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O uso do subtexto como estratégia poética que comporte a subversão de ideologias patriarcais conforme estamos discutindo neste trabalho é nada mais do que um canal para expor a verdade que circunda as relações sociais dentro dessas ideologias patriarcais, mas fazendo-o de forma indireta ou eufemística. Sobre isso, Dickinson já afirmava em seu poema J1129 ―Tell all the Truth but tell it slant – ‖:

J1129

Tell all the Truth but tell it slant – Success in Circuit lies

Too bright for our infirm Delight The Truth‘s superb surprise

As Lightning to the Children eased With explanation kind

The Truth must dazzle gradually Or every man be blind – J1129

Diga toda a Verdade mas diga devagar – No Circuito o sucesso repousa

Clara demais para nosso Deleite enfermo A Verdade é suprema surpresa

Como o Raio explicado à Criança Em suave e gentil maneira

A Verdade deve vir aos poucos Ou aos homens traz cegueira – (Tradução de Fernanda Mourão32)

O início desse poema com a estrutura verbal de imperativo demarca a necessidade ou a orientação de se fazer algo: diga a verdade, porém diga indiretamente.

32 In: MOURÃO, Fernanda. 117 e outros poemas: à procura da palavra de Emily Dickinson. Tese de doutorado em Letras-Literatura Comparada. Programa de Pós-Graduação em Letras-Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 271f. p.136.

Aqui, slant foi traduzido como suavemente, mas pode ser lido também como sensivelmente ou, ainda, respeitosamente, que são as acepções encontradas para esse termo no Emily Dickinson Lexicon33. A verdade, portanto, deve ser dita de forma a não revelar diretamente qualquer potencial letal que possa conter, devendo, para isso, utilizar alegorias ou metáforas cujos sentidos sejam compreendidos aos poucos.

Para Helen Vendler (2010), há uma forte semelhança entre o que Dickinson afirma nesses versos e a forma como Jesus falava por meio de parábolas aos seus seguidores: ―Dickinson defends ‗slant‘ telling just as Jesus defended parables: some truths must be told allegorically34‖ (VENDLER, 2010, p.431). Nesse sentido, as parábolas bíblicas contadas por Jesus funcionam como forma de converter aqueles que estivessem dispostos a ouvi-las e compreendê-las, assim como os versos de Dickinson se abrem às múltiplas interpretações quando o leitor é capaz de alcançar o caráter simbólico das imagens e das afirmações criadas na poesia.

Esse modo de dizer a verdade é reafirmado no verso seguinte com o emprego da palavra Circuit, que funciona, ela mesma, como metáfora do dizer suavemente, como se vê em alguns dos sentidos atribuídos a esse termo:

H: Circumlocution; paraphrase; a compass of words; the rhetorical figure of periphrasis; a gradual line-upon-line explanation; softening the force of a direct expression; a longer course of proceedings than usual; a roundabout mode of speech, expression, or reason; avoiding the use of a single term out of delicacy or respect; the use of a number of words to express an idea when a suitable term is not at hand; [fig.] a succession of verses; a cycle of poems; an indirect style of expression in poetry.35

A partir dessas definições, sabemos que o eu-lírico reafirma sua concepção de que o sucesso em dizer algo que convença o leitor ou ouvinte depende de que se utilize uma expressão cuidadosa e menos direta. Ora, essa é exatamente a ideia que motiva o conceito de subtexto literário: um meio de expressão que, ao ser colocada indiretamente,

33 Disponível em: < http://edl.byu.edu/lexicon/term/552847> . Último acesso em 04.fev.2016. 34 ―Dickinson defende o dizer ‗indireto‘ assim como Jesus defendia as parábolas: algumas verdades devem ser ditas alegoricamente.‖ (Tradução nossa)

35―Circunlóquio; paráfrase; um alcance de palavras; a figura retórica de perìfrase; uma explicação gradual de linha a linha; suavizar a força de uma expressão direta; um curso mais longo de procedimentos do que o comum; um modo de discurso, expressão ou pensamento em rodeios; evitar o uso de um termo por delicadeza ou respeito; o uso de um número de palavras para expressar uma ideia quando um termo adequado não está disponível; [fig.] uma sucessão de versos; um ciclo de poemas; um estilo indireto de expressão em poesia.‖ (Tradução nossa) Disponível em: <http://edl.byu.edu/lexicon/term/553787>. Último acesso em 04.fev.2016.

vai aos poucos desestabilizando sentidos pré-estabelecidos para construir novas significações.

