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5 PROPOSTA DE INTERVENÇÃO: SEQUÊNCIAS

5.13 REMEMORANDO PAISAGENS: O VELHO/NOVO OLHAR DE SEMPRE

Nessa sequência optei por apresentar um poema da terceira parte da obra Memórias inventadas, nomeada por Manoel de Barros como “a terceira infância”. Com minha escolha, objetivei mostrar aos alunos a leve mudança na exposição do poeta, que deixa de lado, parcialmente, a alegria e molecagem expressas nos relatos sobre descobertas e brincadeiras na “infância” e “segunda infância”, para apresentar um tom nostálgico e reflexivo. O poema escolhido foi Corumbá revisitada.

Corumbá revisitada

A cidade ainda não acordou. O silêncio do lado de fora é mais espesso. Dobrados sobre os escuros dormem os girassóis. Eu estou atoando nas ruas moda moscas sem tino. O sol ainda vem escorado por bando de andorinhas. Procuro um trilheiro de cabras que antes me levava a um porto de pescadores. Desço pelo trilheiro. Me escorrego nas pedras ainda orvalhadas. Passa por mim uma brisa com asas de garças. As garças estão a descer para as margens do rio. O rio está bufando de cheio. Há bugios ainda nas árvores ribeirinhas. Logo os bugios subirão para as árvores da cidade. O rio está esticado de rãs até os joelhos. Chego no porto dos pescadores. Há canoas embicadas e mulheres destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de cangapés. Das pedras ainda não sumiram os orvalhos. Batelões mascateiros balançam nas águas do rio.

Procuro meus vestígios nestas areias. Eu bem recebia as pétalas do sol em mim. Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível. Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei. (BARROS, 2008, p. 163).

Apesar de deduzir que os alunos teriam dificuldades em compreender o poema devido ao grande número de figuras de linguagem, percebi logo no início da interpretação que estava enganada. Refleti que este é, por vezes, um equívoco cometido por nós, professores: subestimar a capacidade de nossos alunos. Como geralmente realizamos o trabalho com o

texto literário de maneira intuitiva, sem delimitação de metodologias e objetivos, não percebemos por vezes o avanço dos alunos no processo de letramento literário. Daí a necessidade de definir claramente quais são os resultados que almejamos alcançar com a análise de um texto literário, bem como os caminhos que trilharemos para alcançar tal feito, atentando sempre para o principal objetivo, que consiste em desenvolver o letramento literário de nossos alunos, como pontua Cosson (2014):

O que importa manter é o objetivo de proporcionar ao aluno o conhecimento de literatura que só pode ser feito, antes de qualquer coisa, pela leitura do texto literário. Do mesmo modo, essa leitura não pode ser feita de maneira aleatória, mas sim dentro de um processo de aprendizagem que é dever da escola proporcionar. Ao professor cabe encontrar o delicado equilíbrio entre os interesses de fruição pessoal e as necessidades da escolarização do literário. (COSSON, 2014, p. 105).

Já na primeira expressão, “A cidade ainda não acordou.”, perguntei aos alunos se compreendiam o que significava a cidade acordar, ao que prontamente responderam tratar-se das pessoas que moravam na cidade e não ela em si. No trecho seguinte, “O silêncio do lado de fora é mais espesso. Dobrados sobre os escuros dormem os girassóis. Eu estou atoando nas ruas moda moscas sem tino. O sol ainda vem escorado por bando de andorinhas.” (BARROS, 2008, p. 163), perceberam que o eu lírico dá indícios de que está vagando pelas ruas mesmo que ainda não tenha amanhecido.

O restante da interpretação deu-se de maneira tranquila, os alunos perceberam que o eu lírico descrevia o ambiente tal qual havia encontrado naquele momento, salvo pelo uso de duas expressões que demonstravam a busca pela criança que havia sido e as lembranças que restaram daquela época, como “Procuro um trilheiro de cabras que antes me levava a um porto de pescadores.” e “Procuro meus vestígios nestas areias. Eu bem recebia as pétalas do sol em mim.”. Questionei se acreditavam que ele havia conseguido seu intento, e depois de instantes de dúvida, responderam que ele até poderia ter encontrado o lugar de sua infância, mas que este estaria diferente, assim como ele, que já não era a mesma criança do passado.

