Drucker (2017) ainda nos lembra de que a luta pela diversidade sexual e de gênero – que para ele deve ganhar a forma de um radicalismo queer – deve ter não apenas um caráter antineoliberal, mas também anticapitalista. Isso porque o neoliberalismo não é apenas um conjunto de políticas equivocadas, mas o resultado da própria lógica de um capitalismo global em crise.

As crises do capital, que são constantes por alimen- tar o processo de acumulação, geram instabilidades político-ideológicas e abrem sempre a possibilidade de fortalecimento de forças políticas conservadoras e reacionárias. Com isso, os retrocessos nas conquis- tas LGBT e feministas são uma ameaça permanente, enquanto as relações patriarcais-heterossexistas con- tinuam sendo o fundamento hegemônico da constru- ção social do gênero e da sexualidade.

DIVERSIDADE SEXUAL