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5 PROPOSTA DE INTERVENÇÃO: SEQUÊNCIAS

5.4 DO POEMA AO BRINQUEDO: O UNIVERSO LÚDICO DOS DESOBJETOS

Nessa aula permanecemos dentro da sala, já que a chuva impossibilitava nossa ida para o pátio. Importante frisar que, provavelmente devido à chuva, muitos alunos faltaram à aula. Comecei a motivação antecipando o título do poema Desobjeto e perguntando aos alunos o significado daquela palavra. Foram unânimes em responder que era um objeto que havia deixado de sê-lo, demonstrando conhecimento do valor semântico do prefixo. Concordei, indagando o que era necessário para transformar um objeto em “desobjeto”. Com esse questionamento sobre o título do poema, tive o intuito de demonstrar o divertido jogo de palavras que o autor cria em seus textos. Tal brincadeira pode causar estranhamento ao adulto, cujo olhar já foi disciplinado pela credulidade social, estando condicionado à percepção objetiva e lógica dos fatos apresentados.

Para a criança, no entanto, compreender a beleza das criações vocabulares do poeta, apreendendo toda a profundidade de significados possíveis em seus neologismos constitui tarefa mais simples, dada a sua capacidade de imaginar e conceber a realidade que a cerca de maneira mais onírica, sem amarras para limitar as possibilidades criativas. É o que defende Jobim e Souza (1994, p. 89, grifo da autora) ao afirmar que “A criança emprega suas mágicas usando metamorfoses múltiplas, só ela dispõe tão bem da capacidade de estabelecer semelhanças. Esse dom a separa dos adultos, cuja imaginação se encontra tão bem adaptada à realidade.”.

Manoel privilegia a invencionice do falar infantil sempre carregada de leveza em detrimento da sisudez da linguagem adulta, buscando os “deslimites” (BARROS, 2001a, p. 77) da linguagem. Talvez por isso, em Memórias inventadas, o autor retome constantemente o passado, sua infância em contato com a natureza, buscando reviver a criança que foi para exprimir a linguagem em sua concepção mais pura e significativa. De acordo com Scotton (2004),

[...] para o poeta, é nas nossas “raízes crianceiras” que está a chave para se compreender a criança para agir sobre a história. É naquilo que o adulto considera desrazão, absurdo e insensatez na criança que o poeta encontra sabedoria. Ele rememora a sua infância, mostrando nas brincadeiras de que participava a possibilidade que temos de imaginar, criar e transgredir. (SCOTTON, 2004, p. 5).

Retomando a pergunta que fiz aos alunos sobre a estranheza daquele título, os alunos, um tanto quanto hesitantes, responderam que a falta de utilização do objeto bastava para efetuar tal transformação. Diante disso, expliquei que o poema a ser lido apresentava um

desobjeto e, antes de entregar as folhas com o texto, pedi que durante a leitura silenciosa imaginassem as “cenas narradas” e o espaço descrito. Depois disso, distribui os textos. Segue abaixo o poema:

Desobjeto

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo.

O fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais nem pra pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu pra imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente. (BARROS, 2008, p. 23).

Após o término da leitura individual, iniciei a leitura pelo primeiro trecho:

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo. (BARROS, 2008, p. 23).

Essa desconstrução dos seres e objetos é uma constante na obra de Manoel de Barros, como se fosse necessário ocorrer tal transformação para que pudesse alcançar a essência de cada criatura. Notamos que o poeta executa a mesma ação com a linguagem, criando novos significados a partir da desconstrução dos vocábulos. Segundo Martins (2011):

A poética de Manoel de Barros não fala da coisa em si. Ela aniquila o objeto para aproximá-lo de sua essência, elevando a linguagem ao status de indispensável. Não expõe o discurso poético à naturalidade da expressão. No discurso poético manoelino, a dessubstancialização ou a desconstrução desenvolve uma ruptura com a primeira existência própria da linguagem, proporcionando uma (re)significação do entendimento narrativo. (MARTINS, 2011, p. 186).