Na sequência do poema, uma nova imagem é criada para que a afirmação inicial do eu-lírico seja melhor compreendida: ―Too bright for our infirm Delight / the Truth‘s superb surprise‖. A iluminação do conhecimento que a verdade proporciona é radiante demais para o deleite enfermo do ser humano, que não está acostumado ou que não pode encarar a verdade sem um filtro protetor para suavizar seus efeitos, e por isso seu prazer é fraco, instável e não acompanha a surpresa de uma verdade dita às claras. Sobre isso, Vendler (2010) propõe: ―Her [Dickinson´s] purpose is not to hide it [the truth] from those preferring untruth, but rather to mediate it, out of kindness, to those as yet too weak to bear its glare36‖ (p.431).

O que se confirma em seguida é que o poema, que defende o uso de uma linguagem metafórica, alegórica e indireta para tratar das questões que, a olhos nus, são difíceis de suportar, constrói-se dessa mesma forma, isto é, utilizando-se desses mesmos recursos. Isso fica claro com a comparação entre o modo como se deve expor a verdade e a forma como se explica o poder letal de um raio a uma criança: assim como a explicação desse fenômeno natural deve ser feita com linguagem amável para evitar o medo da criança, o mesmo cuidado deve ser tomado para que a surpresa da verdade não se torne fatal ao homem. Por outro lado, o raio não tem poder suficiente para ofuscar a visão, mas o brilho que a verdade irradia é infinitamente maior, podendo cegar aqueles que não conseguem lidar com ela.

É por isso que o eu-lírico afirma ao final do poema: ―The Truth must dazzle gradually / Or every man be blind –‖ . No entanto, essa afirmação final impõe uma contradição a si mesma, uma vez que dazzle necessariamente se refere a um brilho intenso que ofusca a visão e que não poderia ser oferecido gradualmente ao homem. Temos, com isso, uma tensão de sentidos entre dazzle e gradually que sugere, por um lado, a necessidade de que a verdade seja dita aos poucos, mas, por outro, a impossibilidade de conter seus efeitos.

Podemos repensar essa interpretação estabelecendo um paralelo com o modo de apreensão dos significados em poesia, cuja literariedade reside na característica de não ser referencial, isto é, a poesia não se prende à comunicação de uma verdade de modo

36―Sua proposta [de Dickinson] não é escondê-la [a verdade] daqueles que preferem a inverdade, mas, ao

contrário, mediá-la, por bondade, para aqueles ainda muito fracos para suportar seu brilho intenso.‖ (Tradução nossa)

direto e linear como ocorre com outras linguagens; ao contrário, ela recorre a elementos (tais quais as figuras de linguagem e recursos sonoros) que subtraem dela a função comunicativa para que o poema se volte para o efeito estético de cada signo linguístico que o compõe. Assim, a poesia também diz a sua verdade de modo oblíquo para que, em vez de cegar, possa sensibilizar.

Outra característica importante nesse poema concerne à sua estrutura. Em primeiro lugar, a recorrência da rima final em lies, Delight, surprise, kind e blind e a sonoridade dessa rima enfatizada pela ocorrência interna de bright e Lightning proporcionam uma melodia cadenciada agradável e até mesmo didática para o leitor. Isso, em oposição à densidade do tema desenvolvido no poema – a verdade como uma questão da existência humana - corrobora para que se reforce sua ideia central, pois a verdade que o poema nos oferece chega ao leitor disfarçada pela docilidade rítmica. Além disso, o desenho gráfico que os versos constroem na página também contribui para uma impressão de regularidade que não exige do leitor maiores esforços de compreensão de sua estrutura.

O que estamos sugerindo em nossa leitura é que esse poema expressa nitidamente o poder da poesia de Dickinson de manipular a forma como algo é dito para que suas possibilidades interpretativas sejam acionadas pelo leitor a depender de sua capacidade para enxergar a verdade: ―What is at stake in Dickinson‘s poetic language is her tireless effort to grasp ‗Something‘ (P122) that is ultimately beyond the direct reach of words. […] What we are finally left with, then, is a sense of humility, admiration, and

wonder37‖ (HAGENBUCHLE, 1999, p.382).

37 ―O que está em jogo na linguagem poética de Dickinson é seu esforço incansável de agarrar ‗Alguma Coisa‘ (P122) que no final das contas está além do alcance direto das palavras [...] Então, o que sobra para nós finalmente é um senso de humildade, admiração, e espanto.‖ (Tradução nossa)

2 A subversão da publicação

―Of all poets writing in English in the nineteenth and twentieth century, I judge Emily Dickinson to present us with the most authentic cognitive difficulties when we read them.38‖ (BLOOM, 2007, p.1) Uma das questões mais discutidas pela fortuna crítica de Emily Dickinson é a postura da poeta de se recusar aos convites para publicar seus poemas. Essas discussões, de forma geral, levam em consideração as correspondências trocadas entre Dickinson e T. W. Higginson, seu mentor, entre a poeta e Helen Hunt Jackson, amiga e também escritora que lhe ofereceu a oportunidade de publicar e, de fato, publicou, ainda que sem autorização, alguns poemas de Dickinson, e também com alguns editores da época que lhe ofereceram a mesma oportunidade.

