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10. Uma religiosidade que, no fundo, não supre o religioso, conforme as

2.4. Modelos teóricos que suportam a nossa investigação

2.4.1. Do individualismo à individualização

A crença no ‘metarrelato’ do progresso técnico-científico gerou muitas e diferentes atitudes. O individualismo foi uma delas51. O perfecionismo da

racionalidade técnica, com o seu corolário no progresso das tecnologias da informação, forjou uma nova sociedade, à que o sociólogo Manuel Castells

51 A sociologia atribuiu-lhe tanta importância que deu origem a um paradigma de representa-

ção moderna da sociedade. Deste modo, ao paradigma organicista (de Durkheim), juntaría- mos o individualista (de Weber) e o “crítico” (representantes da Escola de Frankfurt: Adorno, Horkheimer, From, Marcuse, Benjamin e Habermas).

chamou “sociedade em rede” (Castells, 1998: 23-24)52, que, não obstante

o esbatimento de fronteiras, conduz a um processo de individualização: “as nossas sociedades estruturam-se cada vez mais em torno de uma posição bipolar, entre a rede e o eu” (Castells, 2000: 33). Esta racionalidade técnica, forjada na era do capital, destrói, ou pelo menos desforma, a natureza rela- cional do indivíduo, na medida em que o remete para a esfera do privado, não só no campo social, mas em todas as dimensões da vida, exaltando o próprio sujeito, mesmo que, no final, ele seja conduzido a uma forma de viver centrada no “eu” de que fala Lipovetsky em A Era do Vazio (1983: 7), ou marcado pela incertezade fala R. Rorty (1984: 38).

Deste modo, o individualismo protege a satisfação das opções individuais e a liberdade que cada um tem em eleger (Nevite, 2006: 100-102); rejeitatotal- mente o caráter social do ser humano e sua tendência relacional; abre portas ao subjetivismo, colocando o próprio indivíduo como criador do objeto, impugnando-lhe a sua autonomia ontológica; estabelece uma mentalidade empírica, experimental e prática; no fundo, o individualismo dá lugar a uma visão da sociedade de “tipo mecanicista”, que concebe a sociedade como simples conjunto de indivíduos, descentrando-os e automatizando-os. O homem individualista, no dizer de Mardones, “orientado para o domí- nio do mundo, com um estilo de pensamento formal e uma mentalidade funcional” (1988: 31), criou, na sua comodidade egocêntrica, a “ditadura do aparato” de que fala Jaspers ou a “megamáquina” de Fromm53, que não

passam de “borregos laboriosos” de Steven Lukes, enterrados numa “razão instrumental” (Horkheimer)54. No fundo, esta configuração social funcio-

nal fabricou uma nova identidade, um novo tempo e uma nova velocidade, como que tudo se resolva com o “clicar” de um botão, como pretendeu a Kodak ao anunciar: “Prima o botão, nós fazemos o resto”. Esta fotografia da sociedade, forjada a partir do individualismo pragmático e colorida por diferentes tonalidades, deixou de ser a preto e branco, para se converter em apolítica e amoral. Esta nova visão do mundo é a consequência do crescente

52 Castells refere que entramos numa “nova forma de sociedade, a sociedade em rede, que se

caracteriza pela globalização das atividades económicas decisivas desde o ponto de vista estra- tégico, pela sua forma de organização em rede, pela flexibilidade e instabilidade do trabalho e pela sua individualização” (1998: 23-24).

53 Referindo-se a The Myth of the Machine de Lewis Mumford.

54 Durante um largo período, a modernidade foi comummente apelidada de “era da razão”.

Todavia, não se trata da “razão” de que se fala na filosofia, nem tão pouco da ciência pura, mas da razão técnica, da mecanização da sociedade, a que Horkheimer sabiamente chamou de “razão instrumental”. Como refere este autor, “a doença da razão radica na sua própria ori- gem, na aspiração do homem de dominar a natureza” (Horkheimer, 1973: 184; Ferrater-Mora, 1994: 3010).

processo de individualização, que se apresenta com contornos demasiado complexos para ser univocamente definido por expressões como: “fragmen- tação”, “flexibilização”, “autonomia” e muitos outros conceitos que, por mais expressivos que sejam, não representam mais que uma dimensão do próprio processo de individualização.

Detenhamo-nos, por instantes, em algumas correntes que abordam o pro- cesso da individualização: as correntes funcionais, lideradas por Parsons; o interacionismo simbólico da escola de Chicago; a crítica de Homans a Parsons por causa do reducionismo individualista (Homans, in Giddens, 1991: 81-112); a controvérsia sobre o positivismo, na década de 60 e 70, entre Adorno e Popper (Adorno et al., 1973), bem como, na década de 70, entre Luhmann e Habermas (Habermas, 1988: 309-419). Todas estas cor- rentes referem-se à dialética entre a sociedade e o indivíduo.

