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S. Martinho de Cedofeita, Porto, (2007), p.27.

1.21. Do Modernismo ao Português Suave

No primeiro quartel do século XX, a arquitetura em Portugal resumiu-se a um ecletismo caracterizado por “um colorido especialmente tradicionalista, neoromânico e

ainda neomanuelino, ou marcado pela fórmula incerta da «casa portuguesa», produto do fim de século nacionalista”59. Em meados dos anos 1920, este variado discurso arquitetónico foi rompido por uma estilização modernizante. Com as mudanças políticas de 1926, deu-se início a uma vaga de obras públicas e privadas que, procurando representar um tempo novo, tornaram possível o aparecimento da linguagem modernista em Portugal. Neste advento, três obras se destacaram: “os

projectos dum cinema-teatro, duma universidade técnica e dum hospital: o «Capitólio», o «I.S.T.» e o pavilhão de Rádio do Instituto de Oncologia (.), com três autores: Cristino da Silva, Pardal Monteiro e Carlos Ramos. Nestes três projectos se propôs uma situação inteiramente nova à arquitectura portuguesa que nessa linha modernista- racionalista se desenvolveria durante uma dezena de anos, referenciada por Le Corbusier e Gropius, e também por Mallet-Stevens”60.

Cristino da Silva (1896-1976) viu este estilo como sendo o “do futuro, embora fosse

preciso «desaprender» anos de formação, que se reputava de sólida. «Desde a construção à solução espacial, projectava-se, ao contrário de todas as regras, sedimentadas por séculos de experiência do arquitecto, que lhe haviam ensinado»: paredes delgadas; coberturas planas; envidraçados metálicos metidos em rectângulos recortados na parede, sem guarnecimentos nem juntas; «palas» sem colunas bem proporcionadas; pilares em betão entalados nas paredes; reboco pintado em arestas vivas sem capeamento de pedra ou cunhais de protecção.”61. Nestes moldes desenhou este arquiteto o liceu de Beja, projeto com que venceu o concurso público que revelou, deste modo, o novo gosto oficial. Em sintonia com o regime afirmaram-se os construtores privados, que acompanharam a preferência governamental pela linguagem modernista, adesão ilustrada pela revista feminina Eva, que nesse mesmo ano, apresentou como prémio de Natal para as suas leitoras uma moradia no mesmo estilo moderno racional, da autoria de Cristino da Silva.

Para além destes três arquitetos, um outro nome destacou-se no panorama construtivo nacional, Cassiano Branco (1898-1969), para Nuno Portas, “a personalidade mais

59

FRANÇA, José-Augusto, O modernismo na arte portuguesa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa – Ministério da Educação, 3ª edição, (1991), p.61.

60

FRANÇA, José-Augusto, O modernismo na arte., p.62.

61

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje seguido de Evolução da arquitectura moderna em Portugal, Livros Horizonte, 2ª edição, (2008), p.175.

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inventiva e mais reprodutiva na marca urbana que deixou”62, e para José-Augusto França, “a personalidade mais original e mais consciente de valores estéticos no

conjunto do modernismo arquitectónico nacional, que no «Éden», considerado na totalidade do projecto inicial, teve o seu momento mais alto”63. Estes foram os principais nomes da geração de 27, que Carlos Ramos (1897-1969) chamou de “geração do compromisso”, que incluiu também Jorge Segurado (1898-1990), autor da Casa da Moeda, em Lisboa; Adelino Nunes (1903-1948), arquiteto dos Correios e Telefones do Estoril, dos Correios de Setúbal e da Emissora Nacional em Barcarena; Cottinelli Telmo (1897-1948), que desenhou a Estação Fluvial Sul e Sueste, em Lisboa; Paulino Montês (1897-1988), autor de diversos bairros económicos e planos de urbanização; Rogério de Azevedo (1898-1983), cujo maior contributo para a arquitetura modernista em Portugal foi a garagem de O Comércio do Porto; Gonçalo Melo Breyner (1896-1947); Norberto Correia; Raul Martins (1892-1934); e Veloso Reis Camelo (1899-1985). Graças a estes autores, construíram-se entre 1925 e 1938 cerca de trinta obras, “das quais duas ou três obras-primas da história da arquitectura

portuguesa tout court e, no nosso entender, único momento em que se repercute neste país, e quase sem atraso, um movimento de vanguarda internacional”64.