Apesar de ser um ponto bastante estudado na obra e na vida de Dickinson, nosso objetivo é resgatar aqui o contexto de produção e de mercado literários em que a poeta de Amherst estava inserida, especialmente levando em consideração a produção de obras literárias por mulheres e a participação das escritoras no panorama cultural dos Estados Unidos do século XIX para demonstramos o quão subversiva foi a escolha de Emily Dickinson de não expor sua poesia ao público leitor da época pelos meios tradicionais. A partir disso, discutiremos as manifestações de Emily Dickinson sobre a questão da publicação em seu poema J709 ―Publication – is the Auction‖ e nos poemas que trazem em si a definição de fama: J713 ―Fame of Myself, to justify‖, J866 ―Fame is the tint that Scholars leave‖, J1475 ―Fame is the one that does not stay‖ e J1659 ―Fame is a fickle food‖. Utilizaremos como principal meio de análise o conceito de subtexto a partir dos estudos da crítica literária de poesia e da crítica literária feminista, que pensa o subtexto como forma de articular o convencional e o subversivo na construção do texto literário.

Sabe-se que Emily Dickinson assumiu, durante toda a sua produção poética, uma atitude de negação aos convites para publicar seus poemas. Essa atitude, por um lado, pode ser vista como um aparente desprezo pela fama e pela divulgação de seu nome enquanto poeta; por outro lado, essa postura reflete uma preocupação com a

38 ―De todos os poetas escrevendo em inglês nos séculos dezenove e vinte, julgo que Emily Dickinson nos presenteou com as dificuldades cognitivas mais autênticas quando as lemos.‖ (Tradução nossa)

preservação dos poemas, uma vez que Dickinson tinha consciência de que seus versos em muito se distanciavam dos versos produzidos por seus contemporâneos apreciados pelo público leitor. Esse é, por exemplo, o modo como Richard Wilbur (2007) vê a poesia de Dickinson quando ele discute em seu texto ―Sumptuous Destitution‖ que Dickinson poderia querer algum tipo de reconhecimento, mas que, ao perceber que sua poesia dificilmente seria compreendida na forma como foi concebida, ela teria colocado em prática sua disposição já desenvolvida para a renúncia de si mesma como forma de lidar com seus conflitos: ―Emily Dickinson elected the economy of desire, and called her privation good, rendering it positive by renunciation. And so she came to live in a huge world of delectable distances39‖ (WILBUR, 2007, p.16).

No entanto, a obra escrita no recanto doméstico assumiria uma força poética irreprimìvel, como nos coloca Lúcia Castelo Branco (2003): ―Curiosamente, esse livro que, durante a vida da autora, jamais seria publicado, exigiria, desde sempre, a sua publicação. Pois a obra, atraída pela força do exterior, exige ser lançada para fora de si mesma, para o lugar de onde, afinal, emerge‖ (p.20). Em contrapartida, não se pode julgar se teria sido possível aos leitores contemporâneos de Dickinson apreender sua poesia da mesma forma como o fazemos hoje, pois:

Cada período literário reinterpreta a literatura à luz de cada conhecimento específico e experiência, ou seja, de seu ambiente cultural. O valor literário é medido conforme a distância estética pela qual uma obra se afasta do horizonte de expectativa dos leitores primordiais. (BONNICI; FLORY; PRADO, 2011, p.122)

A partir dessa ideia, isto é, de que cada período literário vive uma experiência literária particular, vamos refazer o percurso da literatura produzida nos Estados Unidos do século XIX para que possamos contrapor a esse período a própria poesia de Emily Dickinson e os embates da poeta com a ideia de divulgá-la. É preciso mencionar, contudo, que nosso objetivo não se detém em explorar o contexto para compreendermos melhor as questões privadas e biográficas que pudessem estar colocadas nos poemas de Dickinson, mas, sim, ao entendermos o panorama cultural em que esta poesia se insere, entenderemos também a proporção de seu alcance e de seu peso na história literária norte-americana, bem como o grau de subversão dos valores literários daquela época que seus poemas apresentam na camada subtextual de significação.

39―Emily Dickinson elegeu a economia de desejo, e chamou sua privação de boa, tornando-a positiva pela renúncia. E assim ela veio viver em um grande mundo de distâncias deleitáveis.‖ (Tradução nossa)