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CAPÍTULO I CONTEXTO POLÍTICO EUROPEU NO FINAL DO SÉCULO XIX E

7. Do Cais de Alcântara a Brest: o caos no embarque e a agitação nos navios

Todo o processo de transporte das tropas portuguesas desde as suas unidades até às primeiras linhas se rodeou de inúmeras peripécias, insubordinações, faltas de higiene e outras, que em nada abonavam a condição de uma força militar organizada e muito menos quando se dirigia para uma frente de batalha. Pela convenção militar assinada em princípios de Janeiro de 1917 entre o ministro da Guerra, o comandante e alguns oficiais do estado-maior da divisão e as missões britânica e francesa que se tinham deslocado a Lisboa, ficara decidido que o transporte desde Lisboa até à zona da frente, a alimentação, armamento, equipamento e as munições para a força portuguesa ficariam a cargo do governo britânico. A aliada comprometia-se igualmente a dar formação às tropas portuguesas e assumir a responsabilidade do seu repatriamento. Portugal comprometia-se a pagar mais tarde à Inglaterra o custo financeiro das operações. Nas negociações entre os generais ingleses, o comandante do CEP e o ministro da Guerra, Norton de Matos, durante os meses de Janeiro e Fevereiro de 1917 ficou decidido que a força portuguesa a enviar para França seria constituída por um corpo de exército a 2 divisões. Em 17 de Janeiro entraram no Tejo 7 navios ingleses (Laomedon, Flavia, City of Benares,

Rhesus, Bohemian, Belerophon e Inventor) que, juntamente com os navios portugueses Pedro Nunes e Gil Eanes, deveriam transportar para França as primeiras tropas portuguesas. Os

batalhões da divisão de instrução seriam os primeiros a embarcar.

A confusão iniciou-se logo com a ordem de marcha para o cais de Alcântara, em Lisboa. Correndo o boato na cidade de que se preparava uma grande resistência à partida dos soldados para a capital, Norton de Matos solicitou a Tamagnini que visitasse as várias unidades do país que constituíam o primeiro troço de embarque do CEP a fim de observar o seu estado de espírito e controlar a marcha para o cais. Tamagnini e Gomes da Costa percorreram os vários regimentos verificando que, afinal, o boato que corria em Lisboa de que as unidades se

97 recusariam a embarcar não correspondia totalmente à verdade, embora reconhecessem existir focos de resistência fomentados por alguns oficiais.

De entre os vários depoimentos deixados pelos militares, o capitão David Magno comandante da 3ª companhia do batalhão de infantaria 13 de Vila Real descreve, na saída das tropas para Lisboa, sentimentos mistos de subordinação aos seus comandantes no cumprimento do dever patriótico e atitude de conformismo e resignação com a sorte ou o infortúnio que as esperava. Era gente humilde e analfabeta dum mundo rural extremamente atrasado, gente que nunca vira um comboio, o mar, um navio e sem a menor ideia do motivo que a fazia partir para uma guerra tão distante. Por isso, Ferreira do Amaral escrevia: “Em Lisboa embarcou-se cabeças de gado e nada mais”230.

Não era, pois, de estranhar que as primeiras baixas, lamentavelmente, não se tenham verificado nem em França nem na frente flamenga, mas nos túneis do caminho-de-ferro da linha do Douro, da Régua em direcção ao Porto: “Alguns soldados, embriagados para espalharem as paixões, trepavam às carruagens do comboio. Esquecidos dos túneis, chocavam com a entrada dos mesmos e assim morreram estupidamente, sem que a isso os superiores fosse possível obstar”231.

Não foi de todo pacífica a deslocação das tropas para a capital. Os principais obstáculos ocorreram com os oficiais dos batalhões de infantaria 34 de Santarém que se opunham a embarcar e os de infantaria 7 de Leiria, a que já se aludiu. A falta de condições para reunir o mais rápido possível os mobilizados para a partida nos primeiros navios levou a que embarcassem somente os disponíveis. Foi motivo de grande desmoralização, tanto dos oficiais como das praças, a substituição dos oficiais presos como resultado do 16 de Dezembro e da resistência de infantaria 34, que tinham acompanhado os seus soldados durante toda a instrução em Tancos, por camaradas de outros batalhões mobilizados para acompanhar as novas unidades até França, ou apenas para os conduzirem até ao embarque.

