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DO PÚBLICO E DO PRIVADO NA VISITA AOS PARQUES NACIONAIS

3 O USO DO ‘PÚBLICO’ NOS PARQUES NACIONAIS

3.4 DO PÚBLICO E DO PRIVADO NA VISITA AOS PARQUES NACIONAIS

Ao abordar a relação entre as esferas pública e privada no âmbito da visitação nos parques nacionais, foi considerado como elemento-chave nessa dinâmica a compreensão sobre o papel dos visitantes por parte do Estado (gestores do ICMBio), dos prestadores de serviços e dos próprios visitantes. Buscou-se, a partir da abordagem do visitante como cidadão, consumidor ou cidadão-consumidor, problematizar a questão dos direitos e das responsabilidades frente ao uso público dos parques nacionais. Para tanto, serão analisadas algumas concepções que motivam as políticas públicas em termos da disponibilização de serviços para a sociedade e dos conceitos que permeiam a discussão sobre cidadania e consumo.

Quem é o visitante de um parque nacional? O visitante pode ser encarado de inúmeras maneiras: cidadão, usuário, cliente, consumidor, ou mesmo a combinação entre estas. Para ilustrar essa discussão, foram propostas as categorias ‘visitante-cidadão’ e ‘visitante-consumidor’ (RODRIGUES, 2006). A intenção não foi a de realizar uma

abordagem centrada na dicotomia entre cidadão e consumidor e entre a esferas pública e privada, mas considerar a complexidade destas categorias, os movimentos de uma para outra, as maneiras como elas convivem entre si e como são entendidas pelos diferentes atores que participam do dinâmica da visitação nos parques nacionais.

Para Derani (2002), as diferenças terminológicas entre usuário, cliente, cidadão e consumidor não são neutras. Estas definições são carregadas de sentido quando o assunto é o acesso aos serviços públicos. A autora considera pertinente a distinção entre consumidor e usuário, pois entende que:

Consumidor é aquele que vai ao mercado procurar, segundo uma relação de oferta e preço, os bens de que precisa. O usuário não escolhe pela relação existente de oferta de bens e respectivo preço a mercadoria mais apta ao seu desejo e poder aquisitivo. O usuário é aquele que constantemente faz uso de uma quantidade de determinada mercadoria para a sua existência social, uso que independe do preço, da oferta e da escassez de mercado. (DERANI, 2002, p. 76-77).

Como pano de fundo desta discussão, Derani (2002) sugere refletir sobre as mudanças no papel do Estado, que deixa de ser o “portador de um projeto coletivo de progresso social”. Na sua interpretação, os usuários eram os sujeitos do Estado integrador, cujo projeto político e social ultrapassava os egoísmos individuais para alcançar um ideal coletivo. Porém, na medida em que “as fronteiras do serviço público encolhem e que os segmentos passam sob uma gestão privada, conduzindo a uma mercadorização das relações com o público, esta forma exata de Estado regride”. (DERANI, 2002, p. 79).

A relação entre o Estado e as categorias cidadão, cliente, consumidor e usuário (que compõem o público-alvo das políticas públicas) pode ser analisada também a partir dos modelos de gestão adotados na administração pública. Este é um tema amplamente estudado por várias disciplinas como economia, administração, direito e ciência política. Esta abordagem não pretende abrir o leque de temas relacionados à administração pública, mas priorizar os aspectos que dizem respeito à prestação de serviços públicos. A análise de Abrucio (1997)50 sobre o impacto do modelo gerencial (managerialism) na administração pública foi utilizada para ilustrar a discussão sobre as diferentes concepções do Estado no que toca à sua capacidade de alcançar o seu público-alvo.

Influenciados pela corrente reformadora do Estado desencadeada a partir da década de 1980, e à luz dos modelos de gestão anglo-americanos, diversos países, incluindo o Brasil, iniciaram um processo de modificação da administração pública, passando do “modelo burocrático weberiano” para o “pós-burocrático”, característica marcante do modelo

50 Embora o texto do Abrucio tenha sido escrito há mais de dez anos, ele pode ser utilizado como base para

analisar as influências do modelo gerencial, particularmente da vertente inglesa, na administração pública no Brasil, em especial no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995). Para Abrucio, o modelo gerencial não é um campo teórico fechado. Ao longo do tempo, ele sofre uma série de mudanças e adaptações, de acordo com as características dos países em que “fincou raízes”. “Trata-se de um pluralismo organizacional sobre bases pós-burocráticas vinculadas aos padrões históricos (institucionais e culturais) de cada nação. (1997, p. 37).

gerencial de administração. Grosso modo, a perspectiva era substituir a burocracia tradicional, do modelo weberiano, caracterizada por uma estrutura rígida e centralizada, por um modelo que priorizasse, dentre outros aspectos, a eficiência e a flexibilidade do aparato burocrático. Este último, denominado modelo gerencial, introduziria no Estado a lógica de produtividade do setor privado (ABRUCIO, 1997).

