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1.3 O MAGISTÉRIO PRIMÁRIO SOB AS MARCAS DA PRESENÇA

1.3.1 Do Lar à Escola e a Profissionalização da mulher no Magistério Primário

O cenário brasileiro entre os séculos XVIII e XIX, o magistério foi exercido predominantemente por homens e a educação era direcionada para a formação de homens. Uma característica marcante desde a era colonial, quando a educação era ministrada por religiosos, e em substituição a esses, surgiram os primeiros professores para a ministração do ensino das “aulas régias” (ROSA, 2011, p. 3). Neste período, a educação de meninas e moças foi assegurada de forma diferenciada, pois, se destinava para as filhas dos grandes fazendeiros e das famílias burguesas, uma educação que se direcionava para a leitura e para a preparação das prendas do lar, com vistas ao casamento e aos cuidados dos filhos e as tarefas domésticas.

Nesse contexto de formação, o saber era diferenciado para homens e mulheres e promoveu uma relação desigual entre saber e poder e que conferiu ao masculino o poder de mando e domínio na sociedade brasileira. Poder que conferiu ao discurso masculino o poder de determinar o lugar social e a representação da mulher dócil, do lar e da maternidade. Uma trajetória do feminino sob as imposições masculinas. Considerando-se este ideário de mulher, o casamento era a meta a ser alcançada por toda moça de família.

A mulher era percebida e referenciada por um “corpo”, como expressão de sensualidade disponível para dar atendimento ao prazer masculino, sujeito por excelência da vida social, econômica e política (LOURO, 2013, p. 17). Nessa apreciação biológica, a

mulher foi sujeitada a um lugar social de subalternidade, na condição de ser controlado e localizado nos bastidores da vida social. Transitando nesta sociedade sob o olhar misógino da perfeição, da santidade e da fragilidade ou o seu extremo, da pecadora e transgressora da ordemsocial.

As mudanças nessa ordenação social estiveram diretamente relacionadas aos processos educativos, contexto de aprendizagem, de expressão da intelectualidade, de conquista de espaço social e a busca de prazer pela mulher. Momento, percebido como caminho de possibilidades de construção de uma condição feminina diferenciada, a partir do olhar e dos sentimentos da mulher, que provocaram mudanças no pensar e na autonomia do escrever no feminino, expressos na produção escrita de mulheres desde o século XIX. Algumas dessas mulheres conseguiram o feito de publicarem suas produces e nessas obras estavam impressos os discursos femininos sobre si, sobre a vida cotidiana, sobre as relações matromoniais, sobre as amizades, sobre os sonhos, os desejos, os devaneios e impossibilidades que passaram a ser compartilhadas com outras mulheres escritoras e leitoras desse periodo.

A mulher começou a transitar pelo espaço público somente pelo acesso à educação e à escrita. Inicialmente, as meninas, as moças, tornaram-se alunas no próprio recanto do lar e diante da ampliação da demanda social pela educação no Brasil, ampliaram-se a inserção feminina nas escolas das primeiras letras e chegaram às escolas normais, tornando-se normalistas, formação, que lhes assegurou o acesso ao magistério primário.

No cenário da educação primária, a mulher da classe média passou a ganhar maior autonomia no transitar do lar para o exercício profissional do magistério; a partir dessa inserção profissional, definida como lócus do feminino, a mulher brasileira constrói uma “outra” identidade de ser mulher, ainda que em um “lugar” profissional do “possível”. Nesta profissão, algumas mulheres alcançaram destaque ao tornarem-se mulheres letradas, escritoras com reconhecimento intelectual. Uma “nova” mulher que se apropria de saberes, a partir da formação e das experiências vivenciadas na docência e nessa caminhada de “aprendente”, vai se empoderando no exercício do saber-fazer e vai rompendo com as delimitações impostas às professoras primárias.

No Brasil e na maioria dos países ocidentais, o magistério se iniciou como profissão masculina, no entanto, a mulher vai se inserido no campo do magistério na medida em que vai se ampliando o número de escolas e de alunos e alunas, nas escolas elementares ou escolas de Primeiras Letras que passaram a ser instituídas em todas as cidades e vilas. Nesse contexto de expansão educacional, a educação de meninos seria ministrada por professores e a educação de meninas por professoras. Uma realidade educacional que permitirá a inserção continuada

de professorasprimárias.

Nessa nova configuração, o magistério primário se reveste de um “processo de trabalho exercido por homens e mulheres, em que o gênero assume as marcas da diferença no exercício profissional” (ROSA, 2011, p. 1). Pois, entre os sujeitos atuantes do magistério primário, a exigência de formação diferenciada, se efetivava baseada na percepção diferenciada da educação para menino e menina. Para os professores exigia-se uma formação para além do básico; para as professoras, o estudo básico e a preparação em bordado e costura a serem ensinados as alunas. Na verdade, a instituição de um currículo diferenciado que gerou uma desigualdade salarial entre professores e professoras.

