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Do ponto de vista ao ponto de experiência

“E, clínico, abriu cada um dos meus olhos (porque eu só tenho dois?), e olhou bem dentro deles um olhar obsceno, imoral, um olhar frio, sem emoção, nem afeto, um olhar onde brilhava apenas a branca luz de neon da lógica.”

Paulo Leminsky, Agora é que são elas

“Tudo o que em mim sente está pensando.”

Fernando Pessoa

Mesmo a tentativa de levantar apenas aspectos centrais da questão da visualidade na cultura ocidental - conforme hoje se vê nas livrarias: Einstein e a relatividade em 90 minutos1, em acordo com o modo absurdo como experimentamos hoje o tempo cotidiano - escaparia dos limites deste trabalho. Nosso objetivo aqui é muito mais procurar reassumir o lugar da experiência perceptiva na constituição do sentido da experiência - para sugerir uma estratégia através da qual pensar, mais adiante, alguns aspec- tos do contemporâneo - do que proceder a uma retomada mais ampla de um território já hiper-saturado de análises. No entanto, se pretendemos mostrar o laço estreito entre esse pensamento da percepção que queremos retomar e o modelo perceptivo que o limita, não podemos nos furtar a co- locar em jogo alguns termos do chamado ocularcentrismo da cultura ociden- tal. Poderemos assim, mais adiante, tentar revalidar de maneira singular os aspectos da tese de Merleau-Ponty que nos parecem terem sido perdi-

dos pela discussão contemporânea, e o faremos justamente confrontando esse modelo a modelos sensoriais de outras culturas - donde acreditamos que ele se tornará cada vez mais evidente. O risco de colocar em jogo a visualidade é grande: é um traço decisivo do Ocidente, e repor tal discus- são de modo simplista incorre em equilibrar-se entre uma superficialidade inútil e o discurso redundante. Talvez se possa fazê-lo, do modo sintético que nos é necessário, a partir de um trabalho de arte, arejando um bocado nossa discussão. Deixemos então o cubo de Necker, o pato-lebre e as ilu- sões da Gestalt pelo Motivo perpétuo de Man Ray (1970).

Na ponta da haste de um metrônomo, um olho. Trata-se de um remake de um traba- lho original da década de 1920, Indestructrible object. O surrealismo estava então em seu apo- geu e buscava agredir tanto quanto possível o senso comum, radicalizando algumas possibi- lidades abertas pelo dadaísmo para liberar as forças criativas e subversivas do inconsciente na sociedade regulada pela ordem da razão. Sem dúvida, o olho foi um dos alvos favoritos dos surrealistas: Salvador Dalí, em suas “os- tentações reacionárias”, nas severas palavras de Giulio Argan (1992:361), jogou freqüen- temente com o trompe l’oeil; Magritte, mais conseqüente, praticou também a ilusão, mas sobretudo submeteu o olhar cotidiano a um escrutínio cuidadoso num grande número de trabalhos que instalam sempre o poético pela via do paradoxo - ainda nas palavras de Argan, “Magritte tem a obsessão do banal e do misté- rio, que muitas vezes faz coincidir”; ao lado de Dalí - é preciso reconhecê-lo -, Luis Buñuel submeteu, na tela espetacularizante de um ci- nema ainda mudo, o olho, literalmente, ao gol- pe impiedoso da navalha, em Un chien andalou (1928). No gesto mais sutil de Man Ray, porém, o olho antropomorfiza um singelo metrônomo. Este pequeno aparelho é mesmo um signo a um só tempo discreto e poderoso da mecani- zação da Europa no século XIX, o século do

Man Ray: Man Ray: Man Ray: Man Ray:

Man Ray: Motivo perpétuoMotivo perpétuoMotivo perpétuoMotivo perpétuo (1970) - Motivo perpétuo (1970) - (1970) - remake (1970) - (1970) - remake remake remake deremake dededede L’indestructible objet

L’indestructible objet L’indestructible objet L’indestructible objet L’indestructible objet (1920)(1920)(1920)(1920)(1920)

