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“Só a poesia possui as coisas em vida. O resto é necropsia.”

Mário Quintana

Buster Keaton em Buster Keaton em Buster Keaton em Buster Keaton em

Buster Keaton em Film Film Film Film Film (Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)

Em Film (1965)1, o singular filme concebido e roteirizado por Samuel Beckett, um homem é acompanhado obsessivamente por uma câmera, sem que se revele seu rosto. A princípio, o vemos de maneira mais distante; progressivamente, estaremos (nós: a câmera) flutuando num enquadramento que oscila entre o primeiro plano e plano médio/ameri- cano, no registro instável, quase documental, da câmera-na-mão. Ele (o personagem) caminha de maneira aflita, rapidamente, tendo a seu lado uma opressiva e vasta parede, um muro cujos limites, seja à direita, à es-

1 Dirigido por Allan Schneider; 20 min. de duração, P&B. Trata-se da única expe- riência de Beckett com o cinema.

2 Flusser (1998:82) associa explicitamente o cinzento a certo universo histórico da consolidação do capitalismo: “ No século XIX, tudo lá fora era cinzento: muros, jornais, livros, roupas, instrumentos, tudo isso oscilava entre o branco e o pre- to, dando, no seu conjunto, a impressão do cinza: impressão de textos, teorias, dinheiro” . Crary (1990:137) cita, numa epígrafe, Heidegger: “ ... the nineteenth century, still the most obscure of all the centuries of the modern age up to now.” (“ o século dezenove, ainda o mais obscuro de todos os séculos da era moder-

querda ou acima do quadro, não são perceptí- veis, nem tampouco dedutíveis. De fato, se de algum modo podemos imaginar tais limites, somos induzidos a perceber este paredão como uma sinistra e extensa muralha cinzen- ta de uma zona urbana, possivelmente indus- trial2 - não é um lugar, de toda maneira, em que se pensaria para um piquenique de domingo:

Além de aflita e resoluta, a caminhada é também violenta: encolhido em seu sobretudo escuro, calças escuras, cachecol e chapéu negros, suas botinas largas - quase coturnos - em sua fuga de não-se-sabe-o-quê, o corpulento e curvado personagem de Beckett praticamente atropela, aos empurrões, um casal idoso. Quando o choque se dá, e o homem, de quem não vemos a face, prossegue seu caminho, a câmera nos aproxima do ca- sal. Ao lhes enquadrar o rosto, estes também descobrem a câmera que os observa, com expressão que só pode ser descrita como “horror”: os olhos se arregalam, a boca se abre, o temor que se manifesta nos faz pensar que o aparelho - que se instala na vida e se apodera de sua imagem - é mesmo como a própria morte. Mais adiante, na seqüência da vigilância persegui- dora realizada pela câmera, o personagem (que ao final saberemos ser nin- guém menos que um idoso e marcado Buster Keaton) - após desviar-se (e de seu olhar) de uma possível moradora (esta também será surpreendida e “horrorizada” pela câmera) - se introduz em um velho, cinzento e som- brio edifício, cujas escadas sobe, até um quarto vazio: há apenas uma ja- nela, uma cadeira, um espelho, um gato e um aquário em que nada um pei- xe. O decorrer do filme, neste quarto fechado, nos mostra como Keaton, sempre de costas para a câmera, tratará de eliminar todas as possibilida- des de ser percebido por qualquer olhar que seja - mesmo o seu próprio: a janela será fechada; o espelho, coberto; o gato, posto para fora; o aquário, igualmente coberto. Seguro, então, de que não pode ser capturado por qualquer olhar que seja, sentar-se-á na cadeira, ao centro da sala, para observar diversas fotografias, instantâneos de sua própria vida. Acaricia- rá apenas a foto do filho, e em seguida rasgará, em conjunto, essa e todas as demais - ao cabo do que, pode, enfim, descansar. Ao relaxar, será então surpreendido pela câmera, que pela primeira vez (não sem antes fazer uma primeira tentativa, frustrada pela desconfiança alerta de Keaton) contor- na a cadeira, em que o homem adormece, e apodera-se de seu rosto. Cap- turado finalmente pela objetiva, morre.

