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Do Mandado de Segurança n. 1114

No documento LISTA DE TABELAS (páginas 43-54)

Capítulo II – DA ANÁLISE DOS CORPUS: (1) ethos , (2) argumentação e (3)

2.1 Do Mandado de Segurança n. 1114

o destinatário é necessariamente levado a construir uma representação do

locutor, que este último tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de

maneira bastante variável

Segundo o seu gênero, por isso a necessidade de uma análise que também

escape à mera convergência entre os sentidos dos enunciados e a personalidade do

locutor. O nosso intuito é, pois, também demostrar as paixões diferentemente

despertadas com o resultado dos julgamentos, as disposições que se criaram na

população, uma ética virtuosa, segundo HOOFT (2013), que ultrapassa a ética do

dever, bem como as formas em que se articulam como meios de legitimação do ato

retórico.

2.1 Do Mandado de Segurança n. 1114

Fundada em 1945, por um dissidente da igreja católica apostólica romana, Dom

Carlos Duarte Costa, a igreja católica apostólica brasileira distanciou-se de sua

antecessora, sobretudo por desacreditar o Papa como uma figura indefectível, e por

caracterizar-se como menos severa, por criticar o celibato dos sacerdotes e a

insolubilidade do casamento e, segundo consta, conquistando fiéis por fazer o que

sua “concorrente” somente faria quase duas décadas depois, a saber, pregar as

missas em português.

Embora uma defensora do divórcio, sua separação com da igreja apostólica

romana não foi consensual. De desentendimentos de natureza burocrática

administrativa até a excomunhão de Dom Carlos, houve muitos incidentes, inclusive

a sua prisão, que, ao que tudo indica, pretendia impedir a propagação de um

catolicismo independente.

Em 1949, o Estado já era laico (aliás, desde 1889 o era, com a proclamação da

República). A propósito, e mais precisamente, segundo LAFER (2009, p. 227), “o

Brasil tornou-se um Estado laico com o Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria

de Ruy Barbosa. ”.

Na análise do caso, portanto, poderemos observar com clareza, nos limites

lógicos da decisão desfavorável ao fundador da Igreja Apostólica Brasileira, que,

embora a religião não seja tratada como oficial, é-lhe atribuída uma condição

contraposta de legitimidade

Mesmo hoje, aliás, fica difícil adotar-se um conceito absoluto de laicidade

quando o Estado passa a ser influenciado pelas chamadas bancadas evangélicas e

pelas políticas afirmativas das religiões de matriz afro-brasileira adotadas por várias

instituições de ensino.

A influência da igreja católica ainda era, de fato, muito forte, e não foi em outro

ano que o então Presidente da República (Eurico Gaspar Dutra) capitaneou medidas

políticas e administrativas para obstar o movimento de expansão da Igreja Católica

Apostólica Brasileira, razão pela qual a entidade se viu obrigada a impetrar um

Mandado de Segurança perante o Supremo Tribunal Federal na pretensão de ver

garantidos os direitos de propagação da sua fé; pedido que, todavia, foi-lhe negado.

O mandado de segurança é uma ação (instrumento processual) criada com o

intuito de, basicamente, preservar direitos verificáveis de plano e coibir abuso de

autoridade. A Lei n. 1533, de 21 de dezembro de 1951 assim previa:

Art. 1º - Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido

e certo, não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente ou com

abuso do poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por

parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções

que exerça.

Na Constituição Federal, promulgada em 1988, foi assim disposto:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

(…) LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido

e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o

responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou

agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

E, atualmente, está prevista na Lei n. 12.016/2009:

Art. 1o. Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e

certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que,

ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer

violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de

que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.

Segundo FUX (2010, p. 13):

O Mandado de Segurança é, pois, tradicionalmente categorizado como

instrumento processual constitucional assegurado ao particular, seja pessoa

física ou jurídica, brasileiro ou estrangeiro, na defesa de direito líquido e certo,

individual ou coletivo, não amparado por habeas corpus ou habeas data,

sempre que este for lesado (tutela repressiva) ou ameaçado de lesão (tutela

preventiva) por ato ilegal, ou que implique em abuso de poder, praticado pela

Administração Pública, através de seus agentes, na representação direta ou

indireta da entidade pública.

