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Como acontece com todas as lutas sociais, a cons- tituição de um movimento organizado em torno da

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luta pela diversidade sexual e de gênero não se deu sem expressar outras contradições sociais e sem re- produzir outras desigualdades. No processo de cons- trução da identidade e do movimento homossexual, os homens gays tiveram maior visibilidade do que as lésbicas. Isso porque o capitalismo absorveu maior força de trabalho masculina e os homens sempre ti- veram maiores salários, de forma que a divisão entre esfera pública masculina e esfera privada/doméstica feminina mantinha as mulheres mais dependentes dos homens (D’Emilio, 1983).

Com a construção das grandes cidades, principal- mente os homens assalariados tinham a oportunidade de viver uma vida privada mais autônoma. Vindos do interior, de outros países ou vivendo “no armário”, os gays tiveram maiores oportunidades de construir es- paços de sociabilidade, onde podiam afirmar sua iden- tidade de forma legítima. Assim, como foi em torno da identidade e dos sujeitos gays que o movimento se constituiu e se consolidou, era muito comum a denomi- nação de movimento homossexual ou movimento gay durante as primeiras décadas de sua existência. Aqui, o termo homossexual não significava gay e lésbica, mas remetia na maior parte do tempo apenas à primeira categoria. Como eram maioria e tinham mais acesso às – e entendimento das – lutas políticas que se desen- volviam no mesmo contexto, os gays conquistavam a hegemonia da agenda e da linguagem do movimento.

E, no caso do movimento estadunidense, ao longo dos anos, para muitos grupos sociais (especialmente

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para negros, latinos e jovens), as campanhas políticas das organizações passaram a ser muito marcadas pelos valores brancos e de classe média, que adotavam, por exemplo, ideais convencionais como o relacionamen- to monogâmico; para algumas lésbicas, o movimento repetia o privilégio masculino evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com que suas reivindicações e experiências continuassem secundárias face às dos homens gays; para bissexuais, sadomasoquistas e transexuais, essa política de identidade era excluden- te e mantinha suas condições marginalizadas. Porém, processualmente, esses segmentos passaram a colocar em xeque a concepção da identidade homossexual unificada, que se constituiu na base de tal política de identidade e que mantinha esses segmentos na invisibilidade política (Louro, 2001).

Não que a constituição de uma “hegemonia gay” dentro do movimento, presente em todos os países onde surgiram essas experiências, fosse algo calcula- do. Antes, uma mesma categoria expressava práticas e identidades muito diferentes. Mas, ao mesmo tempo que abriram as portas para a luta da diversidade de identidades e vivências sexuais e de gênero, os ho- mens gays monopolizaram a construção das deman- das, linguagens, estratégias do movimento, por justamente terem maior possibilidade de trabalhar, estudar, construir espaços de sociabilidade e organi- zar-se politicamente.

A divisão sexual do trabalho, que remete a mulher ao espaço privado-doméstico e o homem para o espa-

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ço público-produtivo, possibilitou o protagonismo dos homens gays na organização do movimento político contra o heterossexismo. Por consequência, a voz e os interesses gays passaram a predominar diante dos outros segmentos, os quais construíam aos poucos uma identidade coletiva própria. Ao longo dos anos, muitas organizações mistas do movimento foram di- vididas devido às disputas de gênero. Muitas organi- zações feministas de mulheres lésbicas e bissexuais se constituíram, acusando o machismo dos companheiros gays. Estes também foram acusados de transfobia, o que contribuiu para a formação de organizações de travestis e transexuais. E o debate sobre o racis- mo e a desvalorização dessa questão no movimento também levou à formação de coletivos de negros e negras LGBT. Como acontece com a forte presença da LGBTfobia em outros movimentos sociais, as múltiplas desigualdades sociais não deixavam de atravessar o movimento, trazendo-lhe outros conflitos e dilemas.

Contudo, essas contradições não significavam que a luta no início protagonizada pelos gays não se cons- tituísse como luta antipatriarcal. Não apenas porque mulheres, travestis, trans, drags integravam, ainda que em menor número, o movimento homossexual desde o seu início, mas também no sentido de que a luta gay já era em si um embate contra as relações pa- triarcais de gênero. É importante pensar que gênero e sexualidade são categorias sociais diferentes e fun- dam (e são fundadas) por clivagens sociais diferentes. Porém, elas se constituem concretamente de forma

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profundamente imbricada: a construção hegemônica do gênero nos corpos só se efetiva com a construção do homem heterossexual e da mulher heterossexual. As expressões, padrões e linguagens se confundem: sexo, feminino, masculino, corpo, desejo etc. servem tanto para refletir sobre o gênero quanto sobre a se- xualidade. No imaginário social, romper com a he- terossexualidade significa também uma agressão às concepções normativas do que é masculino e o que é feminino. Quando uma pessoa grita pejorativamente na rua para outra “bicha” ou “sapatão”, não signifi- ca que esta pessoa esteja necessariamente se relacio- nando de forma afetiva ou sexual com uma outra (do mesmo sexo), mas na maior parte das vezes trata-se de um homem sendo feminino ou uma mulher sendo masculina.

Ao também desafiar as concepções normativas de gênero, as lutas LGBT sempre tiveram um caráter antipatriarcal. O patriarcado, como o conjunto das relações materiais e simbólicas de gênero, delega mu- lheres e LGBT à condição de grupos subalternos. A divisão sexual do trabalho, que separa os trabalhos e posições sociais que devem ser assumidos pelo ho- mem e os que devem ser assumidos pelas mulheres, apenas se torna eficaz com o heterossexismo. Homens e mulheres, com funções e posições sociais diferentes, se encontram na relação heterossexual, para constituí- rem família e ter filhos/as, que devem seguir o mesmo caminho. Assim, a mesma divisão do trabalho que cria dois gêneros diferentes e pressiona para controlar o

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corpo e o trabalho da mulher, cria também a heteros- sexualidade compulsória (Rubin, 1986).

Ao mesmo tempo, é preciso considerar que o he- terossexismo também produz as relações de gêne- ro. A heterossexualidade só adquire sentido dentro de uma relação entre opostos: um polo masculino representado pelo homem cisgênero e um polo fe- minino representado pela mulher cisgênero. Então, a heterossexualização do desejo requer corpos so- cialmente “coerentes”, pressionando para a produ- ção das relações e normas de gênero (Butler, 2012). O capitalismo moderno produziu uma forma cultural de compreender o gênero e a sexualidade que é ex- tremamente rígida, que impõe um padrão único de masculinidade, feminilidade e sexualidade. Mesmo que as lutas feministas e LGBT tenham modificado boa parte dessa realidade, a relação (estrutural) de desigualdade permanece. De toda forma, a luta por liberdade e igualdade construída hoje por lésbicas, trans, travestis, bissexuais, gays, intersexuais, queers etc. desafia a lógica social que organiza as relações de sexualidade e de gênero – que alguns denominam de heteropatriarcado (Fabbri, 2011).