Este filme inquietante pode ser entendido de diversos modos. Pode-se sugerir que há aí um evidente jogo, já que esse não notar a câmera que o persegue, e que permanece deliberadamente às suas costas por rua, escada e no interior do quarto, pode ser pensado como algo que solicita uma cumplicidade do personagem de Keaton3: afinal, é este quem lhe dá

3 Esta interpretação foi sugerida no debate sobre o filme envolvendo os críticos Arlindo Machado e Ismail Xavier, com mediação de Jane de Almeida, em 26/ 06/2004, no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. As idéias de “ jogo” e “ dar as costas” ao maquinal não estão deslocadas, no entanto, do contexto que tentaremos propor.

as costas por todo o filme. Ou pode-se pensar, por exemplo, que ser é ser percebido e que perceber é ser percebido, como sugere Jane de Almeida (2004), citando Berkeley, em breves notas sobre a obra - e isto implica refletir so- bre a percepção, um desafio que temos procurado enfrentar. Nesse sen- tido, não há como fugir do fato de que - tendo em conta as sucessivas fa- ces de horror (que sugerem de alguma forma, como já foi dito, a morte) re- veladas nos momentos em que a objetiva (vigilante) se apodera de suas imagens - ser capturado pela imagem, ser percebido pela lente objetiva da câmera - ser, enfim, transmutado em objeto do qual a câmera, olho do sujeito, se apropria -, é ser roubado da vida e mumificado, nadificado na objetificação. Na célebre análise de Bazin da imagem fotográfica, a múmia quer preservar o corpo de uma segunda morte, espiritual. Mas, ao mesmo tempo, pode-se dizer que o que essa múmia fotográfica guarda é tão so- mente um cadáver, o fantasma de um corpo já despido de vida.4 A distin- ção cartesiana entre sujeito e objeto, constitutiva da ciência e da filosofia modernas, e o extraordinário avanço do poderio científico do Ocidente durante a modernidade, que tal distinção sustenta, estão intimamente li- gados, já vimos, ao emprego de sistemas e aparelhos ópticos5. Estes mul-

4 Numa seqüência extraordinária de Je vous salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1983), filme que abriga várias referências ao universo heideggeriano, vê-se o corpo nu de Eve (Anne Gauthier), enquanto a voz-over de Marie recita um texto sobre a vida e o corpo, como se a primeira fosse para o último como as velas no inverno, as quais “ só quando as acendemos é que podem nos dar calor” . 5 Sobre a relação entre modernidade e visão, há inúmeras abordagens: Johnathan Crary, em Techniques of the observer, dá um relato minuncioso do uso dos apa- relhos ópticos na cultura moderna e seu duplo estatuto nesta cultura: o de aparatos que se usa, e de metáforas do conhecimento. Além disso, Crary tam- bém sustenta de modo consistente a tese de que cinema e fotografia não são, como é comum se dizer, simplesmente sucessores da câmera escura da Renas- cença, numa linhagem direta em busca do realismo da imagem. De fato, per- tencem a uma ordem social e de conhecimento inteiramente diversa. 6 Num belo artigo (A pintura, o cinema, a fotografia, a luz), Nélson Brissac Pei-

xoto (1996) descreve o modo como a luz é símbolo no Renascimento, tornan- do-se progressivamente matéria na pintura dos séculos XVIII e XIX e sobretu- do na fotografia, e finalmente presença na arte contemporânea.

7 “ Em certo sentido, Rape [Estupro] é uma dramatização brutal da descoberta wharoliana de que a condição implacável da câmera arrebenta o comporta- mento comum e impõe seu próprio regime.”

8 A “ descoberta” wharoliana é menos original do que pensa Hoberman: já em 1935, Benjamin havia tratado explicitamente a questão da objetificação pela

tiplicam nossa visão e nos conferem esse po- der de tratar toda a natureza, até mesmo a pró- pria luz, através da qual se dá a visão, como alvo do nosso olhar,6 indestrutível. A câmera cinematográfica, sucedânea da câmera foto- gráfica, é assim tão somente mais um dos apa- relhos ópticos que emergem nesse contexto, e o cinema, de certo modo, a sua síntese. A res- peito de Rape, filmado por Yoko Ono e John Lennon também nos anos 1960, em que uma câmera, de maneira análoga à de Film, mas mais ostensiva e não dissimulada em relação à personagem, persegue deliberadamente uma moça, até encurrala-la em seu aparta- mento, Hoberman observa algo similar:

