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CAPÍTULO II – DISCURSOS CIENTÍFICOS DE OBESIDADE: A

2.3 Do normal biomédico ao normal cultural

[…] pensamos que a biologia humana e a medicina são peças necessárias de uma “antropologia”, que elas nunca cessaram de sê-lo, mas pensamos também que não há antropologia que não suponha uma moral, de modo que sempre o conceito de “normal”, na ordem humana, permanece um conceito normativo e de alcance propriamente filosófico.

Georges Canguilhem

A partir das leituras dos artigos de revisão selecionados e do exposto na sessão acima, buscamos em outras literaturas, principalmente na filosofia da ciência, na sociologia, na psicologia e na antropologia, entender os discursos científicos apresentados e tentar relacioná-los com uma crítica cultural embasada nos estudos de cultura, principalmente os Estudos Culturais. Entendendo, como já colocado em várias situações do estudo, que a produção científica também é uma produção cultural e faz parte da dinâmica das relações de poder e da luta hegemônica social.

Canguilhem pontua que o termo normal apareceu no século XIII, em 1759. Deriva-se das palavras nomos do grego e de norma do latim, este último significa lei. O significado que empregamos hoje ao conceito de normal deve-se ao movimento da Revolução Francesa, pois a burguesia implementa uma nova ordem que deveria perpassar e organizar toda a sociedade, o

capitalismo. Portanto, normal significa aquilo que segue em linha reta, sempre com o mesmo nível e constância, que não se inclina para nenhum lado e sempre ajustado ao meio-termo (COELHO e ALMEIDA FILHO, 1999).

Para Canguilhem (2009), foi com o desenvolvimento da fisiologia, no fim do século XII, que a relação do normal e patológico ganhou estatuto para as formulações de teorias científicas do ser vivo, iniciando um dos mais fortes postulados biomédicos: “os fenômenos patológicos nos organismos vivos nada mais são do que variações quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos correspondentes” (p.13). Assim, é na doença, portanto no patológico – que os teóricos da saúde irão procurar as respostas e explicações de todas as questões do corpo e da vida. A partir daí, tais concepções tornam-se “dogmas” durante o século XIX, principalmente com a busca do racionalismo e do empirismo, representados por Augusto Comte e Claude Bernard.

Ao analisar as teorias desses dois cientistas que até hoje influenciam a biologia e a medicina, Canguilhem (2009) explicita que a intenção de Comte era elaborar leis universais no campo biológico tanto quanto as leis da física, ainda evidenciando suas ligações intrínsecas que as leis sociológicas fossem confirmadas e aperfeiçoadas. Para isso, Comte traz em cena a teoria de Broussais, a qual explicita que as doenças “consistem, basicamente, no excesso ou falta de excitação dos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal” (p.16). Portanto, há uma atribuição incondicional à intensidade dos fenômenos para diferenciar a saúde da doença.

Para Comte, a normalidade da vida acontece quando ela não tem nenhuma interferência interna ou externa, quando não há desequilíbrio, ou seja, uma positivação vital. Utiliza-se veementemente de critérios universais e determinísticos para provar a normalidade da vida e sua relação positiva com a sociedade. Além disso, como o normal tem uma relação intrínseca com a harmonia dos fenômenos, para Canguilhem (idem) os conceitos de normal ou de fisiológico se transformam reduzidamente num conceito qualitativo e com diversas interpretações, sendo, portanto valorativo. E aponta, que para mim seja uma das principais bases para que até hoje tais concepções sejam aceitas: a tentativa de positivar o conceito de normalidade está intimamente ligado a um ideal de perfeição.

Para Coelho e Almeida Filho (1999) houve uma redução nas noções qualitativas para interpretações quantitativas do normal e patológico em Comte. Tal redução ocorreu por dois fatores: “à necessidade de o organicismo se afirmar pela oposição à concepção vitalista dominante e ao desejo terapêutico de intervenção sobre o patológico” (idem, p.17). Essas duas maneiras de conceber o normal e patológico mudaram a maneira de conceber sobre as duas categorias e

transformaram o pensamento da sociedade naquela época, produzindo efeitos científicos até nossos dias. Primeiro, porque mudou a visão de que as doenças estavam intimamente ligadas ao pecado e às manifestações demoníacas, ou seja, não era domínio do homem. Aliás, com essa alteração, Comte conseguiu produzir uma teoria e uma lei biomédica que interligava o normal e o patológico, assim, o homem podendo intervir no patológico conseguiria voltar ao estado de normalização.

Os argumentos positivistas de Comte almejavam criar conhecimentos e determinismos normativos sobre o estado normal do homem e das sociedades para fundamentar cientificamente uma doutrina política, na qual pudesse restaurar terapeuticamente a essência estrutural e permanente das sociedades (idem).

Para Canguilhem (idem), Comte juntamente com Claude Bernard são figuras emblemáticas na construção dos conceitos que temos até hoje enraizados sobre saúde e doença, normal e patológico. Na citação a seguir, fica evidente os traços de busca de equilíbrio e estabilização na teoria de Claude Bernard. Este utiliza métodos extremamente quantificáveis para explicar que o estado patológico é a variação quantitativa, em excesso ou diminuição, de estados normais, implicando num distúrbio.

A saúde e a doença não são dois modos que diferem essencialmente, como talvez tenham pensado os antigos médicos e como ainda pensam alguns. É preciso não fazer da saúde e da doença princípios distintos, entidades que disputam uma à outra o organismo vivo e que dele fazem o teatro de suas lutas. Isso são velharias médicas. Na realidade, entre essas duas maneiras de ser há apenas diferenças de grau: a exageração, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado doentio. Não há um único caso em que a doença tenha feito surgir condições novas, uma mudança completa de cena, produtos novos e especiais (BERNARD, apud CANGUILHEM, 2009, p.26).

A normalidade biológica é concebida pela estabilidade do corpo, o equilíbrio e sua constância, a média de um determinado fenômeno – o rígido e quase insuperável conceito de homeostasia que “[...] aparece nas introduções dos textos de fisiologia como uma espécie de declaração de princípios, pedra filosofal que confere uma lógica férrea a toda a fisiologia, a busca constante do equilíbrio” (MENNA-BARRETO, 2004, p.105).

Destacamos que embora Bernard entendesse que no corpo há uma relação dinâmica entre o meio externo e interno, mais adiante, Walter Cannon (1926 apud idem) cunhou o termo “homeostasia”, inspirado na teoria de “fixidez do meio interno” de Claude Bernard produzida em 1878, e desse modo imprimiu um novo sentido à noção de normal e patológico.

Em síntese, alinhamo-nos com o pressuposto de que a visão funcionalista do corpo, com seu conceito de corpo-máquina, tem suas raízes históricas na teoria mecanicista, na qual Comte e Claude Bernard são referências teóricas fundamentais por contribuírem para a produção e reprodução de discursos dualistas sobre normalidade, sejam estes biomédicos ou aqueles do campo

das ciências humanas, transmitidos em práticas sociais tais como a comunicação midiática – como analisamos neste estudo.