“desencantamento do mundo”, do triunfo do capitalismo, da ruptura de- cisiva com o que ainda restasse de uma tradição qualquer medieval pela to- mada da paisagem urbana pela máquina e pelas formas de trabalho e de poder daí derivadas. Criado em 1816 por um amigo de Beethoven, veio en- tão o metrônomo juntar-se a esse quadro, eliminando a “desagradável” im- precisão de ter-se de fazer uso de referências subjetivas e corporais - “an- dante”, “allegro”, “grave” etc., fundadas na experiência vivida, é bom lem- brar - para, finalmente, oferecer aos compositores, maestros e instrumentistas, já de posse de uma linguagem plenamente esclarecida por Haydn e Mozart, e ampliada de modo extraordinário por Beethoven, a pre- cisão matemática aplicada ao andamento da composição! O metrônomo tra- zia, enfim, um pouco de objetividade ao tempo musical. Decerto não se pode ter como inocente a sua presença como objeto de contemplação, seu deslo- camento duchampiano de acessório periférico, deixado sempre fora da cena

Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali:

Luis Buñuel e Salvador Dali: Le chien AndalouLe chien AndalouLe chien AndalouLe chien AndalouLe chien Andalou (1928)

(1928) (1928) (1928) (1928)

na música, a objeto estético no centro da cena. No alto da haste do metrônomo, porém, há este olho. Trata-se de um metrônomo ciclópico, e, sobre a haste do aparelho, o olho pode oscilar de um lado ao outro, pode escrutinar a cena de uma multiplicidade picassiana de ângulos sem nun- ca deixar de atrair soberanamente nossa aten- ção, justamente por ser o olho, o motivo perpé- tuo do pensamento ocidental. Esse oscilar, que nunca fere a sua posição, é a própria síntese das diversas “visões de mundo” que disputa- ram a interpretação do conhecimento e do mundo na modernidade - e que o surrealismo tentou de tantos modos desafiar.

E o que é esse olho? Esse olhar que se sustenta a partir da máquina é seu próprio criador, o olho que se dirigiu às coisas de um modo como nenhum outro olhar, em nenhuma outra cultura: é o olho da razão. A par- tir de diversas posições, a centralidade do olhar na cultura ocidental é rei- terada seguidamente.2 Já em Platão3 a questão está posta, nas ilusões da caverna, na verdade depositada na metáfora da luz, na definição do acesso à verdade das idéias pelo “olho da mente”, na definição do eidos [aspecto, forma].4 David Levin cita Hanna Arendt:

René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte:

René Magritte: False MirrorFalse MirrorFalse MirrorFalse MirrorFalse Mirror (1965) (1965) (1965) (1965) (1965)

2 Assumimos aqui posições que reaparecem em diversos textos em Levin (ed): Modernity and the hegemony of vision (1993). Heidegger parece ter sido o primeiro a denunciar com clareza uma primazia da visão desde a Grécia. Por exemplo, num texto que já citamos: “ In theöria transformed into contemplatio, there comes to the fore the impulse, already prepared in Greek thinking, of a looking-at that sunders and compartimentalizes. A type of encroaching advance by sucessive interrelated steps toward that which is to be grasped by the eye makes itself normative in know ing.” (“ Na theöria transformada em contemplatio, vem à tona o impulso, já preparado no pensamento grego, de um olhar-para que separa e compartimentaliza. Um tipo de avanço abusivo por sucessivos passos interrelacionados em direção ao que é apreendido pelo olho torna-se normativo no conhecer.” ). (apud Jay, 1993:146).

3 Levin (1993:1) na verdade começa sugerindo um predomínio da visão já em Heráclito e Parmênides.

4 Em relação ao eidos, lê-se também em Heidegger (The age of the world picture, 1938): “ Yet, in the other hand, that the beeingness of whatever is, is defined for Plato as eidos [aspect, view] is the pressuposition, destined far in advance and long ruling indirectly in concealment, for the world having to become picture” (Heidegger, 1977:131).

5 “ [..] desde os primórdios da filosofia formal, o pensamento foi concebido em termos de ver [..] A predominância da visão está tão profundamente ermbutida no discurso grego, e, portanto, na nossa linguagem conceitual, que raramente encontramos uma consideração relativa a ela, que estava entre as coisas ób- vias demais para serem notadas” .