Nesse aspecto, ato de autoridade é toda manifestação ou omissão do Poder

Público ou de seus delegados, no desempenho de suas funções, ou a

pretexto de exercê-las. Por autoridade, entende-se a pessoa física investida

de poder de decisão dentro da esfera de competência que lhe é atribuída pela

norma legal.

No caso, em detrimento da liberdade religiosa, foi decidido que a Igreja Católica

Apostólica Brasileira não poderia promover seus cultos ou se utilizar de vestes e

apetrechos em suas liturgias que causasse confusão entre os fiéis da Igreja Católica

Apostólica Romana, a igreja reconhecida, à época, como “inspiradora”.

A igreja católica apostólica romana ainda é hoje forte, sem dúvida, e os

resquícios de sua influência ainda são visíveis nas salas de audiência e

repartições públicas que exibem cruzes e bíblias, bem como no preâmbulo da

Constituição Federal que invoca a palavra “Deus”, e que inclusive já foi objeto de

discussão perante a própria Suprema Corte (caso onde foi concluído que o

preâmbulo não é fonte de direito, mas tão somente texto que inspira interpretação).

De acordo com MAINGUENEAU (2010, p. 65)

A análise do discurso é de toda maneira crítica pelo simples fato de que não

autonomiza os textos, de que os relaciona a práticas sociais e a interesses

situados. Por exemplo, o estudo de textos religiosos ou científicos numa

perspectiva da análise do discurso exige que se levem em conta as

instituições que produzem e gerenciam esses textos e não apenas os seus

conteúdos, por mais prestigiosos que eles sejam.

Passemos, então, à análise do MS impetrado por D. Carlos. Vê-se da cópia do

teor julgamento (Anexo I), que suas 35 (trinta e cinco) laudas datilografadas revelam

um enunciado de defesa à religião na oportunidade (1949) tida por “oficial” e, quando

se cogita de oficialidade, logo se pensa em autoridade competente. No chamado

“acórdão” (resultado do julgamento), que pressupõe debate e, a toda evidência,

acordo, vê-se que é proferido pelo Supremo Tribunal Federal (órgão do Estado) por

meio de seus ministros, o que, por si só, denota o intento da pregação. Ao optar o

legislador (ou seja, o próprio Estado) por designar seus juízes (ainda que de grau mais

elevado Tribunal) como se titulares de Ministérios o fossem, pretende-se incutir a ideia

de que, ao tempo em que são instrumentos de propagação de uma doutrina, são

também administradores de sacramentos.

Note-se que, não bastasse essa denominação de cunho eclesiástico, o título

de Ministro (cabe notar, atualmente garantido por lei8), não raro, vem acompanhado

de imponente pronome de tratamento.

Logo na primeira página do julgado, o relator é, na mera identificação do caso

(p. 1 do acórdão), tratado por excelência: RELATOR: - O Exmo. Sr. Ministro Lafayette

de Andrada (grifos nossos). Sendo tal postura repetida (no início da narração do

relatório, p. 2): RELATOR: - O Exmo. Sr. Ministro Lafayette de Andrada (grifos nossos)

Veja-se que, quando o trato por Exmo. não aparece (e cabe aqui também

sobrelevar, é recomendado pelo Manual de Redação da Presidência da República9),

o texto não deixa de dispensar o tratamento de Sr. Ministro a nenhum dos magistrados

que participaram do julgamento: O SENHOR MINISTRO LAFAYETTE DE ANDRADA

(p. 2); O SR. MINISTRO MACEDO LUDOLF (p. 9); O SENHOR MINISTRO ABNER

DE VASCONCELOS (p. 11); O SR. MINISTRO LUIZ GALLOTTI (p. 15); O SR.

MINISTRO HAHNEMANN GUIMARÃES (p. 16); O SR. MINISTRO RIBEIRO DA

COSTA (p. 23); O SR. MINISTRI EDGAR COSTA (p. 26); O SR. MINISTRO

OROSIMBO NONATO (p. 28); O SR. MINISTRO ANNIBAL FREIRE (p. 32); O SR.

MINISTRO BARROS BARRETO (p. 35).

8 “Os membros do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos, do Superior Tribunal

Militar, o Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Superior do Trabalho têm o título de Ministro; os dos

Tribunais de Justiça, o de Desembargador; sendo o de Juiz privativo dos outros Tribunais e da

Magistratura de primeira instância.” (art. 34, da Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979).