Com as contribuições de Beck e Giddens, a temática da individualização foi substancialmente modificada, principalmente, com a abordagem do conceito de modernização reflexiva (Beck, in Beck, Giddens e Lash, 1997: 13-74), propondo uma radical revisão da dialética indivíduo/sociedade. Deste modo, a individualização e a globalização surgem como duas caras do mesmo processo de modernização reflexiva. Segundo Beck (1998), nas sociedades diferenciadas, o que se incrementou é a separação e a diferen- ciação das pessoas nas suas relações mútuas, dando lugar a um processo de individualização que, sem dúvida, se encontra estreitamente ligado ao processo civilizacional.

Para Manuel Castells (1998) este processo explica-se a partir da individuali- zação do trabalho. Segundo este autor, a economia moderna estrutura-se em torno de redes globais de capital, gestão e informação e o acesso ao conhe- cimento tecnológico que constitui a base da produtividade e a competência. Neste contexto, o trabalho é cada vez mais individualizado, perdendo a sua identidade coletiva. Por isso, refere Castells que as sociedades estruturam-se cada vez mais em torno de uma posição bipolar entre a redee o eu, onde as redes globais de intercâmbios instrumentais conectam ou desconectam, de forma seletiva, indivíduos, grupos, regiões ou, inclusive, países, segundo a sua importância, para cumprir as metas processadas na rede, fragmentando, deste modo, os movimentos sociais.

A esta realidade não é alheio A. Touraine (1998), que subsidia esta temática referindo que a individualização dirige-se a um novo modo de socialização, a uma mudança de forma na relação entre indivíduo e sociedade, onde as crises sociais são vividas como crises individuais, provocando, por sua vez, a desinstitucionalização, entendida esta como a debilidade ou o desapareci- mento de normas codificadas.

Pela nossa parte, recorremos à definição de individualização de Loek Halman que inclui neste conceito os seguintes aspetos: i) um aumento da autonomia dos indivíduos no desenvolvimento dos seus próprios valores e normas que progressivamente se desviam do sistema tradicional de valores instituciona- lizados. ii) Deste modo, a autorrealização e a felicidade pessoal passaram a ser o coração do desenvolvimento de valores e de seleção de normas. iii) A individualização é o processo social e histórico no qual os valores, crenças, atitudes e condutas se baseiam progressivamente na eleição pessoal e depen- dem menos da tradição e das instituições sociais e do seu controlo social (Ester, Halman e De Moor, 1994: 7; Halman, 1995: 419-439).

Este mesmo autor, ao analisar os resultados do EVS de 90, refere que as pessoas estão cada vez mais inclinadas a rejeitar a autoridade tradicional, fenómeno que é visível no abrandamento do grau de confiança nas insti- tuições. As regras que a Igreja apresenta já não são tidas como referentes, facto que está patente na descida dos níveis de confiança nesta instituição e na diminuição da própria participação na Igreja (Halman, 1995: 422-423). Estes aspetos, que se podem traduzir por uma maior autonomia e emancipa- ção do sujeito, conduzem ao fenómeno da secularização (Halman e De Moor, in Díez Nicolas, J; Inglehart, R., ed. 1994: 30), que é uma das principais características da modernização, e, consequentemente, no dizer de Halman, a uma desintegração tanto institucional como social (Halman, 2003: 257). Compreende-se, assim, que as sociedades modernas caminhem progressiva- mente para uma adesão aos valores individualistas em detrimento dos valo- res tradicionais, levando, progressivamente, ao afastamento do religioso. Deste modo, os valores da individualização surgem associados negativa- mente à vivência religiosa. Rokeach (1973: 128) demonstrou que quem par- ticipa com maior assiduidade em celebrações religiosas revela maior dispo- nibilidade e propensão para ajudar os outros. Isto é, se a religião impulsiona a comportamentos de caráter altruísta, compreende-se que os indivíduos que a vivam não se identifiquem com os valores da individualização.

Esta mesma ideia é corroborada por Millán Arroyo (2004: 176) na sua Tese de Doutoramento, na qual afirma que a prática religiosa surge fortemente associada aos princípios tradicionais, enquanto o abandono desta mesma prática está associada às mentalidades modernas. Nesta mesma investiga- ção, os valores da individualização mantêm uma correlação importante com a variável idade, uma vez que as gerações mais jovens são as que mais assi- milam estes valores (Arroyo, 2004: 115).

Em Portugal, Jorge Vala analisa esta mesma dimensão da individualização através de uma pergunta do EVS de 90, a partir da qual se diagnostica as orientações desejadas na vida pública e privada. Elabora, para isso, duas

dimensões em que se manifestam, por um lado, os valores tradicionais e, por outro, os valores da modernidade. A modernidade remete para a indivi- dualização da vida social, que vai acompanhada por uma menor expressão dos valores de submissão e de uma posição mais crítica perante as insti- tuições de regulação social. Do lado oposto, encontram-se os valores mais tradicionais, com a importância da família, de uma vida mais simples e da autoridade. Estes resultados foram obtidos através de uma análise Fatorial de Componentes Principais (Vala, 1993: 234-235).

Destas análises, concluiu-se que a individualização está, sobretudo, asso- ciada às idades mais jovens e aos graus de instrução mais elevados. Todavia, em Portugal valoriza-se mais a autoridade e menos os valores individuais do que nos demais países europeus (Vala, 1993: 235-236).