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Do Estado de natureza ao Estado civil

No documento A democracia em Jean-Jacques Rousseau (páginas 31-36)

PARTE I: SOBRE O CONTRATUALISMO

1.2. O CONTRATO EM THOMAS HOBBES

1.2.1. Do Estado de natureza ao Estado civil

1.2.1.1. O Estado de natureza

Hobbes é pessimista em relação à natureza humana. Ele descreve o homem com uma compulsão que o transcende e o impele a obter sempre mais poder. Desta forma, o homem precipita-se numa situação não-altruísta de "guerra de um homem contra todos os homens" (bellum omnium omnes).

O homem, no seu estado de natureza é egoísta, egocêntrico, inseguro, ambicioso e está em constante movimento. Ele não conhece leis e não tem conceito de justiça e de bem12; ele somente segue os ditames das suas paixões e os desejos temperados com algumas sugestões da sua razão natural.

Onde não existe governo ou lei, os homens caem, naturalmente, em discórdias: a escassez de recursos, no estado de natureza, força os homens a uma rivalidade competitiva e a rivalidade competitiva é a causa para que os seus recursos sejam, efectivamente, muito escassos. A competição conduz o homem ao medo, à inveja e à disputa. Existe um contínuo temor e perigo, de modo que a vida no estado de natureza é totalmente miserável.

Os homens também procuram a glória, derrubando os outros pelas costas, já que, de um modo geral, as pessoas são mais ou menos iguais em força e inteligência e nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode, com segurança, reter o poder. Assim sendo, o conflito é perpétuo, e "cada homem é inimigo de outro homem" – "Homo homini lupus".

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Vide Thomas Hobbes, Leviathan, introd. C. B. Macpherson. London: Penguin Classics, 1985, parte I, cap. XIII, pp. 186-188. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, trad. port. de J. P. Monteiro e M. B. Nizza da Silva, pref. e rev. geral de J. P. Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995, pp. 112-113.

Estamos perante um estado de guerra, onde nada de bom pode surgir. Enquanto cada um se concentra na auto-defesa e na conquista, o trabalho produtivo é impossível. Não existe tranquilidade para a busca do conhecimento, não existe motivação para construir ou explorar, não existe lugar para as artes e letras, não existe espaço para a sociedade; só "medo contínuo e perigo de morte violenta". Então a vida do homem nesse estado é, "solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta."

«Portanto, tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo o homem é inimigo de todo o homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Numa tal situação, não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é incerto; consequentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta.»13

1.2.1.2. O Estado civil

O estado de natureza é intolerável, porque não garante ao homem a consecução de um bem primordial: o direito à vida. Em forma de leis naturais, a recta razão sugere ao homem uma série de regras, que têm por objectivo tornar possível uma coexistência pacífica e todas estas regras estão subordinadas a uma primeira regra fundamental, que é diligenciar a paz.14

13 «Whatsoever therefore is consequent to a time of Warre, where every man is Enemy to every man; the same is consequent to the time, wherein men live without other security, than what their own strength, and their own invention shall furnish them withall. In such condition, there is no place for Industry; because the fruit thereof is uncertain: and consequently no Culture of the Earth; no Navigation, nor use of the commodities that may be imported by Sea; no commodious Building; no Instruments of moving, and removing such things as require much force; no Knowledge of the face of the Earth; no account of Time; no Arts; no Letters; no Society; and which is worst of all, continuall feare, and danger of violent death; and the life of man, solitary, poore, nasty, brutish, and short.» Thomas Hobbes, Leviathan, op. cit., parte I, cap. XIII, p. 186. Leviatã ou Matéria, Forma e

Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, op. cit., p. 111.

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Vide Thomas Hobbes, Leviathan, op. cit.,parte I, cap. XIII, p. 188. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um

«Mas os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre eles há, e a outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte, o ditado da recta razão – isto é, lei de natureza – é que procuremos a paz…»15

A razão acode em ajuda do homem sugerindo-lhe os diversos caminhos para alcançar um estado de paz, mas não se pode recorrer a nenhum destes caminhos enquanto o homem viva em estado de natureza: um estado em que a insegurança geral desaconselha a todos que actuem racionalmente e no qual os homens se submetem às paixões naturais, contrárias às leis da natureza.16

Enquanto as abelhas e as formigas vivem socialmente umas com as outras, os homens não são capazes de viver socialmente e, portanto, é necessário um acordo constante e duradouro, que os mantenha em respeito e que dirija as suas acções no sentido do benefício comum.17 A única maneira de instituir um poder comum que garanta a segurança e a conservação de todos é conferindo toda a sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens como representante das suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como o autor de todos os actos que aquele que representa a sua pessoa praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo, assim, as suas vontades à vontade do representante e as suas decisões à sua decisão. Constitui-se, por conseguinte, uma verdadeira unidade de todos eles numa só pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens: «Cedo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas acções.»18 A multidão une-se numa só

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Thomas Hobbes, Do Cidadão,trad, apres. e notas de Renato J. Ribeiro. São Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 40-41.