9 “(...) o emprego dos pronomes de tratamento obedece à secular tradição. São de uso consagrado:

Vossa Excelência, para as seguintes autoridades: (...) do Poder Judiciário: Ministros dos Tribunais

Superiores;” (Capítulo II, item 2.1.3., “c” - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/manual/manual.htm -

grifamos)

Não se pode perder de vista que, quando se fala em ethos, não se pensa na

imagem do narrador, mas na do enunciador, que só pode ser detectada numa

totalidade. Trata-se o discurso, portanto, antes de tudo, do Estado-Juiz no papel de

enunciador se valendo das qualidades fundamentais da prudência (phronesis), da

virtude (aretè) e da benevolência (eunoia) para construir uma imagem positiva de si e

estabelecer credibilidade e autoridade.

Segundo MAINGUENEAU (2008, p. 13), “a eficácia do ethos reside no fato de

ele imiscuir em qualquer enunciação sem ser explicitamente enunciado”, razão pela

qual não é por outro motivo que, no caso, o discurso em análise, por si só, revela-se

(i) razoável ao assim julgar, na medida em que emite ordem, a princípio, fundamentada

na vontade do povo (foram os governantes, mandatários do povo, que um dia

reconheceram o catolicismo como religião oficial); (ii) virtuoso, porque transmite uma

ideia de sinceridade e simplicidade (tem o Direito e está com a razão aquele que

observa a religião supostamente oficial); e (iii) complacente, na medida em que se

mostra desejoso de servir aos interessados do processo e à população (auditório).

Assim é que, afastada a possibilidade de o público ignorá-lo ou recusá-lo, o

Supremo Tribunal Federal constrói sua imagem de autoridade por meio do próprio

discurso, evidenciado, pois, pelo enunciado. Para MAINGUENEAU (2008, p. 29),

o poder de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de ele

constranger o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja

ele esquemático ou investido de valores historicamente especificados.

O ethos é, então, produzido pelo discurso, que se diferencia do ethos

pré-discursivo e afasta o conceito de discurso de uma opinião prévia. Como bem lembra

Romualdo (2008, p. 215),

a oposição ethos prévio e ethos produzido no discurso é muito parecida com

aquela que Aristóteles propõe, afirmando a necessidade de elaborar o ethos

no discurso em oposição ao ethos construído pelo que se sabe do orador

No voto condutor que determinou o julgamento em desfavor da Igreja

Apostólica Brasileira, o então Ministro Lafayette de Andrada, relator do processo,

asseverou que, conquanto a Constituição vigente garantisse liberdade tanto de

consciência quanto de religião, a liberdade de culto é aquela “que não contraria a

ordem pública ou aos bons costumes”, e, em outro trecho, citando parecer prolatado

pelo então Consultor-Geral da República, aduziu que, quanto aos rituais da Igreja

Apostólica Brasileira, incluindo o culto, “tudo é feito com o objetivo de mistificar e

confundir”.

Vale dizer, presume-se por parte do julgador a má-fé do interessado, que

pretende apoderar-se dos direitos pertencentes à outra Igreja (a “oficial”), para

negar-lhe o provimento jurisdicional buscado.

Como bem lembra BITTAR (2015, p. 93-94), “o discurso representa sempre

uma tomada de posição do sujeito falante com relação aos elementos de sentido de

que dispõe”, e todo ato de linguagem, portanto, enquanto ato de construção de sentido,

revela-se um ato de escolha, e não só de valores, mas também “de estruturas, de

formas, de significância, de objetivos, de impressões, de efeitos retóricos, de

consequências, de afirmação de consequências factuais. ”.

No início de seu voto, o Ministro Abner de Vasconcelos chega a asseverar que

“o mandado de segurança ora em julgamento versa a respeito do mais delicado

assunto que possa interessar ao espírito humano e se relaciona diretamente com a

ordem pública” (p. 11)

E, no voto do Ministro Hahnemann Guimarães (p. 16 do Anexo I), o então

arcebispo do Rio de Janeiro, D. Jaime de Barros Câmara, é tratado por “S. Eminencia”

(sic), e não por “Sua Excelência” ou “Sua Reverendíssima”, como dispõe o protocolo.

“Eminencia” é pronome de tratamento dispensado aos cardeais, conselheiros mais

íntimos do Papa que compõem, inclusive, o Colégio que o elege. Vê-se, pois, ter-lhe

sido conferido um acolhimento próprio àquele que está logo abaixo do chefe da Igreja

Católica.