A leitura do último trecho, “Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei.” (BARROS, 2008, p. 163), foi o momento em que os alunos demonstraram mais dúvidas. Alguns alunos entenderam que o eu lírico ficou aborrecido por não ter encontrado as respostas que procurava e desistiu. Outros, que ele descobriu que já possuía todo o conhecimento que lhe era necessário, por isso não se preocupava em buscar novas descobertas. Houve quem analisasse que, se ele queria aperfeiçoar o que não sabia, era sinal de que valorizava mais as perguntas do que as respostas. Considerei todas as interpretações,

pois acredito que mais importante que definir uma única resposta possível, é promover o debate de ideias e a troca de conhecimento entre os alunos, como explica Cosson (2014, p. 115): “[...] a discussão [...] deve trazer perguntas de quem tem dúvidas e respostas de quem acredita saber a resposta. Para tanto, é importante que o professor atue como um moderador e não o catalisador da discussão, evitando dar a primeira e a última palavra sobre a obra.”.

Após este momento de leitura e interpretação, pedi aos alunos que escrevessem um pequeno texto, talvez um simples parágrafo, sobre as diferenças e semelhanças perceptíveis no local em que vivem, nos dias atuais e algum tempo atrás. Deixei que produzissem o texto em casa e me entregassem na semana seguinte, para que pudessem observar com atenção o ambiente em que moravam.

Na data marcada, praticamente toda a turma entregou seu texto. Acredito que a maneira como estamos trabalhando com o texto literário seja benéfica para a efetiva participação dos alunos, uma vez que lendo seus textos em sala, comentando os pontos positivos e negativos de todos, posso, de certa forma, incentivar a autoconfiança dos estudantes na produção de seus textos.

A princípio pensei que meu objetivo com a produção textual – relacionar o presente e as lembranças, refletindo sobre sua própria realidade – não seria alcançando, pelo fato dos alunos serem muito novos e talvez não possuírem o discernimento para refletir sobre a passagem do tempo. Mas tive uma grata surpresa ao ler as produções e encontrar naquelas linhas tantos sentimentos puros, reflexões e uma simplicidade narrativa que se assemelhava àquela apresentada por Manoel de Barros. Não tenho aqui a pretensão de afirmar que meus alunos escrevam tão bem quanto o poeta, mesmo porque nosso intuito não é formar escritores e sim desenvolver o letramento literário. O que quero dizer é que percebi que a sinceridade e pureza que o autor valoriza e apresenta em sua obra é realmente uma característica da infância, geralmente esquecida quando nos tornamos adultos, seja pelo monitoramento e julgamento social ou pelas responsabilidades que surgem e nos obrigam a ver a vida de uma maneira mais objetiva e menos colorida. É evidente a intenção do poeta de unir as duas pontas da vida – infância e maturidade – para que o ser humano não perca sua criatividade e imaginação, como pontua Scotton (2004):

Para o poeta, a infância não é um paraíso perdido, mas um tempo que pode se fazer sempre presente na vida adulta, uma vez que elementos como a imaginação, a fantasia, a criação e um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo-a, contribuem para a unidade e a totalidade do ser humano. O sentimento de Manoel de Barros é o contato livre, sem barreiras e sem preconceitos, entre a criança e o adulto. (SCOTTON, 2004, p. 11).

Dois alunos fizeram uma paródia do texto de Manoel, um relatando a vida na fazenda em que mora e outro mostrando o cotidiano de residir no setor industrial; os alunos descreveram suas vizinhanças, hábitos que mantêm até os dias atuais e lembranças que se perderam no tempo, como os troncos das árvores em que escreviam seus nomes e hoje não mais existem (ver apêndice K). Sem dúvida alguma, foi uma experiência muito gratificante perceber na escrita o que antes já havia observado na oralidade: a evolução de meus alunos durante o processo de letramento literário.