Abrucio (1997) avalia que uma das principais transformações na dinâmica do modelo gerencial é a adoção de serviços públicos voltados aos anseios dos clientes/consumidores, trazendo à tona o aspecto público da administração pública, sem deixar de lado o conceito empresarial orientado pela busca de eficiência e qualidade dos serviços. O modelo gerencial de administração pública assumiu diferentes contornos ao longo do tempo, podendo ser dividido em três correntes, não-excludentes: modelo gerencial puro, consumerism e public service orientation. O Quadro 3.3, abaixo, resume os elementos de uma análise comparativa entre as diferentes visões da administração pública disseminadas pela corrente inglesa, com foco nos principais objetivos e na relação com a sociedade (públicos-alvos). As teorias estão separadas, da esquerda para a direita, em ordem cronológica de criação.

modelo gerencial puro consumerism public service orientation economia/eficiência

(produtividade)

efetividade/qualidade accountability/equidade

taxpayers (contribuintes) clientes/consumidores cidadãos

Quadro 3.3 – Diferentes visões da administração pública – abordagem da corrente inglesa. Fonte: adaptado de Abrucio,1997.

No modelo gerencial puro, o foco é a eficiência, resultado do aumento da “consciência dos custos”. Neste modelo, a avaliação de efetividade, ou seja, a avaliação qualitativa dos serviços públicos é secundarizada. A emergência do conceito de efetividade, característica do consumerism, evoca o caráter político da prestação de serviços, centrando a avaliação da qualidade dos programas governamentais na mão dos próprios usuários dos equipamentos sociais. É neste ponto que reside a “transformação mais radical” para remodelar o modelo gerencial, que foi a adoção de serviços públicos voltados para os anseios dos clientes/consumidores (ABRUCIO, 1997, p. 20). Contudo, conforme salienta Abrucio (1997), o consumerism trouxe à tona a complexidade do conceito de consumidor/cliente no âmbito do acesso aos serviços públicos.

O pressuposto do modelo da competição é de que os consumidores podem escolher a unidade de serviço público cuja qualidade for maior. Contudo, esse pressuposto nem sempre é verdadeiro, pois nem todos os consumidores têm a possibilidade de escolher, de fato, o equipamento social que lhes agradar, em virtude da existência de obstáculos geográficos e financeiros os quais dificultam o acesso a todas as unidades de serviço público. Ademais, se todos os consumidores (ou boa parte deles) escolherem um número limitado de equipamentos sociais, eles ficarão lotados e tenderão também a perder a qualidade. (ABRUCIO, 1997, p. 25)

Seguindo esta lógica, a escassez de recursos públicos pode favorecer a constituição de grupos de interesse formados por consumidores mais fortes, ou seja, mais consumidores do que os outros, e que serão tratados como clientes preferenciais dos serviços públicos. É neste contexto que surgem inúmeras críticas ao consumerism, em especial no que diz respeito à relação entre governo, no papel de prestador de serviços públicos, e a população. Como salienta Abrucio (1997), para muitos autores51 o conceito de consumidor deve ser substituído pelo de cidadão, pois eles entendem que este último é um conceito mais amplo, na medida em que implica direitos e deveres, e não somente a liberdade de escolher os serviços públicos. Esta abordagem suscita questões como equidade e accountability, que estão na base da tendência disseminada pela corrente denominada Public Service Orientation (PSO). O Quadro 3.4, abaixo, apresenta as principais diferenças entre o modelo de administração privada e o modelo de administração do setor público, influenciado pela corrente do PSO.

modelo do setor privado modelo do setor público escolha individual no mercado escolha coletiva na política

demanda de preço necessidade de recursos públicos caráter privado da decisão empresarial transparência da ação pública eqüidade do mercado eqüidade dos recursos públicos busca de satisfação do mercado busca de justiça

soberania do consumidor Cidadania

competição como instrumento de mercado ação coletiva como meio público

estímulo: possibilidade de o consumidor escolher condição: o consumidor pode modificar os serviços públicos

Quadro 3.4 – Comparação entre o modelo de administração privada e o modelo de administração do setor público, segundo a teoria Public Service Orientation.