Por isso não surpreende a atitude de desagrado, por parte não só de oficiais que se viram obrigados a separar-se dos homens por eles instruídos para irem comandar outras unidades desconhecidas mas, principalmente, a grande desmotivação das praças que se viram de um momento para o outro privadas dos seus comandantes e obrigadas a adaptarem-se a uma nova situação. Sobre o estado de espírito dos soldados, Tamagnini refere o exemplo do capitão Ferreira do Amaral, não mobilizado que, ao ouvir os soldados do batalhão de infantaria 15,

230 Amaral, 1922: 329-330.

98 onde prestara serviço durante algum tempo, queixarem-se de não terem junto de si os seus oficiais, ofereceu-se para embarcar com o batalhão, sendo transferido pelo ministro da Guerra para infantaria 15232.

Foi o próprio Ferreira do Amaral quem, sem receio da indignação dos políticos a que apelidou de hipócritas, protestou contra a forma como Norton de Matos obrigou os militares portugueses a embarcarem para França:

De Tomar ao cais de Santos levei comigo duzentas e cinquenta cabeças de gado e nada mais. Ao assumir, em França, o comando de Infantaria 15, apenas tinha umas mil e cem cabeças de gado. É certo que no fim de algumas semanas, eu e alguns oficiais começámos a descortinar que esse gado era uma raça de gente de que se faz tudo o que se quer, e que, por isso mesmo, deve ser poupada quase com usura. Mas o que saiu de Tomar era gado e só gado foi o que embarcou para França233

Ferreira do Amaral elogiava até a energia quase cega do ministro da Guerra, cujo objectivo era unicamente “fazer embarcar a maior porção de gente; embarcar em cada troço o maior número de homens e o mais rapidamente possível, para que os factos consumassem a realidade e levassem de vencida toda e qualquer resistência” 234.

A este péssimo efeito produzido pela substituição dos oficiais dos batalhões há a acrescentar o caos provocado em Lisboa com o número elevado de tropas com os quadros incompletos e pouco disciplinadas, assim como a descoordenação no embarque. O almirantado britânico tinha exigido que o embarque das tropas portuguesas se fizesse com a maior descrição e o mais rápido possível, não havendo lugar a despedidas com toque de bandas ou fanfarras como era habitual na partida para a linha da frente colonial africana. A confusão instalara-se em Alcântara, agravada com a grande demora dos transportes no Tejo e com a proibição dos militares saírem dos navios, chegando mesmo as praças do batalhão de infantaria 9 de Lamego a insubordinar-se no cais e a recusarem-se a embarcar, aproveitando a fraca atitude disciplinadora dos oficiais. Mesmo nos batalhões mais submissos o mal-estar foi-se acumulando, como relata David Magno:

No dia 22 saiu o batalhão do comboio para o vapor, assim a modos de uma execução que se vai fazer. O povo era arredado para longe. Nem um viva à Pátria, nem palmas que aquecessem. Os nossos olhos foram de encontro a uma pequena porta aberta no bojo de um navio monstro, negro,

232 Tamagnini, 1923, Parte II: LI). Aliás, Ferreira do Amaral contestou no seu livro A Mentira da

Flandres… e o Medo a palavra “ofereceu-se” utilizada pelo próprio Tamagnini, justificando que uma

“uma criatura fardada apresenta-se não se oferece, Amaral: 387.

233 Amaral. 1922: 329-330.

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onde li “Bohemian- D”, que nos fez vir à ideia o horror de tudo aquilo, se um submarino nos metesse no fundo, desde o sair da barra. (…) Quando me vi à sombra da bandeira britânica, caiu- me o coração aos pés e senti-me escravo…da liberdade. (…) Abandonados de quaisquer saudações, os nossos soldados lá embarcaram equipados, de saca de roupa na mão, como um rebanho atrás de outro rebanho (…). Iam bater-se por tanta coisa que alguns lhe disseram que eles, submissos ignorantes, em geral, quase não sabiam pelo quê (…) Havia-se decretado o ódio à Alemanha mas…maiores agravos tínhamos dessa mesma França que estávamos sinceramente amando, apesar de, em três anos napoleónicos, nos ter feito derramar torrentes de sangue e lágrimas235.

