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Sobre a natureza do governo

No documento A democracia em Jean-Jacques Rousseau (páginas 87-91)

PARTE II: A TEORIA CONTRATUALISTA DE ROUSSEAU

2.2. A TEORIA POLITICA ROUSSEAUNIANA

2.2.1. Em torno da vontade geral

2.2.3.1. Sobre a natureza do governo

Rousseau refere-se às diversas formas que o governo pode assumir para considerar as vantagens e as desvantagens de cada uma delas. Num governo democrático, «o soberano pode confiar o encargo do governo a todo o povo ou à maioria do povo, de maneira que haja mais cidadãos magistrados do que cidadãos simples particulares»114. É preciso notar que Rousseau utiliza o termo “democracia” para se referir a um governo do povo que actua como um organismo e que exerce as funções legislativas e executivas; esta forma de democracia é absolutamente distinta da ideia moderna do governo representativo. Embora Rousseau considere que a democracia será a melhor como forma de Estado (República), ela será prejudicial como forma de governo, porque sendo atribuição dos cidadãos, enquanto membros do soberano, ater-se às questões gerais, às regras referentes a toda a comunidade, deduz que, no instante em que o conjunto dos membros se detém em questões particulares, corre-se o risco de corrupção. Entregar o poder a todos do ponto de vista prático não é viável, pois será um governo mais sujeito a guerras. Não é correcto que aqueles que fazem as leis também as executem. Esta seria uma forma de governo mais adequada a um Estado de pequenas

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Luiz Vicente Vieira, A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais, op. cit., p. 101. 114 «Le Souverain peut, en premier lieu, commettre le dépôt du Governement à tout le peuple ou à la plus grande partie du peuple, en sorte qu’il y ait plus de citoyens magistrats que de citoyens simples particuliers». Jean- Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes, op. cit., liv. III, cap. III, p. 403. O Contrato Social, op. cit., p. 69.

dimensões e a um povo de “deuses” ou de seres capazes de um controlo sobre-humano sobre as suas paixões e sentimentos: «(…) se houvesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a homens.»115

Rousseau considera que um governo aristocrático é a forma mais prudente de governo, porque nele se encontram distintos o poder legislativo e o poder executivo; a sua moderação substancial torna-o idóneo para Estados de tamanho e poder não muito grandes. Num governo aristocrata, o soberano «pode concentrar o governo nas mãos de um pequeno número, de modo que haja mais simples cidadãos do que magistrados»116. Mas aqui Rousseau opta pela aristocracia electiva, onde o grupo de indivíduos que irá governar é escolhido por todos. Esse grupo de indivíduos são considerados os melhores para exercerem essa função. É natural que os mais sábios governem a multidão, nomeadamente quando se está seguro de que eles governarão para o interesse da multidão.

No que concerne à monarquia, Rousseau tece algumas considerações mais duras, porque num governo monárquico o soberano «pode concentrar todo o governo nas mãos de um magistrado único, de que todos os outros recebem o seu poder.»117A monarquia consiste em dar o poder a um indivíduo que depois escolhe o grupo de pessoas que o irão ajudar. Se a monarquia fosse electiva até poderia ser um bom governo, mas isso não faz muito sentido. Entregar o poder à monarquia é perigoso porque há sempre a tentação de corrupção dos governos; os reis querem ser absolutos, sendo o governo onde a vontade particular impera sobre a vontade colectiva. O poder do rei reside em que o poder do povo seja fraco. A monarquia é a única forma de governo que convém aos grandes Estados. No entanto, pouco

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«(...) s’il y avoit un peuple de Dieux, il se gouverneroit Démocratiquement. Un Gouvernement si parfait ne convient pas à des hommes». Jean-Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in

Oeuvres Complètes, op. cit., liv. III, cap. IV, p. 406. O Contrato Social, op. cit., p. 72.

116 «Ou bien il peut resserrer le Gouvernement entre les mains d’un petit nombre, en sorte qu’il y ait plus de simples Citoyens que de magistrats (...)».Jean-Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes, op. cit., liv. III, cap. III, p. 403. O Contrato Social, op. cit., p. 69.