Fonte: Abrucio, 1997, adaptado de Stewart & Ranson, 1998.

Os principais pontos tratados pelos formuladores da PSO são o conceito de cidadão, “com conotação coletiva”, que aborda a cidadania como “um conjunto de cidadãos com direitos e deveres”, e o conceito de “esfera pública”, relacionado aos ideais de participação política e ao “locus de transparência e de aprendizado social presente também na organização interna da administração pública, sobretudo no momento de elaboração das políticas públicas”. A esfera pública é encarada como o local onde os cidadãos aprendem com o debate público, favorecendo a conjugação entre a accountability e questões como justiça e equidade (ABRUCIO, 1997, p. 27).

Na filosofia do direito, conforme destaca Habermas (1997), é possível encontrar duas

interpretações contrárias e conflitantes sobre o conceito de cidadania. A primeira compreende uma visão instrumental e individualista do cidadão, pautada na tradição liberal do direito. Neste caso, a cidadania define a pertença a uma determinada organização estatal e os indivíduos permanecem exteriores ao Estado. Na segunda visão, baseada na tradição republicana da doutrina do Estado, a cidadania assume um papel ético-comunitarista, que se fortalece na autodeterminação coletiva. Nesta interpretação, “os cidadãos são integrados na comunidade política como partes num todo, de tal modo que, para formar a sua identidade pessoal e social, eles necessitam do horizonte de tradições comuns e de instituições políticas reconhecidas” (p. 287).

A noção de cidadania vinculada à esfera pública política sugere uma correlação com a possibilidade da visita aos parques nacionais funcionar como um elemento de ‘politização’ em relação às questões ambientais. Em que medida a experiência individual pode repercutir de maneira benéfica na esfera pública e vice-versa? Habermas (1997) destaca que a esfera pública é influenciada pela assimilação privada dos problemas sociais com repercussão nas biografias particulares, expressa na seguinte dinâmica:

Há uma união pessoal entre os cidadãos do Estado, enquanto titulares da esfera pública política, e os membros da sociedade, pois – em seus papéis complementares de trabalhadores e consumidores, de segurados e pacientes, de contribuintes do físico e de clientes de burocracias estatais, de estudantes, de turistas, participantes do trânsito, etc. – eles estão expostos, de modo especial, às exigências específicas e às falhas dos correspondentes sistemas de prestação. No início tais experiências são elaboradas de modo “privado”, isto é, interpretadas no horizonte de uma biografia particular, a qual se entrelaça com outras biografias, em contextos de mundos da vida comuns (1997, p. 98).

Assim, dependendo da comunicação estabelecida entre as esferas pública e privada, estas instâncias tornam-se mutuamente influenciáveis, engendrando novas funções e significados (HABERMAS, 1997).

Responsabilização, engajamento e comprometimento, são questões presentes no debate sobre a problemática ambiental que incentivam a “politização” da esfera pública por meio do reconhecimento do potencial do cidadão-consumidor (Portilho, 2005). A dinâmica de consumo nas sociedades contemporâneas e a sua repercussão nas esferas pública e privada são analisadas por várias áreas do conhecimento, que aportam elementos interessantes para compreender o papel do visitante na utilização (e consumo) dos parques nacionais (espaço público).

Com base na análise das categorias cidadão e consumidor, Hirschmann (1983) argumenta que a esfera pública nos remete à atividade de interesse público, que se traduz no empenho pela busca da felicidade pública por meio da ação na esfera política e do envolvimento do cidadão em questões cívicas ou comunitárias. Para ele, a problemática sobre a opção entre a vida pública e a vida privada é um tema que serve de base para o

pensamento ocidental sobre o comportamento humano desde “Aristóteles até Hannah Arendt, passando por Hobbes, Rousseau, Marx”. (1983, p. 91).