16 Cf. N. Bobbio, Thomas Hobbes. Barcelona, Ed. Paradigma, 1991, pp. 72-75.

17 Vide Thomas Hobbes, Leviathan, op. cit., parte II, cap. XVII, pp. 225-226. Leviatã ou Matéria, Forma e

Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, op. cit., pp. 144-146.

18 «I Authorise and give up my Right of Governing my selfe, to this Man, or to this Assembly of men, on this condition, that thou give up thy Right to him, and Authorise all his Actions in like manner.» Thomas Hobbes,

Leviathan, op. cit., parte II, cap. XVII, p. 227. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, op. cit., p. 146.

pessoa, que representa o Estado (civitas); une-se ao Leviatã, ao “deus mortal”, ao qual deve, abaixo do Deus Imortal, a sua paz e defesa. Essa autoridade que lhe é dada é tal, que lhe é conferido um uso tamanho de poder e força que inspira terror e o torna capaz de unir as vontades de todos os homens no sentido da paz e bem-estar comum.

«A única forma de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e injúrias uns dos outros, garantindo-lhes, assim, uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. (...) Esta é a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.»19

G. Mairet considera que Hobbes pensa a ontologia do soberano em termos de representação: a vontade soberana representa a vontade da multidão, o uno representa o múltiplo e regula-o. Desta forma, a vontade do soberano é a vontade de todos. No processo de sujeição, o múltiplo está submisso ao uno como ao seu princípio, a multiplicidade dos seus julgamentos está submissa ao julgamento civil único, as vontades privadas estão submetidas à vontade única que é a vontade pública.20G. Mairet fala, ainda, numa vontade de Hobbes em assinalar o poder sobre a terra deste Deus artificial, monstruoso e pleno de poder. O autor pensa que ao dar ao Estado o nome desta personagem, Hobbes não cede ao prazer de um bom título evocador. O personagem está coroado, como convém a um monarca, e tem na sua mão direita a espada, marca da sua autoridade temporal («e os pactos sem a espada não passam de

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«The only way to erect such a Common Power, as may be able to defend them from the invasion of Forraigners, and the injuries of one another, and thereby to secure them in such sort, as that by their owne industrie, and by the fruites of the Earth, they may nourish themselves and live contentedly; is, to conferre all their power and strength upon one Man, or upon one Assembly of men, that may reduce all their Wills, by plurality of voices, unto one Will. (…) This is the generation of that great LEVIATHAN, or rather (to speak more reverently) of that Mortall God, to which wee owe under the Immortall God, our peace and defence.» Thomas Hobbes, Leviathan, op. cit., parte II, cap. XVII, p. 227. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um

Estado Eclesiástico e Civil, op. cit., p. 145.

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palavras, sem força para dar segurança a ninguém»21) e, na sua mão esquerda, tem o báculo, símbolo do seu poder espiritual. Desta forma, esta personagem real é melhor que qualquer outra personagem: é uma personagem que encarna o Estado, o qual tem a personalidade da união e duas ordens de poder. O poder soberano do Leviatã tem a sua origem na própria imagem deste “deus mortal”: o corpo do Leviatã é constituído pelos corpos de uma multidão humana. O Leviatã surgiu do povo e é esta origem que o torna poderoso.

«É de um mar humano que surge o Estado na pessoa do monarca armado, soberano da força e do espírito, com o propósito de submeter os desejos e as paixões dos homens, os dois ingredientes da discórdia e da guerra.»22

Da instituição do Estado decorre uma série de direitos e faculdades do soberano: os súbditos não poderão mudar a forma de governo; não pode haver transgressão do poder soberano; ninguém pode, sem injustiça, protestar contra a instituição do soberano, apontado pela maioria; as soberanas acções não podem ser justamente acusadas pelo súbdito; nada que o soberano faz pode ser punido pelo súbdito; o soberano é juiz do que é necessário para a paz e defesa dos seus súbditos e juiz de quais as doutrinas próprias para lhes serem ensinadas; o direito de fazer regras, pelas quais todos os súbditos possam saber o que lhes pertence, e nenhum outro súbdito pode tirar-lhes sem injustiça; o soberano detém a autoridade judicial e as decisões das controvérsias; direito de fazer a guerra e a paz como lhe parecerem melhor com outras nações e Estados; direito de escolher todos os conselheiros, magistrados, ministros e funcionários, tanto da paz como da guerra; direito de recompensar com riqueza e honras e o de punir; poder de conceder títulos de honra e decidir qual a ordem, lugar e dignidade que cabe a cada um.

21 «And Covenants, without the Sword, are but Words, and of no strength to secure a man at all.» Thomas Hobbes, Leviathan, op. cit., parte II, cap. XVII, p. 223. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado

Eclesiástico e Civil, op. cit., p. 143.

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Todos estes direitos constituem a essência da soberania e são direitos indivisíveis (incomunicáveis e inseparáveis). Dado que se trata de direitos essenciais e inseparáveis, não podem ser outorgados ou alienados a outrem.23

No documento A democracia em Jean-Jacques Rousseau (páginas 31-36)