A leitura que se faz é a de que, à exceção de “Sua Santidade”, tratamento

concedido ao Sumo Pontífice, todos os demais membros da Igreja Católica eram tidos

pelas autoridades da república com os mais formais e respeitosos títulos.

A ironia é que o Ministro Hahnemann Guimarães foi o único membro do

colegiado a votar pela liberdade do culto requerida pelo autor da ação. Pautado no

que chamou de “orientação positivista” (fls. 19), o Ministro Hahnemann Guimarães faz

alusão ao direito positivo, ou seja, à submissão ao conjunto de princípios e regras

postos no ordenamento (legalidade), para defender o culto pretendido pela ação

mandamental, cujo embaraço era vedado pela Constituição vigente de 1946: Art. 31.

À União, aos Estados, ao Dist. Federal e Municípios é vedado: (...) II – estabelecer ou

subvencionar cultos religiosos, ou embaraçarar-lhes o exercício.

Porém, como visto no acórdão, foi o único voto dissidente. A esmagadora

maioria, de forma unânime no conteúdo de seus votos, considerou a pretensão do

autor não uma busca pelo direito de liberdade de culto, mas um ato de afronta à ordem

pública, a reclamar a intervenção do Estado por meio de seu regular exercício de

poder de polícia. O Ministro Ribeiro da Costa chegou a afirmar literalmente que, a seu

ver, estava “na órbita do poder de polícia traçar as medidas coercitivas, não da

liberdade de culto” (p. 24, do Acórdão – Anexo I). Nos termos da argumentação por

ele defendida:

[...] a liberdade de culto - seja manifestada subjetivamente ou ostensivamente,

impossível é impedi-la; quando, porém, a liberdade de culto pode atentar

contra a ordem pública, quando essa liberdade de culto se exterioriza em atos

materiais que podem constituir elementos de perturbação da ordem, incumbe,

necessariamente, ao poder de polícia impedir que esses atos de realizem

com aquelas consequências, resguardando, portanto, a ordem pública. (fls.

24, do Acórdão – Anexo I)

[…] as providências adotadas pela polícia não atentam contra a liberdade de

culto propriamente. Se atentassem contra essa liberdade, estou certo,

conforme salientei no início deste (sic) voto, de que a medida ora pleiteada

teria, nos termos da Constituição, o apoio integral desta Corte (sic). Não é,

porém, sob esse aspecto que se apresenta o pedido. Este visa permitir à

associação religiosa impetrante reunir-se em praça pública da maneira já

exposta. Não me parece que convenha à manutenção da ordem conceder tal

autorização, porquanto é direito que não pode ser recusado à Igreja Católica

Apostólica Romana – cujo culto é reconhecido e secularmente praticado em

todos os países do mundo (fls. 25, do Acórdão – Anexo I)

Não há dúvidas de que o discurso da laicidade fora relativizado pela ainda

forte influência da Igreja Católica Apostólica Romana, cujo direito, como se viu,

foi assegurado de ofício e em relação a toda comunidade internacional. Segundo

o Ministro Abner Vasconcelos em seu voto (p. 12):

Sentindo o prestígio universal da Igreja e o reflexo da consciência de todas

as camadas sociais, o Constituinte de 1891, embora pelas contingências da

época, fosse levado à separá-la do Estado, nem por isso cometeu o erro

político de desconhecer a influência altamente benéfica da religião para a

permanência do alto nível moral do povo brasileiro.

Isso denota, pois, o trato pelo Estado da questão da religião como pilar de

nacionalidade, justifica a oficialidade do catolicismo da Igreja Católica Romana e, por

conseguinte, como vimos, reforça o caráter de autoridade do enunciador.

Essa autoridade é sempre presente nas decisões judicias que, embora tenham

evidentes conteúdos diferentes, revelam uma imagem de poder construída não

individualmente em cada caso levado ao Estado, mas no conjunto de manifestações

por ele emanado. FIORIN (2008, p. 56) ensina que:

Quando se fala em ethos, não se pensa na imagem do narrador, mas na do

enunciador. (...) Sua imagem só pode ser detectada numa totalidade (...) Não

se pode apreender o ethos do enunciador numa obra individual, porque,

nesse caso, estar-se-ia captando uma imagem que seria a do narrador (...) O

ethos do enunciador é um espessamento semântico produzido pelo discurso.