Hirschmann (1983) parte da idéia de que tanto a participação em questões públicas quanto os atos de consumo são realizados em busca de satisfação, porém também podem ocasionar a decepção e a insatisfação. O autor questiona a tradicional análise econômica dos indivíduos que reduz a sua atuação à de potenciais consumidores que fazem escolhas e trocas no mercado. Ele propõe a análise da fenomenologia dos engajamentos e das decepções para explicar as oscilações entre os interesses particulares e a ação pública e vice-versa. Algumas atividades de caráter imaterial, como o cultivo de amizades e dos laços de família, a participação em questões públicas, não têm um preço claro no mercado, porém os economistas conseguem mensurar o “custo” relativo destas atividades com base no tempo despendido para a sua realização, que tem um valor implícito em termos da renda que se deixou de ganhar. Esta generalização econômica de todas as atividades humanas tem sido alvo de inúmeras críticas e, conforme destaca o autor, acaba negligenciando a opção dos “consumidores decepcionados” em “manifestar-se e acabar engajando-se em várias ações, que vão da reclamação estritamente individual (pedido de devolução do dinheiro) à ação popular de interesse geral”. (1983, p. 71).

Numa abordagem mais recente, Bauman (2008) acentua a dualidade relacionada ao papel do consumidor:

No primeiro pólo, os consumidores são representados como o oposto de agentes soberanos: ludibriados por promessas fraudulentas, atraídos, seduzidos, impelidos e manobrados de outras maneiras por pressões flagrantes e sub-reptícias, embora invariavelmente poderosas. No outro extremo, o suposto retrato do consumidor encapsula todas as virtudes pelas quais a modernidade deseja ser louvada – como a racionalidade, a forte autonomia, a capacidade de autodefinição e de auto-afirmação violenta”. (2008, p. 19-20).

Estas “virtudes” sustentam uma rede peculiar de interações humanas, conhecida como “sociedade de consumidores”, que compreende o ambiente existencial do ser humano a partir das relações entre os consumidores e as mercadorias. Nesta perspectiva, Bauman (2008) argumenta que as ligações que conectam os seres humanos teriam sido “colonizadas” pelos mercados, cujas principais regras são:

1- o destino final de toda mercadoria colocada à venda é ser consumida por compradores; 2- os compradores desejarão obter mercadorias para consumo se, e apenas se, consumi-las for algo que prometa satisfazer seus desejos; 3- o preço que o potencial consumidor em busca da satisfação está preparado para pagar pelas mercadorias e oferta dependerá da credibilidade dessa promessa e da intensidade desses desejos. (BAUMAN, 2008, p.18).

Apontando para um outro sentido do papel do consumidor na sociedade contemporânea, que concebe a possibilidade de novas formas de ação política a partir da

esfera privada, Portilho (2005) interpreta a dicotomia entre a esfera pública do cidadão e a esfera privada do consumidor de duas formas: “despolitização – de cidadão a consumidor” e “politização – de consumidor a cidadão.” A primeira corrente segue influenciada pelos pensadores da Escola de Frankfurt, que contribuíram para a explicação das origens da sociedade de consumo52 e para propagar a “crítica da cultura de massa”. Nessa perspectiva os consumidores são encarados como meros receptores das mensagens publicitárias e dos interesses do mercado. Ao abordar autores como Bauman (2000), que salienta o “fim da cidadania”, e Arendt (1999), que problematiza a “dissolução do espaço público”, Portilho salienta a construção teórica que relaciona a expansão da cultura de consumo ao declínio da esfera pública, à redução da participação política e à crescente privatização da vida diária. Esta perspectiva procura relativizar o ‘poder’’ e a ‘autonomia’ dos consumidores de escolher mercadorias e serviços, uma vez que o comportamento do consumidor é influenciado por fatores na esfera da produção (p. 181).

Esta discussão nos remete a análise de Gorz (2005) sobre o modo de consumo das sociedades modernas e a rapidez com que “as coisas” são transformadas em mercadoria. Um exemplo é a transformação do tempo livre e do lazer em mercadorias fornecidas pelo setor privado. Ao refletir sobre a dinâmica de produção do consumidor, aponta que a privatização das vias de acesso às riquezas naturais e aos bens comuns permite a sua transformação em “quase-mercadorias”, que proporcionarão uma renda aos vendedores de direitos de acesso.