Como acreditava que o texto não apresentava termos muito estranhos para a turma, decidi interferir o mínimo possível na interpretação, deixando que eles respondessem as dúvidas que porventura surgissem. A primeira pergunta foi sobre o que era ser um menino

esquerdo, que prontamente foi respondida como um indivíduo canhoto. Uma aluna, que desconhecia o que era uma folha dentada, soube através de um colega ser uma folha bem velha, seca, que por estar em estado de decomposição desfazia-se, dando a impressão de ter dentes. Perguntei se conseguiam imaginar a cena descrita e recebi resposta afirmativa. Dessa forma, continuei a leitura do poema.

“O fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto.” (BARROS, 2008, p. 23). Expliquei que esse trecho retratava toda as transformações sofridas pelo pente: mudança de cor, perda dos “dentes”, maus tratos dos animais que mijavam nele. Alguns alunos comentaram que sentiam pena do pente, por viver naquela situação. No próximo trecho, “O fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais nem para pentear macaco”, perguntaram o que significava a expressão “pentear macaco”, respondi que significava não amolar, não perturbar.

No último trecho,

O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu pra imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente. (BARROS, 2008, p. 23).

perguntei quem era aquele menino. Afirmaram ser o autor Manoel de Barros, porque eu já havia explicado que o título do livro, Memórias Inventadas, referia-se às lembranças que o autor tinha de sua infância. Continuei meu questionamento, dessa vez sobre por que acreditavam que o menino havia notado aquele pente. Depois de instantes de reflexão, um aluno disse ser devido à importância que o autor dava para as coisas pequenas, desprezadas, como haviam lido no poema Obrar. Perguntei se haviam gostado do poema, a maioria afirmou que sim, que o assunto era legal, a linguagem simples etc. Porém alguns acharam o tema triste, já que o pente vivia sozinho, sujo e abandonado.

Para dar início à avaliação, solicitei que cada aluno produzisse um texto narrativo, em que o narrador personagem fosse o próprio pente do poema lido. Pedi que organizassem sua história respondendo as seguintes questões:

 Como era a vida dele antes de ser jogado ali, naquele lugar?  Ele foi perdido ou jogado fora, como lixo?

 Como se sentia na natureza? Fez amigos?

 O que aconteceu com ele após o momento em que o menino o viu?

Pude notar na turma mais entusiasmo para escrever este texto do que os anteriores, a empatia com o texto foi tão grande que até um aluno que nada produzia, inclusive durante as aulas de outros professores, como já havia sido informado nos conselhos de classe, empenhou-se na produção sem pestanejar. As produções foram muito criativas (ver apêndice C). Como o número de alunos era menor, realizei a leitura dos textos para a classe. Nos divertimos muito com o desenrolar das narrativas, um aluno em particular utilizou o humor de maneira muito interessante. Alguns textos ficaram piores que outros – no que diz respeito a criatividade e coerência – e os alunos às vezes podem ser cruéis em seus julgamentos, isso é fato.

Consciente disso, fiz uso de uma estratégia corriqueira em minha prática docente (imagino que o mesmo ocorra com quase todos os professores): desde o primeiro texto lido, mesmo naqueles que eram melhores, apontei um ponto positivo e um ponto negativo. Dessa forma, elogiava o que estava bom – contribuindo para a autoestima e confiança dos alunos – e tinha ainda a chance de colaborar para que tivessem um avanço em seu desempenho, sem que se sentissem diminuídos perante os colegas, já que esse método era aplicado a todos. Pode até parecer uma bobagem, mas pequenas atitudes como essa são decisivas para resgatar alunos que têm rendimento inferior à maioria da classe, assim como aqueles que sofrem com a timidez. Todos os alunos precisam ter a sensação de que são sujeitos indispensáveis e insubstituíveis na sala de aula. A inclusão precisa ser literalmente desenvolvida no cotidiano escolar.