A nuvem de fumo de que tudo corria com normalidade entre os militares acerca da marcha para a guerra adensava-se e era necessário tomar medidas urgentes que não comprometessem as decisões do poder político, nem fossem motivo de escândalo ou sobressalto perante a opinião pública. Para evitar uma confusão ainda maior entre os militares já embarcados, Norton de Matos sugeriu a Tamagnini fazer uma visita aos navios. O general, acompanhado pelo comandante da divisão naval Leote do Rego, um dos fiéis adeptos da intervenção, efectuou a visita contactando com as praças e recomendando aos oficiais as medidas necessárias para garantir a ordem e a disciplina, não se tendo registado qualquer acto de protesto ou insubordinação. O mesmo não sucedeu com a visita do Presidente da República e a sua comitiva, da qual fazia parte Afonso Costa, ministro das Finanças. Não fosse a intervenção prudente e lúcida do coronel Gomes da Gosta, a situação teria assumido contornos de alguma gravidade particularmente com o batalhão de infantaria 15 e os oficiais de infantaria 34 que tinham embarcado sob prisão, como revela Tamagnini: Gomes da Costa tentou convencer os seus homens de que era uma grande honra para os militares que o Presidente da República se viesse despedir deles e que só lhe poderiam pagar portando-se com honra e bravura, características do soldado português236. Convencidos pelas palavras do coronel, os

militares acabaram por dar vivas à guerra. Porém Tamagnini não deixou passar em claro esta atitude dos soldados, apontando que os mesmos que davam “vivas à guerra” dariam igualmente “morras à guerra” se alguém com prestígio os desafiasse a isso, concluindo que “o nosso soldado em regra dócil e sofredor, vai para onde os oficiais o levam sem ter a maior parte a consciência nem a compreensão do que vai praticar”237. Tendo em conta os graves antecedentes relacionados com todo o processo de mobilização, a situação de embarque, a espera nos navios e, principalmente, a incerteza do futuro, não será de todo errado considerar

235 Magno, 1921: 24

236 Tamagnini, 1923, Parte II: LII 237 Tamagnini, 1923, Parte II: LII

100 como uma provocação às tropas a visita dos responsáveis políticos aos navios. Era esta a predisposição da força portuguesa destinada a ir combater pelo Direito, pela Liberdade e pela Pátria.

Em 26 de Janeiro partiu de Lisboa a primeira brigada comandada por Gomes da Costa nos sete navios ingleses, no Gil Eanes e no cruzador Pedro Nunes que transportava os oficiais sob prisão, vindo a desembarcar em Brest em a 2 de Fevereiro. Desde esse mês até Fevereiro de 1918 embarcaram no Tejo com destino ao CEP 53.478 praças e 1499 oficiais, tendo seguido muitos outros por via terrestre.

O transporte da força portuguesa para França nos navios britânicos foi bastante conturbado, pelo menos em algumas viagens. Se para a maioria das praças, oriunda do país rural de características medievais eram uma novidade o comboio, o navio e o mar, para outros mais elucidados e afeitos às viagens para África em transportes portugueses o mal-estar foi-se agravando ao longo da viagem.

A vida a bordo não se tornara nada fácil, particularmente para as praças que, habituadas a uma vida livre no campo e muito pouco disciplinadas nos poucos dias de exercício militar, se encontravam agora num espaço reduzido e partilhado por camaradas, a caminho duma guerra cujos motivos ignoravam. Se a indisciplina ou a pouca preocupação com a obediência durante a vida a bordo eram principalmente características dos oficiais, a ausência de princípios básicos de higiene individual era confrangedora entre a maioria das praças. O relatório do capitão médico José Guilherme Pacheco de Miranda que acompanhou a tropa numa das viagens denunciou os péssimos hábitos dos militares, propondo as respectivas soluções. O médico queixava-se da sobrelotação do navio, tanto em homens como solípedes, dos locais escuros, húmidos e exíguos, sem as mínimas condições onde as tropas eram obrigadas a permanecer, lamentando particularmente a ignorância da maioria das praças em relação às regras essenciais de higiene238.

Estas situações eram de tal modo evidentes e graves que a própria tripulação britânica dos navios se viu na necessidade de enviar várias cartas aos seus comandantes, descrevendo pormenorizadamente a forma muito pouco cívica dos militares portugueses. Aproveitando a oportunidade de resposta ao pedido do governo português para transporte de mais tropas de Lisboa para França, o secretário do gabinete de guerra quis discutir com o ministro português

101 e o adido naval em Londres a indisciplina e o comportamento geral dos contingentes a bordo dos navios britânicos239.

