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Primeira pancada

O TEMPO E O RISO DE MOLIÈRE

1.2 Molière, o palhaço que fazia rir o Sol

1.2.2 Rápidos olhares sobre o riso e a comicidade

Que signifie le rire ? Qu'y a-t-il au fond du risible ?21

Bergson Em uma das cenas do filme Marquise22 (1997), livremente inspirado na vida de Marquise Du Parc23, o ator René Du Parc (um dos atores da troupe de Molière e marido de Marquise) reivindica a sua condição de comediante, pois, como tal, segundo ele, não seria capaz de interpretar papéis trágicos: sua vocação e seu aprendizado só permitiam que se dedicasse à arte de fazer rir. Esse entendimento (ou essa condição) estava atrelado ao pensamento de “cristalização” da função (ou “talento”, para muitos) do ator que ou seria um ator trágico ou seria um ator cômico, nunca uma mistura dos dois. Molière, como o próprio filme apresenta, no início de sua carreira, buscou encenar e representar as tragédias de Corneille, e o resultado de suas encenações sempre tendiam para o cômico, provocando riso e gargalhadas. E, no entanto, quantas vezes as comédias de Molière roçaram as fronteiras do trágico?

Propp (1992) em seu estudo sobre comicidade e riso, afirma que o riso que zomba provém sempre do desmascaramento da vida interior e espiritual do homem. Para ele, muitas vezes esses defeitos necessitam de desmascaramento. Harpagon, personagem de O avarento, por exemplo, não tem consciência de seus defeitos. O avaro não tem consciência do ridículo a que se expõe. Ele não se dá conta da sua própria avareza. Na sua ânsia de não gastar e de guardar o seu dinheiro, torna-se incapaz de perceber o que dele pensam os que o rodeiam. Não tem consciência do que o seu comportamento obsessivo provoca. Ele age naturalmente e julga que os outros são uns esbanjadores exagerados. “O riso surge quando essa descoberta chega de repente, de modo inesperado, quando ela tem o caráter de uma descoberta primordial [...] e quando ela adquire o caráter de um desmascaramento mais ou menos repentino (Propp, 1992, p. 175).

O ridículo contrasta com o que está estabelecido – norma, decência, ordem e natureza. Contrasta, pois, com os princípios embasadores da normalidade, da dignidade e das leis, como explica Cabral (2007, p. 98), em O riso subversivo:

21 “O que significa o riso? O que existe no fundo do risível?” (tradução nossa).

22Marquise é também a história de um século de teatro. Conta as rivalidades entre os autores e entre os

comediantes. Conta ainda a ascensão de uma mulher, o que para a época era algo surpreendente.

23Marquise du Parc foi uma comediante francesa, nascida em 1663 e falecida em 1668. Integrou a troupe de

Talvez por isso que Molière, ao fazer a defesa do seu Tartufo, no prólogo especialmente escrito após cinco anos de censura, tenha sido tão veemente quanto à função da comédia em corrigir os defeitos, os vícios humanos: „Majestade é costume ouvir-se que a comédia corrige divertindo; uma plateia pede-a, / Não para só para sorrir de máscaras fingidas / Que moram noutros mundos e mostram outras vidas, / Mas para descobrir, atrás das fantasias, / A verdade que roça em nós todos os dias. / Cada fala de ator é censura e conselho. Quando vos sentais lá, estais diante do espelho‟.

O riso está no homem. Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. A comicidade está naquilo que vemos ou nos surpreendemos como humano. Em um animal poderá estar contida uma expressão do que é humano daí o riso que alguns de nós vemos nas expressões de cachorros, macacos etc. Mas sempre é o toque humano que existe nas coisas que nos provocam o riso.

Além disso, “o riso tem significado e alcance sociais, de que a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação particular das pessoas à sociedade” (BERGSON, 2001, p. 100). Ora, nenhum dramaturgo espelhou-se na vida, no homem, na sociedade à sua volta mais do que fez Molière para compor suas obras. No seu teatro, os vícios da sociedade e do homem são expostos de forma, muitas das vezes, ridicularizada. Mas os personagens molierescos ignoram seus defeitos.

Logo, uma personagem de natureza cômica é cômica justamente por não enxergar a sua comicidade; ela ignora esse estado, pois, na realidade o cômico é algo inconsciente. Além disso, “rimos todas as vezes que nossa atenção é desviada para o físico de uma pessoa, quando o que estava em questão era o moral”24 (BERGSON, 2001, p.85).

O cômico dito de caráter resulta da não sociabilidade do personagem – no nosso caso, um avarento – à qual se acrescenta a insensibilidade do espectador. A insensibilidade acompanha o riso. Para rir, o homem deve se afastar da afeição e da piedade para com seu irmão. Basta lembrar-nos daquela máxima, que já deve ter sido proferida por muitos de nós: “perco o amigo, mas não perco a piada”. O homem, ao se distanciar da vida e de tudo ao seu redor, perceberá o quanto os muitos dramas transformar-se-ão em comédia.

24Na montagem de O avarento, realizada pelos Palhaços Trovadores, Harpagon foi construído com um barrigão

e uma leve corcunda, justamente para mostrar que sua avareza era algo que o fazia engordar, mas também que trazia a ele certo peso, como se seu próprio corpo trancasse em si todo o seu dinheiro.

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o sério e o cômico já existia desde os primórdios da humanidade na vida social. A prática do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimônias oficiais das comunidades antigas.

Muitas comédias têm como título um substantivo comum: o avarento, por exemplo. O título dessa comédia de Molière designa alguém que é possuído por um vício. O vício cômico pode unir-se às pessoas, mas nunca deixa de conservar existência independente e simples. É o vício que continua sendo personagem principal. Por isso a avareza de Harpagon sobressai. Rimos de seu estado físico, de seus gestos, palavras e confusões, mas a avareza está ali, sempre em uma primeira camada. O vício se diverte a arrojar personagens de carne e osso com seu peso e fazê-las rolar consigo ladeira abaixo. Mas na maioria das vezes as irá tangendo como se tange um instrumento, ou as irá manobrando como títeres.

E eis a tarefa do escritor, do autor cômico: fazer com que nós conheçamos esse vício, fazendo com que consigamos enxergar o seu percurso de elaboração do texto e de seus personagens:

[...] a arte do poeta cômico consiste em fazer-nos conhecer tão bem esse vício, em introduzir-nos, a nós, espectadores, a tal ponto em sua intimidade, que acabamos por obter dele alguns fios da marionete que ele movimenta; é então nossa vez de movimentá-la; uma parte de nosso prazer vem daí. Portanto, também nesse caso, é uma espécie de automatismo que nos faz rir (BERGSON, 2001, p. 12).

Por isso o entendimento de que o cômico é inconsciente. Ele se tornará invisível para si mesmo ao torna-se visível para todos. Se Harpagon visse seus espectadores rirem de sua avareza, não se corrigiria, mas a mostraria menos, talvez, ou a mostraria de outro modo. É neste sentido, sobretudo, que o riso pode castigar os costumes dos homens. Portanto, “a função da comédia é estimular-nos a rir dos defeitos dos outros como de nós mesmos e assim aprender a evitar esses defeitos” (MARMONTEL apud CARLSON, 2009, p.145).