2.6 CRIMINOLOGIA CRÍTICA
2.6.4 Do labeling approach: fomentador da mudança de paradigma
Uma grande virada desestruturadora nos estudos da Criminologia foi proporcionada pelas teorias do labeling
approach, o qual possui raízes no interacionismo simbólico de
Charles Cooley e Georg Mead e na etnometodologia, inspirada pela sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, sendo definido por Vera Andrade nos seguintes termos:
[...] o desvio – e a criminalidade – não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos
através de complexos processos de
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ANDRADE, V., 2003b, p. 34. 89
Sobre a necessidade deste pensamento passar dos muros da academia escrevi o artigo “Criminólogos do RAP”, publicado na Revista do IBCCRIM (BRUGGEMANN, 2012).
interação social; isto é, de processos formais
e informais de definição e seleção.90
Quem bem formulou as bases do labeling approach, comumente traduzida como etiquetamento ou rotulação, foi o sociólogo norte-americano Howard Saul Becker, autor da obra
The Outsiders, publicada no ano de 1963:
[...] os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em
particular e qualifica-las de marginais
(estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um ‘ofensor’. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etiqueta) [...].91
Os estudiosos do labeling tentam compreender, estudar, a criminalidade a partir do sistema penal, partindo das normas abstratas e passando até a ação das instâncias ditas oficiais, tais como política, judiciário, instituições penitenciárias, que são responsáveis por rotular, etiquetar os indivíduos como criminosos, tendo em vista que há sujeitos (todos nós) que praticam crimes e não “ganham” tal rotulação, não sendo vistos pela sociedade como criminosos. Portanto, quem diz quem é criminoso são as instâncias oficiais de controle social.92 Para se provocar uma reflexão sobre o tema que será estudado em outra parte do presente estudo, consigna-se, desde já, que a mídia dos dias atuais também é responsável por estigmatizar alguns selecionados.
Há uma grande mudança na definição da criminalidade, pois, como visto, a Escola Positivista investigava as causas do crime e a pessoa do criminoso, sendo que a nova teoria foca na reação social da conduta desviada e no impacto que o etiquetamento de criminoso gera no sujeito. Inclusive, a literatura
90 ANDRADE, V., 2003b, p. 205. 91 BECKER, 1971, p. 19. 92 BARATTA, 2002, p. 86.
criminológica afirma haver uma “revolução” de paradigma, utilizando-se do sentido Kuhnenao, pois o antigo paradigma investigava as causas da criminalidade e o novel investiga as condições, os processos de criminalização e das agências punitivas.
Outro ponto importante é a constatação de Lemert de que, uma vez estigmatizado pela primeira punição, o cidadão muda de identidade, assumindo a condição de criminoso e permanecendo em tal papel social. Assim, pode-se dizer que as pesquisas inspiradas no labeling approach derrubaram as cortinas das funções preventivas e reeducativas da pena, pois mostraram o contrário, ou seja, que o rotulado, após sofrer a primeira sanção, tem muito mais chances de abraçar a carreira criminosa do que se reeducar e retornar ao convívio social harmônico. E isto ocorre não porque este o indivíduo nasceu com DNA criminoso conforme pensava Lombroso, destaque-se. Além do próprio sujeito modificar sua identidade, a sociedade também transforma a imagem que tem deste sujeito, pois começa a identificá-lo de uma forma diferente, incidindo um processo de reinterpretação.93
Também restou fortemente abalado o tão propugnado
princípio da igualdade do Direito Penal, pois se constatou que a
grande maioria da população comete crimes94, afastando-se o pensamento até então difundido de que a prática criminal é “virtude” de uma pequena parcela. Acontece que somente alguns desses criminosos recebem o carimbo oficial de CRIMINOSO. E aqui reside, talvez, o grande aprofundamento da teoria crítica, no sentido de explorar, verificar quem são estas pessoas que são rotuladas e por quais motivos tal seleção ocorre. Como visto, Sutherland95 já deixou claro que os criminosos do colarinho branco estão imunes da persecução penal, sendo que no
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Nos dias atuais são muitos os programas que tentam mitigar essa mudança de interpretação, mostrando que o egresso do sistema penal deve ter uma chance, como o “Projeto Começar de Novo” do Conselho Nacional de Justiça.
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Todos somos criminosos. 95
É interessante anotar que os teóricos do labeling afirmam que o autor da conduta criminal não sofre influências de seu meio ambiente, conforme anotado por Vera Andrade (2003) na página 41 da obra ‘sistema penal máximo’, sendo que aqui reside um choque com a teoria de Sutherland, eis que o sociólogo dava importância às influências do meio ambiente.
presente trabalho verificar-se-á se a atuação midiática alterou tal previsão.
Deslegitima-se, assim, a Escola Positiva96, ao constatar-se que as estatísticas criminais são fruto da construção humana e não um fenômeno natural, ou seja, tais dados não refletem a realidade da criminalidade, pois só constam nas estatísticas os selecionados e definidos pelas instâncias oficiais de controle como criminosos. E quem são esses selecionados pelo sistema? Os membros da classe baixa, como já levantado por Sutherland.
Sobre medidas de política criminal, Veras traz, de maneira condensada, quais são as propostas emanadas no labeling
approach:
A política criminal formulada pelo labeling
approach volta-se para o sistema de
repressão, pois é ele que identifica e rotula o delito. Também propõe a redução do direito penal, que gera estigma e propicia e delinquência secundária. Busca soluções dentro do sistema social, sem alterá-lo estruturalmente, e por isso é considerada conservadora. Suas principais propostas são: 1) a descriminalização; 2) a não intervenção radical; 3) a instituição de programas de
recuperação e integração 4) o
aperfeiçoamento do due process of law.97
Apesar de toda a nova carga de informações valiosíssimas dessa revolução paradigmática proporcionada pelo labeling
approach, não houve superação do positivismo etiológico.
Inclusive, conforme se verá adiante, também a Criminologia Crítica não logrou êxito em derrubar o positivismo (academicamente pode-se dizer que sim; agora, no senso comum, permanece entranhado).
Após, veio a Criminologia dita crítica, a qual entra pela via da Criminologia da reação social e transborda, superando-a, como será apresentado a seguir.
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Deslegitima-se, também, o sistema penal posto. Isto, sem grandes dificuldades, pois como coloca Zaffaroni, em nossa região tal deslegitimação se dá pela evidência dos fatos. (ZAFFARONI, 1991, p. 67).
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