O encontro teve lugar no dia 24 de Abril de 1917 e ocorreu de forma amigável. O objectivo seria sensibilizar o governo português para os factos que se passavam com as tropas portuguesas no sentido de, pelo menos, serem ultrapassadas algumas situações de ordem disciplinar e sanitária. O teor da generalidade das queixas enviadas pelas tripulações britânicas e relatadas pelo secretário da guerra em nada abonavam a posição do ministro português em Londres e do adido naval: tratava-se da indisciplina dos oficiais e da ausência completa de civilidade das praças, traduzida na prática pelo desleixo e ignorância no que respeitava à higiene pessoal e colectiva. Quanto à primeira, o secretário da Guerra questionou o ministro português sobre as medidas a adoptar pelo seu governo a fim de promover uma melhor disciplina, convencendo os oficiais a bordo a fazer rondas nos decks e a visitar as tropas com mais frequência, no sentido de evitar as irregularidades já cometidas como, por exemplo, a destruição pelo corte de cintos de salva-vidas e, em alguns casos, a provocação de incêndio. O ministro português acabou por reconhecer que havia, efectivamente, uma grande falta de disciplina, situação que não surpreendia pelo facto de haver entre as tropas muitos monárquicos e republicanos simpatizantes da Alemanha, cuja influência exercida junto das tropas era muito forte. E numa atitude reveladora da subserviência que, aliás, pouco dignificava as relações entre dois Estados soberanos com uma grande tradição histórica europeia e mundial, o ministro português desculpou os oficiais portugueses atendendo ao facto de que não tinham um comportamento idêntico ao dos oficiais britânicos e não controlavam os seus homens como os ingleses, mas estava seguro de que a disciplina entre as tropas melhorava diariamente desde a sua estadia em França240.

Decerto que a questão da higiene individual apresentada pelo secretário de estado da Guerra deveria ter causado perturbação e grande constrangimento nas entidades portuguesas presentes no encontro. Na realidade, o assunto era bastante delicado, pois a falta de asseio das praças era tão grave que provocava grande insalubridade a bordo, representando um perigo para a saúde das tropas e da tripulação. E também sobre essa matéria o representante de Portugal justificou-a com a desculpa de que a média dos portugueses nunca aprendera a seguir uma vida com preocupações de ordem sanitária, e assim as tropas da província não estavam habituadas a usar latrinas, sendo esse o motivo de satisfazerem as suas necessidades

239 A the National Archives, catalogue Reference: CAB/24/11, Image Reference: 0065, War Cabinet

G.T. 565, 26/4/1917, folha 248, Arquivo da Academia Militar.

102 fisiológicas por todo o navio. Mas acrescentava que aprenderiam depressa depois de estarem em França durante algum tempo. Numa atitude certamente de grande embaraço e humilhação para o diplomata Manuel Teixeira Gomes, o ministro português apenas pôde dizer que iria comunicar o assunto ao seu governo241.

No final do encontro, o secretário da Guerra não se manifestou nada convencido sobre a probabilidade de grande progresso das tropas portuguesas, tanto no que dizia respeito à disciplina como às questões de higiene deduzindo que, pela generalidade da conversa com os representantes de Lisboa, o objectivo primeiro dos portugueses era o de manter aqueles homens fora do país, o que se tornaria demasiado dispendioso para a generalidade dos aliados. Apesar de Portugal se encontrar ainda no início da sua intervenção no conflito, as observações feitas pelo secretário da Guerra são bem reveladoras da apreciação muito pouco abonatória que o gabinete de guerra tinha acerca do país e das tropas portuguesas. Toda esta conjuntura viria reforçar o que a diplomacia britânica pensava sobre o envio de um corpo expedicionário nacional para França. Não se tratava apenas de suportar todo o esforço logístico, técnico e financeiro, mas ainda integrar no exército britânico tropas indisciplinadas, mal treinadas e sem hábitos mínimos de higiene individual e sanitário. Apesar da convenção militar assinada em Janeiro de 1917 pelos dois países para o transporte de tropas desde o embarque até à linha da frente, não seria de estranhar que a máquina diplomática e de guerra inglesa pretendesse ver-se livre da suposta força portuguesa, aconselhando-a a ir combater para África. Nestas circunstâncias não será errado presumir-se a relutância do almirantado britânico em relação ao fornecimento dos navios.

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