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Primeira pancada

O TEMPO E O RISO DE MOLIÈRE

1.1 A França no século

1.1.3 Divertimentos, festas e espetáculos: o Teatro

Havia muito divertimento no reino de Luís XIV, não apenas na corte, mas na cidade, nas ruas, nos cabarés e cafés. Os espetáculos levados a essa vida noturna nas tavernas ou cabarés, representavam importante papel no século XVII, em Paris. Outra atração eram as

feiras, de onde surgiram os cafés, geralmente localizadas nos limites urbanos. Nelas também havia uma espécie de hierarquia social. A feira de Saint-Germain, por exemplo, era frequentada por um público mais elegante. A feira de Saint-Laurent, que funcionava nos dois meses seguidos à Festa de São Lourenço, atraía pessoas de todas as condições (o povo invadia a feira durante o dia e as pessoas de qualité [qualidade] apareciam, com suas carruagens, apenas à noite). Nas feiras, “todos os tipos de pequenos espetáculos recreativos eram oferecidos aos visitantes. Marionetes de um metro de altura representavam óperas” (WILHELM, 1988, p. 153). Tudo era vendido nas barracas, e as mulheres mais finas, usando máscaras – o que simbolizava uma grande aventura –, se faziam acompanhar de seus admiradores que lhes compravam presentes delicados, feitos pelos artesãos de Paris.

Para divertir o povo, também havia festas públicas, principalmente no início do reinado do Rei-Sol: “ „O povo se deleita com o espetáculo. Por esse meio prendemos seu espírito e seu coração, algumas vezes mais firmemente do que com recompensas e favores‟, escreve Luís XIV nas Instructions au dauphin” (WILHELM, 1988, p. 155). A festa mais comemorada era a de São João, com muitos fogos de artifício.

Mas o espetáculo mais festejado dessa época foi o teatro. O século XVII francês é considerado o século do teatro. “Acontecimento literário e artístico, uma representação dramática é também uma cerimônia, um rito social, prolongamento da corte ou dos salões” (LAGARDE & MICHARD, 1970, p. 89). Por isso, a literatura clássica e, por extensão, a vida social, encontraram no teatro sua maneira de expressão favorita.

Entretanto, mesmo com toda sua supremacia e efervescência, a cena teatral no século XVII não deixou de vivenciar o embate existente entre os antigos e modernos10: as peças teatrais ora poderiam apresentar o registro da ordem e da tradição ora registro da liberdade e da renovação. Segundo Costa (2009), a dissonância dessa cena teatral seiscentista se dá no início do século: “é inegável que já em inícios do século, sobretudo entre os anos de 1625 e 1631, eclode o confronto teatral entre partidários dos antigos e partidários dos modernos, entre aqueles que convencionalmente denominamos regulares e irregulares” (p. 63)11. E

10 Desde o início do século XVII, os signos do espírito moderno já apareciam, o que provocaria, à partir de 1687,

uma importante querela literária: a Querela dos Antigos e dos Modernos. Intelectuais franceses pertencentes à Academia de Letras debateram, por vezes asperamente, se deviam exaltar o rei Luis XIV, recorrendo às citações dos clássicos do mundo greco-romano ou se deveriam inspirar-se em obras mais próximas, da história do cristianismo ou do presente. Esta discussão abriu caminho para a crescente valorização do Moderno, cujos escritores reivindicaram a liberdade total de suas inspirações, opondo-se ao Antigo.

11 Esta autora discute os prefácios dos textos teatrais, os quais foram importantes ferramentas de crítica teatral, já

complementa afirmando que esses encontros e confrontos são observados como “operadores a reger toda a produção literária do século XVII francês, momento em que a diversidade das solicitações formais pressiona o cânone” (COSTA, 2009, p. 63-64).

Sendo assim, alguns autores dramáticos no início do século XVII mostram-se contrários e hostis às regras que entravavam a liberdade de inspiração. Eles, às vezes, ignoram as regras das três unidades e a separação dos gêneros, preveem o uso de vários cenários, misturam o trágico com o cômico. Houve os que mantiveram os preceitos clássicos.

Está-se diante de dois partidos bem definidos: de um lado, aquele que proclama a perspectiva hedonista da arte teatral e a estética da diversidade e da liberdade – princípios barrocos; de outro lado, aquele que privilegia a dicção teatral sustentada pela regra das três unidades (tempo, ação, lugar) - preceitos clássicos. Cumpre então dizer que barroco e classicismo – se se quiser empregar termos anacrônicos – coexistem ao longo de todo o século XVII, em um cenário que loca, lado a lado, liberdade e regra, espetáculo e ordem (COSTA, 2009, p.64-65).

Nesse contexto, teremos no lado dos que se diziam Antigos, os nomes de Alexandre Hardy e Jean Chapelin, sendo que para este não deveria haver diferença entre a coisa imitada e aquele que imita; além disso, ele considerava as regras como norteadoras do fazer teatral, mais especificamente, da tragédia; no lado dos Modernos, os nomes destacados são de Honoré d‟Urfé, François Ogier, André Mareschal, Du Ryer e Auvray. Costa (2009, p. 66) afirma que, com as intervenções desses modernos, o século XVII “não deixou de torcer o pescoço desse grande fantasma chamado verso alexandrino, de ridicularizar a norma do bom gosto e de jogar no limbo quase que todas as regras”.