Com o avançar dos anos 1930, o modernismo tornou-se dificilmente defensável através de exemplos oficiais dos regimes politicamente afins ao Estado Novo. Pressionado pelos violentos ataques dos tradicionalistas nacionais, “melhor pareceu a

Duarte Pacheco impor uma inflexão ao discurso arquitectónico que ele próprio fizera pôr em marcha, no projecto de Pardal para o I.S.T.”65 Já “não chegava fazer caixotes

funcionais, era necessário embrulhá-los em papel de memória e memória chamava-se «rústico» (as raízes do povo) e «joanino» (as raízes do poder, o sumo do império) ou, melhor ainda, a colagem de ambos”66. Nesta tarefa contou desde logo com a colaboração de um dos pioneiros modernistas, Cristino da Silva, que revelara já em 1930 um pendor monumentalista no projeto de prolongamento da Avenida da Liberdade apresentado no Salão dos “Independentes”. Em 1938, Cristino da Silva começou a trabalhar no projeto que marcou “a involução na sua obra – a qual

determinaria a inteira involução da arquitectura portuguesa, regressada, de modo estilizado, a uma visão tradicionalista das formas e dos símbolos”67. Tratou-se da Praça do Areeiro, em Lisboa, que não só refletiu a mudança do gosto oficial, como se

62

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje., p.183.

63

FRANÇA, José-Augusto, O modernismo na arte., pp.65-66.

64

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje., p.174.

65

FRANÇA, José-Augusto, O modernismo na arte., p.73.

66

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje., p.185.

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O MRAR e os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX 29

afirmou como a praça referência do regime salazarista. Desenhada segundo um estilo pretensamente tradicional, carregado de um barroco severo e espanholado, a Praça do Areeiro trouxe com ela o início do fim do modernismo arquitetural dos anos 20-30, e em pouco tempo, “esse estilo bastardo havia de se espalhar pela cidade (.) conforme

um código rigorosamente vigiado a que os melhores e os piores arquitectos se sujeitaram”68 ao longo dos “cinzentos anos 40”69.

A década de 1940 começou com a Exposição do Mundo Português, comemorativa do oitavo centenário da nacionalidade e terceiro da independência restaurada no século XVII, que se realizou numa Europa em guerra. Neste “local de encontro ideológico,

laboratório máximo de adulteração da linguagem modernista, participam quase todos os arquitectos da nova geração, com especial relevo para Cottinelli Telmo e Cristino da Silva”70. Como referiu N. Teotónio Pereira, “os pioneiros do racionalismo lisboeta

aderiram num ápice aos figurinos oficiais, participando activamente até na respectiva elaboração”71. O destino não podia ter sido mais irónico, pois “o punhado de valorosos

arquitectos que tinham conquistado para a sua classe profissional posição menos subalterna, identificavam-se com os sonhos do regime”72. O entusiasmo com que conceberam o conjunto expositivo “tem um inequívoco sentido: o Regime tinha obtido

o consenso dos seus arquitectos”73.

No ano seguinte à Exposição de Belém, o regime alemão, apesar de imerso numa guerra de trágicas proporções e consequências, enviou à Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, a exposição Moderna Arquitectura Alemã, acompanhada pelo seu organizador, o arquiteto-chefe do Terceiro Reich Albert Speer. “A exposição teve

acolhimento oficial condigno (.) e a visão nazi, completando a lição salazarista da magna exposição de 40, contribuiu, poderosa e definitivamente, para liquidar o discurso modernista internacional na arquitectura portuguesa”74. O primeiro modernismo português terminou assim sem apelo nem agravo no início dos anos 1940, “enterrado por quem o propusera, por estes arquitectos que a vida venceu ou

que a ela não puderam nem souberam impor-se, geração individualista, sem coesão de classe, nem programa ou actividade cultural comum”75. Carlos Ramos, anos mais tarde entrevistado por Nuno Portas, não se coibiu de responder à pergunta repleta de

68

FRANÇA, José-Augusto, O modernismo na arte., p.74.

69

PORTAS, Nuno, Arquitectura e urbanística na década de 40, Os 40 anos na arte portuguesa: a cultura nos anos 40. Colóquios, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, (1982), p.37.

70

PEREIRA, N. Teotónio, FERNANDES, José Manuel, A Arquitectura do Fascismo em Portugal, Arquitectura, nº142, (jan.-fev.1981), p.43.

71

PEREIRA, N. Teotónio, Arquitectura dos Anos 50 em Lisboa, Arquitectura, nº148, (jan.-fev.1983), p.59.

72

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje., p.185.

73

Ibidem.

74

FRANÇA, José-Augusto, A arte em Portugal no século XX (1911-1961), 3ª Edição, Venda Nova, Bertrand Editora, (1991), p. 257.