117 «Enfin il peut concentrer tout le Gouvernement dans les mains d’un magistrat unique dont tous les autres tiennent leur pouvoir». Jean-Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in

se pode fazer para ajudar tais Estados, pois estão condenados à ruína: «se se torna difícil governar um grande Estado, ainda mais difícil é que ele seja bem governado por um só homem, e todos sabem o que acontece quando um rei nomeia substitutos».118

Após considerar os prós e os contras de cada forma de governo, sem deixar de passar pelos governos mistos, Rousseau conclui que cada forma de governo poderá ser melhor conforme a situação de cada povo. Uma forma de governo determinada é mais apropriada para uma nação concreta e por esta razão não é aplicável a outras nações119. O respeito aos princípios gerais também deve ter em atenção as exigências das situações específicas. Na tentativa de elaborar uma constituição para a Polónia, Rousseau teve o cuidado de chamar a atenção para a importância de respeitar «(…) as instituições nacionais que conciliam o génio, o carácter, os gostos e os costumes de um povo, o fazem ser ele e não outro (…)»120. Nada seria mais catastrófico do que seguir o exemplo de uma época que possibilitou a substituição da individualidade genuína, pela uniformidade anónima; em vez de existirem diferentes nações no mundo moderno, encontramos, apenas, europeus indistintos, com os mesmos sentimentos e costumes invariáveis.

Rousseau chama a atenção para a necessidade da existência de assembleias fixas e periódicas para que o povo, em dias determinados pela lei, se encontre por ela legitimamente convocado, sem que ninguém o impeça. São estas assembleias que garantem o exercício contínuo da soberania do povo, independentemente daquelas que possam ser convocadas pelo governo quando um assunto de interesse colectivo assim o exigir. Crítica veemente o poder

118 «Mais s’il est difficile qu’un grand Etat soit bien gouverné, il l’est beaucoup plus qu’il soit bien gouverné par un seul homme, et chacun sait ce qu’il arrive quand le roi se donne des substituts». Jean-Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes,op. cit., liv. III, cap. VI, p. 410. O

Contrato Social, op. cit., p. 76.

119 Cf. Jean-Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes,

op. cit., liv. III, cap. VIII, pp. 414-419. . O Contrato Social, op. cit., pp. 81-86.

120 «Ce sont les institutions nacionales qui forment le génie, le caractère, les gouts, et les moeurs d’un peuple, qui le font éter lui et non pas un autre(…)». Jean-Jacques Rousseau, «Considérations sur le Gouvernement de Pologne et sur sa Réformation Projettée» in Oeuvres Complètes, op. cit., cap. III, p. 960. Proyecto de

dos deputados ou representantes, por considerar que a soberania não pode ser representada, uma vez que ela consiste na vontade geral e esta não se representa:

«Os deputados do povo não são, portanto, nem podem ser, seus representantes, são apenas seus comissários; não podem tirar quaisquer conclusões definitivas. Qualquer lei que o povo, em pessoa, não tenha ratificado, é nula; não é lei. (…) no instante em que um povo se entrega a representantes, já não é livre; deixa de existir.»121

As grandes nações – ao contrário do que acontece nos Estados de pequenas dimensões, onde os cidadãos exercem directamente o poder soberano – estão cativas de representantes que frequentemente usurpam a soberania do seu povo.

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«Les députés du peuple ne sont donc ni ne peuvent être ses réprésentans, ils ne sont que ses commissaires ; ils ne peuvent rien conclurre définitivement. Toute loi que Peuple en personne n’a pas ratifiée est nulle ; ce n’est point une loi. (...)à l’instant qu’un Peuple se donne des Réprésentans, il n’est plus libre ; il n’est plus». Jean- Jacques Rousseau, «Du Contract Social ; ou, Principes du Droit Politique» in Oeuvres Complètes, op. cit., liv. III, cap. XV, pp. 430-432. O Contrato Social, op. cit., pp. 97-98.

No documento A democracia em Jean-Jacques Rousseau (páginas 87-91)