“[...] from the very outset, in formal philosophy, thinking has been thought in terms of seeing [...] The predominance of sight is so deeply embedded in Greek speech, and therefore in our conceptual language, that we seldom find any consideration bestowed on it, as though it belonged among things too obvious to be no- ticed.” [apud Levin, 1993:2]5

Sem nos perdermos nessa origem gre- ga do Ocidente, entretanto, tratemos de veri- ficar a modernidade. Um historiador como Crosby (1999) descreve minuciosamente a passagem que a cultura européia experimen- ta, na Baixa Idade Média, de um modelo qua- litativo, em que quantias elevadas são mesmo o sinônimo do infinito, do imensurável, do

incontável,6 a um modelo progressivamente quantitativo. A representação visual é a chave desse “novo modelo”, em que se descobrira plenamente os poderes da visão para medir tempo, espaço, compreender, representar e, afinal, dominar todas as coisas.7

Falta ao relato histórico, talvez, a noção clara aos filósofos de que a idéia de uma quantificação perfeita já estava implicada no modelo visual de

6 “ Os artífices cristãos de números enveredaram pelo caminho da matemática como sendo uma expressão de reverência. No século II, o bispo de Papias, um dos Padres da Igreja, escreveu que chegaria o dia em que as videiras cresceri- am, cada qual com 10.000 galhos, e cada galho com 10.000 ramos, e cada broto com 10.000 cachos, e cada cacho teria 10.000 uvas, e cada uva produ- ziria 25 ‘metros’ de vinho.” (Crosby, 1999:123)

7 “ A contar das miraculosas décadas que cercaram a passagem para o século XIV (décadas que não tiveram paralelo, em suas mudanças radicais de percep- ção, até a era de Einstein e Picasso) [...] Os europeus ocidentais desenvolve- ram um novo modo, mais puramente visual e quantitativo do que o antigo, de perceber o tempo, o espaço e o ambiente material.

“ [...] em termos práticos, a nova abordagem foi simplesmente esta: reduza aquilo em que você está tentando pensar ao mínimo exigido por sua defini- ção; visualize-o no papel, ou, pelo menos, em sua mente, quer se trate da os- cilação dos preços na região de Champagne, ou da trajetória de Marte pelos céus; e depois divida-o, de fato ou na imaginação, em unidades quantitativas iguais. A partir daí você poderá medi-lo, isto é, contar as unidades. Você pos- suirá então uma representação quantitativa de seu tema, isto é, por mais simplificada que ela seja, [...] uma representação exata. Poderá pensar nela com rigor. Poderá manipulá-la e fazer experiências com ela [...].

“ [...] Visualização e quantificação: juntas elas fecharam o cadeado, e a reali- dade foi posta a ferros.” (Crosby, 1999:211-3).

8 Ver por exemplo, A república, livro X: a melhor parte de nossa alma é “ aquela que dá fé à medida e ao cálculo” (Platão, 1966:391)

9 “ Os monoteístas ocidentais, lutando no início da Idade Média para estabele- cer o monoteísmo entre fiéis politeístas e animistas, tinham certeza de que só havia uma maneira certa de fazer as coisas e apenas uma versão correta de cada canto: eles precisavam de um meio de escrever música. Os monges pro- duziram a notação neumática. Durante gerações, ela foi pouco mais do que uma coletânea de sinais, derivados dos antecedentes clássicos gregos e roma- nos de nossos acentos agudo, grave e circunflexo da língua escrita, menos per- tinentes ao tempo do que ao som relativo. O que chamaríamos de acento agudo indicava uma subida de tom; o acento grave, uma queda; e o circunflexo, uma subida seguida de uma queda. Esses sinais, ao lado de pontos e arabescos que indicavam variações mais sutis − crescendos, pausas e vibratos −, eram cha- mados neumas, palavra derivada do grego e que significa sinal, ou, mais pro- vavelmente, respiração. Eles não necessariamente diziam respeito a notas iso- ladas, mas a sílabas do texto. Os neumas estavam para as notas como as pa- lavras para os fonemas.” (Crosby, 1999:140-1)

