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Segunda pancada

L’AVARICE ET L’AVARE

2.1 O avarento de Molière

2.1.1 Os percursos da peça

Há indícios de que a peça de Molière tenha sido inspirada na obra A Aulularia (A

marmita), do escritor latino Plauto, que data de, aproximadamente, 200 anos antes de Cristo. Na comédia de Plauto, o personagem Euclion é um homem pobre que encontrou um tesouro escondido em uma marmita. Desde que descobriu o tesouro, passou a viver em uma inquietude contínua, pois o medo de perdê-lo ou de ser roubado, o perturbava. Entretanto,

Euclion não é considerado um avarento por natureza, por temperamento, pois o sentimento da avareza o toma por ocasião, no momento em que se torna rico, ao achar o tesouro dentro da marmita.

A abordagem da avareza em A Aulularia é diferente da apresentada em O avarento, pois o personagem da peça de Plauto difere do personagem da peça molieresca. Nesse sentido, Euclion estaria mais próximo do pobre sapateiro da fábula de La Fontaine45 do que de Harpagon, personagem principal da peça de Molière, que é um burguês muito rico e muito avarento. Assim, Molière reafirmou, mesmo “utilizando” e “seguindo” o modelo do escritor latino, a originalidade de deu talento.

Além disso, a comédia de Plauto é considerada uma comédia de intriga,voltada para as peripécias e confusões de Euclion, surgidas depois de ele haver encontrado, na lareira de sua casa, uma marmita cheia de ouro. A peça narra a história de amor de sua filha, grávida de Licônides, e que será pedida em casamento por Megadoro, sem que este e seu futuro sogro saibam da gravidez da moça (SOUZA, 2004). A comédia de Molière é uma comédia de tipos e costumes, pois o dramaturgo francês apresenta o meio burguês do século XVII, mostrando todas as consequências da avareza no plano moral e na desorganização da vida familiar.

No entanto, segundo Berrettini (1979, p. 77)

Tartufo, O avaro, O burguês fidalgo, As sabichonas, O doente imaginário são as peças famosas de Molière, que ao mesmo tempo que nos pintam o devoto (falso e sincero), o avaro, o burguês pretensioso, as mulheres excessivamente intelectualizadas, o hipocondríaco, se encaixam no esquema habitual da comédia de intriga. Todas apresentam um problema amoroso [...] que apenas será solucionado no final, e de maneira bastante inverossímil, servindo a ação para pintar em geral, um caráter, ou seja, o opositor ao ideal afetivo.

Para Durand (s.d.) O avarento seria, primeiramente, uma comédia de amor que se abre aos suspiros dos jovens personagens apaixonados, Valério e Elisa; Cleanto e Mariana, que, contrariados em seus inocentes amores romanescos, lamentam o seu infeliz destino. Nesse sentido, teríamos a apresentação de um problema amoroso: o par jovem, cujo plano de casamento não goza do consentimento paterno, situação que será solucionada somente no final da peça.

45 O sapateiro retratado na fábula de La Fontaine expressa uma das ideias mais sábias do fabulista: o dinheiro

Entretanto, consideramos que O avarento é uma comédia de costumes e de caracteres, rica em peripécias, cujo assunto principal é a história de um avarento roubado, explorando um velho que “beira” a bufonaria. Assim, Harpagon poderia ser comparado a um irmão de Euclion, pois o monólogo do avarento roubado está bem próximo do original latino:

HARPAGON (gritando por socorro, antes de entrar, e entrando em desalinho, alucinado) – Ladrão!... Ladrão!... Assassino!... Assassino!... Onde está a Justiça, meu Deus?... Estou perdido!... Assassinaram-me, degolaram-me, roubaram meu dinheiro... Quem poderia ter sido?... Que fizeram dele?!... Que farei para encontrá-lo?... Estará lá?... Ou aqui?... Quem fez isso?!... Ah!... Para, miserável!... devolva o meu dinheiro!... (agarra o próprio braço, arquejante) Ah! Sou eu mesmo!... Sou eu mesmo!... Meu espírito está perturbado!... Ignoro onde estou, quem sou e o que faço!... ai de mim!... Meu pobre dinheiro, meu querido dinheiro, meu grande, meu adorado amigo!... Privaram-me de ti!... E visto que me foste arrebatado, perdi minha razão de ser, meu consolo, minha alegria!... Tudo acabou para mim!... Nada mais tenho a fazer no mundo!... Longe de ti é impossível continua a viver!... Não posso mais!... Eu sufoco!... Eu morro!... Eu estou morto!... Eu estou enterrado!... Não há por aí alguém que queira me ressuscitar, devolvendo-me o meu dinheiro?!...O meu querido dinheiro?!... Ou revelando quem furtou?!... Hein?!... Que foi que você disse?!... Ah! Ninguém falou!... Quem quer que tenha preparado esse golpe, escolheu bem o momento, esperando enquanto eu falava com o traidor do meu filho!... Saiamos daqui... Eu quero ir intimar a Justiça e interrogar todo o pessoal da casa... Criado, filho, filha, eu mesmo até1... Quanta gente reunida, meu Deus!... Não posso olhar para ninguém sem suspeitar que esteja diante de quem me roubou... Hein?!.. Do que é que vocês estão falando aí?!... Daquele que me roubou?!... Que rumor é esse lá em cima?!... Será o meu ladrão que está aí?!... Por favor, se alguém souber notícias do meu ladrão, diga o que sabe!... Não estará ele oculto entre vocês todos?!... Vocês me olham todos e estão todos rindo!... Covardes!... Naturalmente são cúmplices do miserável que me roubou!... Ah! Mas eu me vingarei!... Comissários, archeiros, prebostes, juízes, aparelhos de torturas, cadeias e carrascos, eu quero que enforquem todo mundo!... E se não encontrar o meu dinheiro, eu mesmo me enforcarei, depois!...46 ( IV, 7)47.