O consumidor, individual por definição, foi concebido desde a origem como o contrário do cidadão; como o antídoto da expressão coletiva de necessidades coletivas, contrário ao desejo de mudança social, à preocupação com o bem comum (...). A indústria publicitária não deixaria de preencher uma dupla função, econômica e política, apelando não à imaginação e aos desejos de todos, mas à imaginação e ao desejo de cada um como pessoa privada. Ela não promete aos compradores potenciais uma melhora de sua condição comum, tornando-o um “feliz privilegiado” que pôde oferecer a si mesmo um novo bem, mais raro, melhor, distinto. (GORZ, 2005, p.49).

A mercantilização do bem comum, neste sentido, volta-se contra as premissas do desenvolvimento sustentável como eqüidade e justiça social, na medida em que promove o consumo desigual de um espaço coletivo. A questão ambiental, enquanto um problema generalizado, é ‘camuflada’ pela indústria publicitária que promete a procura de soluções individuais para problemas coletivos. Neste sentido, a dinâmica de produção e consumo dos espaços e mercadorias reflete uma “socialização anti-social” (GORZ, 2005, p. 49).

Portilho (2005) constatou que as conseqüências do deslocamento da definição de crise ambiental da produção para o consumo podem ser compreendidas de duas maneiras:

52 Para uma maior compreensão sobre o conceito de “sociedade de consumo” consultar, dentre outros autores:

a) como um fortalecimento dos mecanismos de desintegração social e política, favorecendo a apropriação privada dos bens naturais e reduzindo os vínculos de solidariedade e participação na esfera pública e b) como uma potencial força agregadora e emancipatória, que fortalece a participação individual e coletiva nos dilemas e decisões políticas cotidianas, trazendo a questão ambiental para a agenda política. (PORTILHO, 2005, p. 33). A segunda interpretação, que segue na linha da “politização do consumo”, sinaliza que o deslocamento do cidadão à condição de consumidor engendra uma perspectiva agregadora e emancipatória capaz de fortalecer a inserção da questão ambiental na agenda privada. Nessa linha, Portilho destaca autores como Hirschman (1983), que encara a oscilação da vida pública para a privada e vice-versa como parte de ciclos do comportamento coletivo, influenciada por momentos de satisfação ou decepção frente à participação em atividades públicas. Faz referência também a Canclini (1996) e Giddens (1996), que igualmente não desmerecem a vida privada como espaço de luta pela emancipação. Para Canclini (1996):

Estas ações políticas, pelas quais os consumidores ascendem à condição de cidadãos, implicam numa concepção do mercado não como simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais complexas. Da mesma maneira, o consumo é visto não como a mera possessão individual de objetos isolados, mas como apropriação coletiva, em relações de solidariedade e distinção com os outros, de bens que proporcionam satisfações biológicas e simbólicas, que servem para enviar e receber mensagens (p. 66).

Neste contexto, podemos destacar o aspecto da sensibilização do visitante de um parque nacional em relação às questões ambientais. A experiência vivida nestas áreas pode influenciar a percepção do visitante, fazendo-o se sentir co-responsável pela proteção da área, e proporcionar algumas mudanças em suas práticas de consumo no cotidiano, incorporando questões coletivas (economia de água, por exemplo) em situações privadas. Alguns estudos evidenciam o aprendizado dos visitantes a partir de experiências recreativas nos parques nacionais e o potencial que as visitas têm de influenciar as atitudes das pessoas no sentido de se tornarem mais críticas quanto à importância da conservação e utilização sustentável da natureza (KINKER, 1999; ZIMMERMANN, 2006).

Portilho (2005) destaca que inúmeros autores exploram os posicionamentos dos consumidores, como boicotes, formação de cooperativas de consumo, exigência por rotulagens, para tratar da pressão política que propicia a “politização do consumo”. Nesta linha, argumenta que “é preciso permitir a invasão do político na esfera privada”, reconhecendo na atividade de consumo a possibilidade de gerar uma esfera interativa em que:

A vida privada torna-se o locus de novos conflitos políticos em que o aspecto politizador se constitui no fato de que o microcosmo das condutas pessoais se inter-relaciona ao macrocosmo dos problemas globais. (2005, p. 189).

Contudo, ao mesmo tempo em que a autora prioriza a vertente que concebe o surgimento de novas formas de ação política a partir da esfera privada, ela problematiza o conceito de cidadania e a sua banalização pela esfera do consumo. Chama a atenção para o risco de transformar o cidadão num consumidor, que aceita ser cobrado por uma espécie