A chamada “feminização” do magistério gradativamente vai crescendo, juntamente com a expansão do sistema educacional brasileiro como exigências das profundas transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais o país vinha passando. A contínua demanda por escolas pressionou a criação das escolas normais que tiveram como propósito a formação de docentes para dar atendimento à expansão do ensino primário. Louro (2007) observa que, a partir de 1874, a Escola Normal da Província do Rio Grande do Sul registrou o número de matrículas maior de alunas, se comparada com o número de alunos; fato também registrado em outras províncias. Uma alteração diferenciada nos interesses de alunas e alunos em relação ao magistério primário. Assim, gradativamente vai se observando que os homens vão abandonando a formação dos cursos normais e a mulher vai se tornando presença maciça nas escolas normais e no magistério primário.

O advento da República trouxe os ideários de modernidade, progresso e civilidade como símbolos constituintes da nação brasileira. Um cenário sociopolítico demarcado por mudanças significativas. O ideal republicano encenava a ampliação das atividades comerciais, industriais, e a constituição de um novo mercado de trabalho. E, diante das novas oportunidades econômicas, sociais e culturais, os espaços urbanos passaram a oferecer novas oportunidades para a atuação masculina e dessa forma, contribuíram para o a abandono dos cursos normais e a profissão docente, que passaram a buscar outros campos de trabalho promovidos pela “ampliação das atividades comerciais, maior circulação de jornais e revistas, a instituição de novos hábitos e comportamentos, especialmente ligados as transformações para a mobilização desse movimento” (LOURO, 2007, p. 449-450).

O contexto de construção do Estado e da identidade do cidadão republicano reforçou a ascendência do poder masculino e, dessa forma, este cenário sociopolítico brasileiro referendou a permanência de atividades e setores importantes como campo específico à atuaçãomasculina.

Em contrapartida, a luta da mulher por inserção no mercado de trabalho passou a demandar a escola e a formação profissional, todavia, um novo círculo de aprisionamento da mulher se instituiu no transitar da casa para escola, da escola para o trabalho e do trabalho paara casa, pois, passou assumer uma dupla jornada de trabalho, levando-se em consideração que ao assumer novos encargos profissionais, a mulher não deixou de lado as obrigações familiares.

A inserção da mulher no magistério primário ocorreu sem a retirada da mulher de seu destino primordial: o casamento, a maternidade e o lar. Assim, o magistério se tornou a única profissão possível para a mulher, na medida em que os setores dominantes da sociedade referendavam a docência feminina como extensão da maternidade e das demais características naturais de ser mulher como “dócil”, “amorosa”, “paciente” e educadora de crianças, vistas e reforçadas como atribuições essenciais para o exercício do magistério.

Nesse aspecto, a mulher estaria habilitada para cuidar e ensinar crianças e o magistério feminino estaria vinculado à tradição religiosa que, concebia o magistério como sacerdócio e não como profissão, mas como uma atuação feminina extensiva à função primordial do feminino: a maternidade; reconhecida como qualificação natural ao magistério, em um momento de ampliação da rede escolar e da necessidade contínua de novos professores para atendimento a demanda social pela educação.

O período da Primeira República foi marcado por uma forte cultura política autoritária e excludente que determinou um processo de construção da cidadania a partir de critérios sexistas, étnicos, raciais, classistas e culturais, concebidos então, como fatores estruturantes da vida em sociedade e que estabeleceram para a mulher, a condição de dependência e de subalternidade. Compreendendo-se que a educação republicana não se voltava para a emancipação feminina, seu ideário progressista e civilizatório manteve o controle disciplinador sobre a mulher tornando-a sujeita ao desrespeito e aos processos de discriminação e à exploração de toda ordem.

Nesse contexto político, observou-se o empenho do poder instituído em promover a ampliação da escola primária como condição precípua para a efetivação dessa nova ordem política, a República, sob os ideários da modernização capitalista a ser alcançado por um novo cenário educacional que viesse subsidiar as bases do nacionalismo. Para tal, tornava-se necessário romper com o analfabetismo pela ampliação do número de escolas e pela promoção de acesso aos grupos populares, mantidos fora dos processos escolares. A grande preocupação do governo se centrava na instituição de uma educação nacional que promovesse a redução do analfabetismo, o sentido de brasilidade e o sentiment de pertença nacional por

via dos processos de civilidade do povo brasileiro.

A escola nesse cenário se transformou em veículo principal para a efetivação dos valores nacionalistas, base norteadora das condições de pertencimento e de vir a ser enquadrado como cidadão republicano. Segundo Souza (2011), a coletividade somente se reconhece pela força da abstração e se reconhece pelos elos invisíveis referendados, pois nesse processo de reconhecimento e sentimento de pertencimento se expressam por laços de solidariedade coletiva, a partir da construção de laços pautados em fatos e conjunturas que estabelecem uma liga identiária que cimenta os laços sociais, culturais e políticos.

Diante desse papel social da escola, o sistema educacional se amplia no cenário nacional e promove o acesso de grupos sociais, até então excluídos, entre esses, a inserção mais ampliada das meninas e moças que passaram a transitar do lar para a escola, ampliando- se a formação continuada mediante a criação de escolas “normais” no país, requisito de formação para o mercado de trabalho na área da educação.