A independência e a fantasia que caracterizam essencialmente a literatura barroca desenvolveram-se sobre a cena dramática desde o fim do século XVI até meados de 1640 do século XVII. Assim, entram em voga dois novos gêneros dramáticos: a tragicomédia e a pastoral. A tragicomédia, uma tragédia com desfecho feliz, carrega os sinais da modernidade barroca, pois se atribui uma maior liberdade de composição. É bastante movimentada, com temas modernos e romanescos. Pyrame et Thisbé (1621) de Théophile de Viau são exemplos desse gênero.

Os Modernos, contrariamente aos Antigos, procedem pois ao encômio da tragicomédia, pois que a consideram único gênero capaz de proporcionar, em razão de sua mistura de sublime e de grotesco [...]. de elegância e de trivialidade, de refinamento e de banalidade, a tão desejada varietas e, mais,

crítica francesa estava agitada com a publicação de uma série de prefácios que delimitavam perfeitamente o que era dos Antigos e o que era dos Modernos.

capaz de corresponder ao gosto, costumes e usos do século (COSTA, 2009, p. 71, grifo da autora).

Já a pastoral, imitada dos italianos, é uma peça de teatro encenada com um cenário bucólico, tendo os pastores como personagens e o amor como preocupação essencial.

Pierre Corneille (1606-1684) escreveu, primeiramente, peças cômicas como Mélite;

La Place Royale; Illusion Comique, em que o romanesco e o barroco se misturam. Entretanto, foram as peças trágicas que tiveram um maior sucesso, principalmente Le Cid (1636), em que há a exaltação da liberdade do homem, que coloca sua vontade ao serviço de um orgulhoso ideal de glória pessoal. Le Cid marca um momento chave na carreira de Corneille. É uma obra que apresenta toda a juventude, marcada pelo idealismo romanesco e pela diversidade de tons: o calor lírico, a grandeza épica, que se misturam com uma piedade trágica. Contém, além disso, uma importante novidade: Corneille penetra nas almas de seus personagens a fim de aprofundar o jogo complexo de sentimentos e paixões. Com isso, o dramaturgo introduz a verdade das pinturas das características dos personagens que será o mérito principal da tragédia francesa no século XVII. Corneille ainda escreveu outras tragédias: Horace, Cinna,

Polyceute. O teatro corneliano apresentará a fatalidade que imperava nas tragédias antigas. Contudo, em suas tragédias, o herói é o próprio responsável por seu destino. Encontraremos também a inverossimilhança como princípio fundamental de sua arte, porém ele lhe dará um ar de autenticidade, graças a uma hábil utilização da história, driblando a vigilância dos censores da época.

Com relação à linguagem,

Corneille, exaltando a grandeza humana, devia procurar uma linguagem à medida de seus heróis; assim se explica o tom solene e mesmo pomposo que ele os dava. Ao mesmo tempo, ele quis traduzir os profundos sentimentos que eles tinham: ternura, entusiasmo, ansiedade; e ele recorreu para isso aos recursos da poesia. Eloquência e lirismo, energia e efusão, tais são os dois aspectos principais de sua arte (CASTEX,1979, p.198, tradução nossa).

Jean Racine (1639-1699) ilustrou a fórmula antiga da tragédia, representando o homem acometido pelo destino. Ele criou seus personagens de forma miserável, sem força para lutar contra as paixões desenfreadas, que causam a perda do homem. A primeira tragédia escrita por Racine foi La Thébaïde (A tebaída – 1664) que, apesar de não ser o carro-chefe do autor, já revelava a crueldade implacável de seu gênio, pois mostrava a rivalidade entre os

irmãos Etéocles e Polinice de maneira intensamente trágica. Entretanto, será com

Andromaque (1667), a tragédia dos amores contrariados, que Racine irá triunfar como um dos maiores autores trágicos franceses. Segundo alguns historiadores, a doutrina clássica elaborada entre 1620 e 1660 encontrou sua perfeição na tragédia de Racine, pois ele apresentava fidelidade absoluta às regras, principalmente a das três unidades: lugar, tempo e ação. Porém, tratando-se dos espectadores de suas peças, dizia: “[...] A principal regra é de satisfazer e de tocar: todas as outras são feitas para alcançar esta primeira” (RACINE apud LAGARDE & MICHARD, 1970, p. 286). Ou seja, os espectadores deveriam consultar, primeiramente, seu próprio coração e não as regras. Mas é importante salientar que a satisfação de que fala Racine está intimamente ligada ao trágico, por isso ele procurou revelar a piedade e o terror, criando entre atores e público um sentimento de ansiedade e angústia.

Praticamente, todas as peças de Racine são inspiradas nos modelos antigos, contudo ele buscou apropriar-se daquilo que serviria melhor às suas tragédias. Além disso, respeitava as características de um personagem e os hábitos de um povo e de uma época.

Se Corneille e Racine insistiram no trágico, Molière – dramaturgo, diretor de teatro e ator – escreveu apenas comédias. Preocupava-se em divertir, em representar e em fazer representar, para sobreviver e assegurar a continuidade da sua troupe. Tratava-se, sobretudo, de levar ao palco espetáculos que agradassem ao rei e à sua corte.