O enunciador, portanto, não é uma instância psicológica, que seria a fonte

subjetiva do texto, o psiquismo responsável pelo discurso, mas é uma

construção semiótica. Não se trata do autor real, mas de uma imagem do

autor, do autor implícito. Esse autor só pode ser inferido duma totalidade

constituída para fins de análise.

Quanto às matrizes argumentativas presentes no julgado, vê-se que gravitam

em torno de uma ideologia de oficialidade que justifica um discurso político-social da

religião oficial e que, por sua vez, contamina o discurso jurídico.

Todo texto jurídico recebe, naturalmente, influxos de diversas ordens. Segundo

BITTAR (2015, p. 134), são eles:

a) influxos subjetivos individuais, quando se percebe como latente a

psicologia do locutor textual; b) influxos ideológicos, pois as escolhas estão

sempre presentes, de modo que, seja esta uma escolha das respostas

político normativa, seja esta uma resposta que adapta a norma jurídica aos

valores e imposições de uma época..., sempre haverá a presença da

ideologia na formação do próprio texto a se enunciar; c) influxos socioculturais,

pressupostos em toda prática do conhecimento, que é sempre partilhado,

vivido e construído em interação contínua pela intersubjetividade, ante os

fluxos e refluxos da dialética dos valores sociais.

A despeito da laicidade em 1949, instituída com o advento da República (1889),

a influência da Igreja ainda era marcante naquele momento.

A Constituição do Império, de 25 de março de 1824, inicia-se com “EM NOME

DA SANTÍSSIMA TRINDADE” e, no artigo 5º, preconiza que “A Religião Catholica

Apostólica Romana continuar[ia] a ser a Religião do Império”, sendo que, no artigo

103, era previsto ser condição para se aclamar o Imperador prestar o juramento de

“manter a Religião Catholica Apostólica Romana”.

E a mistura desordenada dos assuntos do Estado e da Fé também seguia o

sentido contrário; pelo artigo 102 da mesma Constituição do Império, cabia ao

Imperador, então Chefe do Poder Executivo, “nomear Bispos, e prover os Benefícios

Eclesiásticos” (inciso II), bem como “conceder, ou negar o Beneplácito aos Decretos

dos Concílios, e Letras Apostólicas, e quaisquer outras Constituições Eclesiásticas

que se não opuserem à Constituição” (inciso XIV).

Passados todos estes anos, a vigente Constituição de 1988 ainda foi

promulgada, expressamente, (i) “sob a proteção de Deus” (preâmbulo); (ii) crucifixos,

entre outros símbolos religiosos, ainda se mostram presentes em destaque em

repartições públicas; e (iii) “Deus seja louvado” ainda é impresso pela Casa da Moeda

nas notas de reais, o que denota, ao menos, um respeito significativo ao divino.

Dito de outro modo, na medida em que os representantes do povo (deputados

e senadores) permitem que os assuntos da igreja se tornem questões de Estado, não

passa a ser surpresa falar-se em nação dotada de religião oficial.

A partir do momento em que se colocam em votações propostas de uma

doutrina religiosa preferida pela maioria, o advento de leis estipulando tipos, padrões

e formas de culto torna-se uma consequência natural e, uma vez imposta por lei, não

há como o discurso jurídico adotado pelos Tribunais (frise-se, também poder do

Estado), defender uma liberdade religiosa diversa.

Com efeito, “todo discurso dominado é tecido de discursos dominantes

integrados a ele” (MAZIÈRE, 2007, p. 61). O discurso jurídico revela-se, portanto,

como nada além de um exercício argumentativo em favor da norma positivada, e a

serviço da ideologia que materializa, ou seja, no caso, de uma religião melhor ou de

uma religião mais adequada. O argumento desenvolvido no discurso jurídico, então,

não parte de uma verdade, mas alicerça-se em um ideal verossímil, enunciado em um

discurso religioso anterior. O conteúdo da lei é, portanto, propagado a um enunciatário

que foi persuadido antes, por meio de um discurso político ou por um discurso religioso,

que se revela, na verdade, em um pré-discurso jurídico.

No MS n. 1114 é possível verificar-se a presença de várias técnicas

argumentativas. Ao final de seu voto, o Relator do processo, o Ministro Lafayette de

No documento LISTA DE TABELAS (páginas 43-54)

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