10 Mesmo Descartes tendo desacreditado os sentidos e reservado à razão a fa- culdade de desfazer as ilusões dos sentidos, regra geral há concordância em que sua inspeção é construída por metáforas visuais, a começar pela distinção

razão concebido por Platão.8 De todo modo, cál- culos, mapas, a notação musical - cuja estrutu- ra deriva da escrita -9, a perspectiva - o olho do sujeito, aliás ciclópico -, o uso de dispositivos ópticos para a observação dos astros, e, por fim, a escrita impressa, que “aumentou o prestígio da visualização e acelerou a difusão da quantificação” e “foi muito mais importante do que a queda de Constantinopla” (Crosby, 1999:214), constituíram um cenário de que emerge uma racionalidade “precisa, pontual, calculável, padronizada, burocrática, rígida, invariável, meticulosamente coordenada e ro- tineira” (Zerubavel, apud Crosby, 1999:214), sustentada na potência do olhar que a tudo fita à distância, sem confundir-se com as coisas: o sujeito cartesiano, que se apodera de seus objetos.10 O destaque atribuído por Crosby à im- prensa na consolidação de uma cultura visual, já que, através dela, o Ocidente passava a “apren- der fitando marcas padronizadas no papel”, rei- tera a conhecida tese de Marshall McLuhan em sua Galáxia de Gutenberg (1962): a invenção do alfabeto, representação visual da fala, instalara já na Grécia um lugar privilegiado para a visão na formalização do conhecimento. Ao multipli- car em termos precocemente industriais a pa- lavra escrita, a imprensa torna a experiência do conhecimento um ato visual, silencioso e indi- vidual, em oposição a um modelo anterior, em que os livros eram lidos em voz alta nas biblio- tecas. De fato, a escrita impressa retira o caráter

cipal instrumento do conhecimento, e substitui, como mediador principal do saber e do poder,11 o ouvido pelo olho.12 De modo que, enquanto Leonar- do da Vinci reivindica, como lembra Benjamin,13 a superioridade da pintu- ra, a imagem fixa, duradoura e autônoma das coisas, perante o efêmero da música, que depende de sua execução, Galileu, de posse de um telescópio, pensa o universo como livro:

“A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre permanentemente diante de nossos olhos, mas o livro só pode ser compreendido se primeiro aprendermos a compreender a linguagem e a ler as letras de que se compõe.” [apud Crosby, 1999:222]

Mas, em especial, a escrita alfabética do Ocidente não é somente o predomínio de um modelo visual. Trata-se da fixação de um olhar linearizado, fragmentador, sequencial, narrativizado: o olhar da razão me- cânica que daí em diante não cessa de celebrar seus feitos, o maior deles a tecnologia moderna.14 Assim, quando Heidegger define a modernidade

11 Laporte (2000:2-9) narra de modo curioso o lugar da palavra impressa na organização do poder − a publicação de cópias impressas, em lugares públi- cos, dos decretos de rei da França no século XVI, com o objetivo de governar e unificar a língua nacional.

12 Crosby reitera essa transição, um fato favorito de McLuhan (por exemplo, 1995:240): “ Uma sociedade [séc. XIII] em que o principal canal da autoridade era o ouvido, inclinado para a recitação das escrituras e para os Padres da Igreja, bem como para a soporífera repetição dos mitos e poemas épicos, começou a se transformar numa sociedade em que preponderava o receptor da luz: o olho.” (Crosby, 1999:132-3). Howes (1993:10) trabalha, na antropologia, alguns dos caminhos abertos por essa famosa distinção mcluhaniana “ an eye for an ear” (“ um olho por um ouvido” ). (por exemplo, McLuhan e Fiore, 2001a:44). 13 “ Comparando a música e a pintura, escreve Leonardo: ‘A superioridade da

pintura sobre a música reside em que, desde o momento em que é chamada a viver, não há mais razão para que morra, como é o caso, pelo contrário, da pobre música. [...] A música que vai se consumindo enquanto nasce, é menos digna que a pintura, que com o verniz se faz eterna.’ (Trattato della pintura. primeira parte, § 25, 27)” (apud Benjamin, 1982:230 n22)

14 A tese de McLuhan reaparecerá neste trabalho. Durante as duas décadas (1960- 1970) em que se deu sua produção mais conhecida, McLuhan não deixará de reiterar e verificar diferentes aspectos de sua tese central, que reaparecem em todas as suas obras. Por exemplo: “A passage to India by E. M. Forster is a dramatic study of the inability of oral and intuitive oriental culture to meet with the rational visual European patterns of experience. ‘Rational’, of course, has for the West long meant ‘uniform, and continuous and sequential’” (“Uma pas- sagem para a India, de E. M. Forster, é um estudo dramático da incapacidade da cultura oriental, oral e intuitiva, de encontrar-se com os padrões europeus, racionais e visuais, da experiência. ‘Racional’, é claro, significou para o Ocidente ‘uniforme, e contínuo e sequencial’” ) (McLuhan, 1995:157).