EUCLION: Estou perdido, liquidado, morto! Para onde correrei? Para onde não correrei? Pega, Pega! (Pega) quem? Quem (pegará)? Não sei, nada vejo, ando cego e, sem dúvida, não posso saber com exatidão com a cabeça (perturbada), para onde vou, ou onde estou, ou quem sou. Eu vos peço, rogo, suplico que venhais me socorrer e (me) mostreis o homem que a roubou. Que dizes tu? É certo que acredito em ti; na verdade, vejo que (tu), pela aparência, pareces bom. O que há? Por que estais rindo? Conheço todos: sei que existem vários ladrões aqui, que se escondem sob uma roupa branca e ficam sentados, como se fossem santinhos. Ah! Nenhum de vós está com (ela)? Mataste-me. Dize, então, quem está com (ela)? Não sabes?

46 Os excertos de O avarento utilizados neste trabalho são da edição traduzida por Bandeira Duarte (1996). Essa

mesma tradução também foi utilizada pelo grupo Palhaços Trovadores em sua montagem.

47 Nas referências das peças citadas, os algarismos romanos referem-se ao ato e os arábicos, à cena (por exemplo:

Ai, pobre de mim! Estou inteiramente perdido, terrivelmente perdido! Pessimamente assistido ando, tanto pranto, (tanto) mal e (tanta) aflição, fome e pobreza este dia me trouxe! Eu sou o mais arruinado de todos (os homens) na terra. Na verdade, de que vale a vida para mim? (Para mim), [que] perdi tanto ouro, o qual guardei com tanto cuidado, com (tanto) zelo! Eu mesmo me lesei, (acabei com) minha vida e meu prazer de viver; agora, conclusão, os outros se divertem com a minha desgraça, com a (minha) ruína. Não posso aguentar (IV, 9)48.

Molière criou o Harpagon como o arlequim da Commedia dell’Arte, um grotesco,

um fantoche que se movimenta e fala, com o intuito de provocar o riso no público por meio de procedimentos milenares, como caretas e pontapés. A avareza é pintada com uma sequência de números de repertório, presentes em várias gags, que são pequenas ações cômicas ou situação burlesca, como, por exemplo, gag das outras mãos (I, 3), gag do chapéu (III, 1). Tal repertório encontrado na peça teria a sua constituição na obra do escritor latino.

HARPAGON – Vem cá... Mostra-me as tuas mãos... LA FLÈCHE – Pronto.

HARPAGON – As outras...

LA FLÈCHE – Eu só tenho essas duas… (I,3)

Podem-se apontar outras obras que teriam, de certa maneira, feito com que Molière seguisse a tradição de ter como tema a avareza: Les esprits (1579) escrita pelo francês Pierre Larivey (1550-1611), com o personagem Séverin; La belle plaideuse (1654), de Boisrobert, que mostra as ideias da condição burguesa frente à avareza, da aliança entre o filho e a filha contra seu pai; em La mère coquette (1665), de Donneau de Visé, em que se tem um pai que nutre uma paixão senil por uma jovem moça que recebe a corte de seu filho.

Berrettini (1979) ressalta a aproximação entre o Gorgibus, da farsa O médico volante

(s.d.), e Harpagon, pois ambos gostam de dinheiro, sendo que, em Harpagon, há um paroxismo, ou seja, a avareza se faz presente nesse personagem em maior intensidade. E considera que o Médico volante pode ser considerado um embrião de O avarento.