75

30 O MRAR e os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX

espanto formulada pelo seu entrevistador:

“- Mestre Ramos, porquê «a débacle» de todo o grupo, sem resistência quando após

1935, foram vocês mesmos os mais dotados que do dia para a noite se passaram para o estilo nacionalista, imposto por governantes (.) (nacionalista cozinhado com regional, romano e ariano) e desenharam afinal os grandes protótipos (.)?

- Olhe, porque as ideias e teorias modernas eram por nós mal conhecidas, não se podia dizer que tivéssemos grandes convicções sobre o que fazíamos, mas a verdade também é que não tínhamos outro trabalho, sabíamos que os projectos seriam rejeitados ou emendados se não fossem conformes à ‘expressão nacional’”76.

Por um lado, a ausência de uma sólida formulação ideológica fez com que “o

movimento modernista português dos anos 30, ao contrário do espanhol, do francês, do italiano, do alemão, seja o mais frágil (.). E assim o «funcionalismo» seria para estes homens mais um gosto – a que os de fora chamavam mau-gosto e os do grupo gosto simplificador – e um receituário de plantas e processos construtivos”77. Por outro lado, a classe sentiu a cultura de repressão e censura que o regime começou a mostrar com exuberância, desprezando a liberdade de criação e a dignidade profissional78. A burocracia dos ministérios e serviços prevaleceu “na barragem às

inovações de linguagem ou mesmo de programa, defendendo-se pela adopção de projectos-tipo, quase anónimos, nas escolas, liceus, hospitais, tribunais, quartéis e, em breve, dos próprios bairros (poucos) que se vão fazendo”79.

Foi um tempo “desgastante com muitos projectos-cadáveres pelo caminho (.) porque

não tinham coberturas de telha ou pedra à volta dos vãos. A questão do estilo, para os conservadores do regime e para a maioria dos arquitectos que caía nessa armadilha tinha-se tornado afinal numa questão de fachada”80. Firmou-se, assim, o «português suave», fruto de uma “criação colectiva dos arquitectos que timidamente assumiam

quer os valores de modernidade, quer os valores vernaculares”81, que levou à definição de estritos modelos arquitetónicos de acordo com a tipologia em causa. “Assim podemos distinguir: um modelo nacionalista de raiz historicista, para os liceus

(o solar do século XVII) ou para o prédio de rendimento urbano (os estilos joanino e pombalino), com modelos concretos apontados pela Câmara de Lisboa aos projectistas; um modelo também nacionalista, de feição regional, para os bairros

76

PORTAS, Nuno, Carlos Ramos (1897), Walter Gropius (1883). In memorian, Diário de Lisboa, (17.jul.1969), p.6.

77

PORTAS, Nuno, Carlos RamosO, p.4.

78

PEREIRA, N. Teotónio, FERNANDES, José Manuel, A Arquitectura do FascismoO, pp.40-41.

79

PORTAS, Nuno, A arquitectura para hoje., pp.196-197.

80

PORTAS, Nuno, Arquitectura e urbanísticaO, p.37.

81

ALMEIDA, Pedro Vieira de, O «arrabalde» do céu, História da Arte em Portugal, Vol.14, Publicações Alfa, (1986), p.145.

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sociais, escolas primárias, pousadas, CTT, além das moradias urbanas e suburbanas (a «casa portuguesa», o «estilo tradicional português»); um modelo monumentalista, de influência classicizante, para os edifícios universitários e depois para os Palácios de Justiça; um modelo específico para a arquitectura religiosa, de estilização medievalista, romano-gótica, ou por vezes setecentista, para colégios e seminários”82. No entanto, esta arquitetura de aparência, apesar de promovida pelo Estado Novo, não teve um futuro longo e brilhante. Com o final da II Grande Guerra Mundial, começou a despoletar uma progressiva reação da parte dos arquitetos mais novos, com especial destaque para a Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), onde Carlos Ramos, professor desde 1940 naquela escola, lutava por “um ensino tão aberto

quanto possível às correntes modernas”83. Foi assim que uma nova geração de arquitetos ganhou consciência profissional e política, e uniu-se em grupos de intervenção – no Porto, a Organização dos Arquitectos Modernos (ODAM), e em Lisboa, as Iniciativas Culturais Arte e Técnica (ICAT), impulsionado por Keil do Amaral (1910-1975), figura que se destacou neste período pela sua liderança e pela sua capacidade de mobilização dos arquitetos mais jovens, que o levou a encabeçar a “primeira direcção sindical de oposição ao regime”84, eleita em 1948, pouco tempo antes da realização do I Congresso Nacional dos Arquitetos, evento que “foi marco e

motor de uma viragem, contrapondo-se polemicamente à magna exposição oficial de obras públicas ao mesmo tempo realizada – espécie de homenagem a Duarte Pacheco já preconizada por Cottinelli e, com isso, sumário de uma época que terminava”85.