como “a era da imagem do mundo” (1938), em que a visualização se torna o grande poder do homem, a máquina é a conclusão deste modelo visual: “Machine technology remais up to now the most visible outgrowth of the essence of modern technology, which is identical with the essence of modern metaphysics.” [Heidegger, 1977:116]15

Vê-se bem aí o que é o metrônomo, esse pequeno objetivador do tempo, o tempo mecânico, linearizado e mensurável, de uma era em que o próprio infinito foi posto pelo olhar, na perspectiva, ao alcance da mão. A partir de Descartes, o olho oscilará em diversas posições, racionalistas, empiristas, idealistas, românticas, positivistas, existencialistas etc.. Tam- bém os aparatos ópticos se multiplicam, modificam-se os modos de exer- citar o olhar e as imagens da paisagem: as lentes, os microscópios, a câmera escura, os zootrópios, taumatrópios, estereoscópios, praxinoscópios, pa- noramas, fotografia, cinema, vídeo, infoimagens... Na contempora- neidade, Derrida, Levinas, Foucault procurarão questionar seu estatuto. Mas, ao fazê-lo - e, aliás, ao fazê-lo através do texto escrito -, não podem abalar sua posição primordial. O surrealismo também não o pôde. Trata- se do objeto indestrutível. Não é por acaso, então, que a percepção descri- ta por Merleau-Ponty é o texto mudo que dá gênese à razão: a percepção de Merleau-Ponty é a percepção do Ocidente.

Como já vimos, lá mesmo em Merleau-Ponty, não obstante o seu recuo posterior ao olhar, a percepção, porém, não é apenas visão. Marshall McLuhan cunhou bem a expressão “sensorial bias” - “arranjo dos sentidos” - para sugerir que o campo perceptivo não deve necessariamente estar definido por este ou aquele arranjo, e comporta alternativas. Mas essa racionalidade sustentada pela primazia de certo modo de visão - e basta olharmos a paisagem urbana para verificarmos as marcas desta história do ocidente: a inundação de imagens em que habitamos - fundou, com a no- ção de sujeito, a de indivíduo. A perspectiva, como bem demonstrou

Panofsky, num trabalho clássico,16 instala o sujeito na posição de doador do sentido do mundo, a partir da posição que escolhe para ordenar a cena. Que o modelo ocularcêntrico tenha mantido sua vigência, motivo perpétuo, a despeito das diversas posições que buscaram rever os modos desse olhar, é mesmo a prova de quanto essa fundação da experiência ocidental perma- neceu inacessível ao pensamento moderno. Mas a noção de indivíduo abre um espaço, também, para experiências divergentes, desde que dispostas a pagar o preço de uma posição que não se articula facilmente com o senso comum. Se o modo como estamos tentando pensar aqui a percepção, as- sociando os sentidos, sentido e sentido, deve ser reafirmado por diferentes significações que a realidade possa assumir segundo diferentes arranjos do campo perceptivo como um todo, talvez possamos começar procuran- do alguns exemplos próximos de como a fuga do modelo de percepção do- minante apresenta o espetáculo do mundo (mesmo já sabendo que espetáculo, que nos remete a espectador, guarda inescapável vínculo com a primazia da visão) com sentido distinto daquele que é senso-comum. Por exemplo, as experiências com haxixe de Walter Benjamin, ou os transes de mescalina de Aldous Huxley.

Em Rua de mão única (1932), Benjamin também faz, em seus ter- mos, o diagnóstico do modelo visual:

“Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto a sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente por impulsos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação óptica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo do que tinha que vir. O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez.” [Benjamin, 1997:68]

Segundo Gagnebin (1996), nos “textos fundamentais dos anos [19]30 [...], Benjamin retoma a questão da ‘experiência’, agora dentro de uma nova problemática: de um lado demonstra o enfraquecimento da ‘erfahrung’ [experiência tradicional, coletiva] no mundo capitalista em

16Die Perspektive als “ symbolishe Form” (1920). A perspectica como forma sim- bólica, edição portuguesa de 1999.

detrimento da ‘erlebnis’, a experiência vivida, característica do indivíduo

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