82

PEREIRA, N. Teotónio, FERNANDES, José Manuel, A Arquitectura do FascismoO, p.44.

83

PEREIRA, N. Teotónio, FERNANDES, José Manuel, A Arquitectura do FascismoO, p.46.

84

Ibidem.

85

O MRAR e os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX 33

Igreja de N. Sra. Fátima, Lisboa, P. Pardal Monteiro [1933-38]

Na noite de 12 de outubro de 1938, o Cardeal Patriarca D. Manuel Cerejeira deu início às cerimónias de dedicação da igreja de N. Sra de Fátima. Chegava ao fim o trabalho de Pardal Monteiro, que segundo as suas palavras, “para além de prestar um serviço profissional a um cliente, procurou prestar sobretudo um serviço à Nação e à arte nacional, concebendo uma edificação rigorosamente baseada na tradição, mas progressiva e reveladora das possibilidades técnicas do nosso tempo.”86 Quando elaborou o projeto, tinha consciência de que Portugal era dos raros países da Europa que não possuíam uma única igreja moderna, pelo que procurou que a sua se constituísse como “o primeiro passo no sentido do progresso da arquitectura religiosa,”87 mas também, com a contribuição das artes decorativas, se afirmasse como a “primeira tentativa de renascimento da Arte Religiosa em Portugal.”88

Ao desenvolver o projeto, Pardal Monteiro considerou “que o carácter do edifício consistia fundamentalmente em que ele exprimisse por um lado a sua finalidade, por outro a sua estrutura. Vi que a minha igreja devia ser na sua expressão arquitectural simples, clara, calma, mas vi sobretudo, que a vida de um templo reside essencialmente no seu interior. Logo, nesse interior é que deveria exprimir até onde fosse possível, a função exacta da Igreja (.). Se depois de idealizada a expressão daquilo que é essencial fosse possível encontrar para o exterior a tradução do que se passa nesse interior estaria resolvido o problema.”89 Tratava-se, por conseguinte, de começar por determinar a planta da igreja no modo que tornasse mais perfeitamente clara a função do edifício, o que o obrigou a procurar a mais correta interpretação do programa. Nesse trabalho, que arrancou simultaneamente com os primeiros estudos, Pardal Monteiro contou com a preciosa colaboração do beneditino D. Martin, da abadia de Mont Cesar, Bélgica, e de Mons. Pereira dos Reis. A planta da igreja tornou-se, assim, no primeiro desenho a ficar totalmente estabilizado, não tendo sofrido qualquer alteração na passagem do anteprojeto para o projeto final, ao contrário dos alçados. Pôde assim o arquiteto, na hora da inauguração, afirmar que liturgicamente a igreja de N. Sra. de Fátima correspondia com rigor às exigências do culto católico, “e digo com tanta firmeza e tanta segurança quanto é certo que pela primeira vez entre nós foi realizado o projecto de uma igreja com a assistência de mestres da liturgia.”90

Fig.1.1

86

MONTEIRO, Porfírio Pardal, Memória descritiva do projecto da nova igreja a construir para a Arquiconfraria do Santíssimo Sacramento de São Julião, pela Sociedade Progresso de Portugal, (fev.1934), p.5.

87

Ibidem.

88

MONTEIRO, Porfírio Pardal, Memória descritiva., p.3.

89

A nova igreja de Nossa Senhora de Fátima é hoje inaugurada solenemente, Diário de Notícias, (12.out.1938).

90

34 O MRAR e os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX O interior da igreja foi definido “de modo a satisfazer, dentro das regras da liturgia, às necessidades do culto católico, mantendo-se no entanto a feição peculiar das igrejas portuguesas, como por exemplo os altares laterais e o trono.”91 Segundo as orientações litúrgicas fornecidas por D. Martin e Mons. Pereira dos Reis, a planta devia “pôr em evidência o local do sacrifício, o altar, deixando espaços livres para a acumulação dos fiéis.”92 Pardal Monteiro concebeu desse modo uma “grande nave, completamente livre de colunas, pilares ou outro qualquer elemento da estrutura que estorvasse a vista do altar”93. No entanto, se a base programática escolhida, que pretendia dar primazia ao altar e total visibilidade deste por parte dos fiéis, correspondia ao que de mais moderno o movimento litúrgico defendia94, a sua tradução plástica ficou bastante distante das possibilidades técnicas e dos ideais depurados propostos pelo Movimento Moderno. De facto, o interior da igreja de N. Sra. de Fátima, com os seus arcos góticos em betão armado, com o seu espaço seccionado que distinguia de forma acentuada a assembleia do presbitério localizado numa capela-mor, e com a sua profusa decoração, em nada se assemelhava com o espaço vazio de imagens construído por Rudolf Schwarz em Aachen oito anos antes95. Por este motivo, os organizadores da “Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea” de 1953 dedicaram um painel àquela que era incontestavelmente a igreja moderna portuguesa mais importante da primeira metade do século XX, reconhecendo que correspondia a uma tentativa corajosa, sem deixar de afirmar que a mesma possuía vários erros e imperfeições, como explicou N. Teotónio Pereira no final desse ano - na igreja não se manifestavam plenamente “a pureza construtiva e a disciplina de formas, características do movimento moderno na arquitectura”96. Quatro anos depois, também Luiz Cunha referiu-se à igreja nos mesmos moldes. Começou por reconhecer a sua importância histórica - “Pela amplitude da obra, pela grande colaboração artística que envolveu e pelo apoio esclarecido e entusiástico que encontrou nas autoridades religiosas, esta igreja teve grande repercussão na opinião pública e pode dizer-se que pela primeira vez esta tomou conhecimento dos anseios de renovação que a arte religiosa atravessava”97. Mas não deixou de lhe apontar as

91

MONTEIRO, Porfírio Pardal, Memória descritiva., p.4.

92

MONTEIRO, Porfírio Pardal, Igreja de Nossa Senhora de Fátima, Revista Oficial do Sindicato Nacional dos Arquitectos, nº7, (nov.-dez.1938), p.193.

93

MONTEIRO, Porfírio Pardal, Igreja de., p.196.

94

Em sintonia com o Motu Proprio TRA LE SOLLICITUDE sobre a música sacra, de Pio X (22 de novembro de 1903), que afirmou “Sendo de facto nosso vivíssimo desejo (.) a participação activa [de todos os fiéis] nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja”, bem como com o livro Christozentrische Kirchenkunst (O cristocentrismo da arte religiosa), do P. Johannes Van Acken (1922), que defendeu “o altar enquanto ‘Cristo Místico’ como ponto de partida e ponto focal da construção de igrejas”.

95

Ver capítulo 1.22.

96

PEREIRA, N. Teotónio, Arquitectura Religiosa, O Comércio do Porto, (6.dez.1953).

97

O MRAR e os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX 35 falhas - “A arquitectura peca portanto por não ter previsto essa colaboração artística numa base de perfeita integração, como meio de atingir a unidade plástica, razão e objectivo da verdadeira obra de arte”98.

As qualidades da igreja de N. Sra. de Fátima foram consideradas, no entanto, mais que suficientes para, no último dia do Curso de Arquitectura Sacra organizado pelo MRAR na Casa de São Mamede, em Lisboa, entre os dias 2 e 5 de janeiro de 1958, se realizar uma visita à igreja, um dia depois da passagem pelas históricas igrejas lisboetas dos Jerónimos, Sé, São Vicente de Fora e Santa Engrácia, num percurso orientado por Fernando Távora, A. Freitas Leal e pelo P. Manuel Mendes Atanásio. Também este último escreveu a propósito da igreja de N. Sra. de Fátima, no seu livro Arte Moderna e Arte da Igreja, publicado em 1959: “Pardal Monteiro começou bastante bem em Fátima, sobretudo no que diz respeito aos volumes exteriores da sua igreja e por ter chamado a servir Almada Negreiros com os seus vitrais”99. Mas considerou que a igreja não estava isenta de defeitos: “no espaço interno, onde o altar está muito longe da assembleia, onde a abside é demasiado rasgada, e onde o baldaquino destrói a composição do presbitério, este com uma cor negra e volumes um tanto atropelados”100.

Curiosamente, os motivos de crítica nos anos 1950 foram exatamente os inversos dos proclamados ao tempo da inauguração da igreja. Naquele tempo, o peso da tradição que se fez sentir fortemente no seu interior, poupou-o, certamente por isso, das vozes de contestação. Já o mesmo não pode ser dito quanto ao exterior da igreja, que para Pardal Monteiro, desde a primeira hora, tinha de ser forçosamente moderno, “antes de mais por uma questão de dignidade.”101 Monteiro via a arquitetura como “obra de

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