“In one sense, Rape is a particularly brutal dramatization of the Wharolian discovery that the camera´s implacable state disrupts ordinary behavior to en- force it´s own regime.”7 [Hoberman,

Tal modo de lide com as coisas do mundo que, ao objetificá-las, tor- nando-as objeto de nosso olhar, submete-as “a seu próprio regime”, e ao mesmo tempo as aniquila, parece ter sido entendido por esses artistas como um modo operativo do aparelho foto-cinematográfico. Mas talvez mesmo dos aparelhos de modo geral, e pode-se sugerir que operem desse modo por tratar-se de reificação de um modo de negociar com o mundo que os constitui. Em síntese: ao apoderar-se da imagem das coisas, tornan- do-as objetos para nós, a câmera de cinema parece tão somente estar pon- do em marcha uma forma (implacável) de perceber (capturar) o mundo característica da cultura ocidental.

Discutimos, nos primeiros capítulos, certas relações entre a per- cepção e a experiência do indivíduo, por si e na cultura. Esta última emer- giu como um campo perceptivo, um território de sentido demarcado em to- das as suas fronteiras sensoriais de tal modo a erigir um cosmos, um sen- tido doado ao mundo pela experiência coletiva, fixado nas tradições, linguagem, objetos etc., definindo um universo capaz de abrigar e infor- mar a experiência individual. A cultura que nos interessa aqui, aquela em cuja ordem (ou desordem) nos fizemos - antropofagicamente e enrique- cidos por todos os tráficos e migrações - é a chamada cultura ocidental, definida por Flusser como uma grande conversação -, e fizemos notar que tal conversação parece ter sido realizada a partir desse ponto de experiên- cia dominado pela primazia de um certo olhar. Ao curso da história, dife- rentes culturas tingiram com variados tons a nossa conversação, mas difi- cilmente se diria que essa forma ocidental de lidar com as coisas e explicitar um determinado sentido do mundo não se impôs por quase todo o globo, à custa, mesmo, do desaparecimento dos sentidos do mundo de muitas ou- tras culturas - um patrimônio de conhecimento que não se poderá mais recuperar. Esse olhar, que para Beckett é devastador, já havia sido pensa- do nesses termos nas origens gregas do Ocidente: os gregos o descreveram no olhar da Medusa, que, ao voltar-se sobre as coisas vivas, transforma- va-as em pedra. Trata-se precisamente do modo objetificante de perce- ber o mundo, explicitado em definitivo na modernidade. Traçamos, por- tanto, alguns parâmetros para pensar a percepção, e, para que se possa discutir, mais adiante, uma percepção digital, devemos, então, procurar fi- xar algumas referências sobre os dois outros vértices da articulação trian- gular a cujo exame nos lançamos: a arte e a tecnologia. Esta última, como o

leitor deve já ter em conta, é uma das marcas dessa submissão imposta pelo Ocidente à cultura planetária de forma geral, e é objeto das reflexões deste capítulo.

Dissemos, ao final do capítulo anterior, que a tecnologia parece intervir decididamente no campo perceptivo da cultura. McLuhan, que dedicou boa parte de sua carreira aos modos dessa intervenção, já dissera, na década de 1960, que “qualquer tecnologia pode tudo, menos somar-se ao que já somos” (McLuhan, 2001b:26). Criticava, então, certo senso co- mum segundo o qual os meios de comunicação, assim como os produtos da ciência moderna, são neutros em si mesmos, e o modo como são em- pregados é que define seu sentido9, bastando fazermos “uso ético” de suas

9 De acordo com Loparic, esta posição, questionada por McLuhan e Heidegger, e que esse último afirma ser então (1954) “ corrente” é idêntica à de Jaspers em 1949: “ Segundo Jaspers, a técnica é um meio de realização pelo homem de seus objetivos, em si mesma nem boa nem má, devendo ser submetida aos controles racionais” (Jaspers [1949], apud Loparic, inédito:15). De acor- do com Abranches (1996:84-5), a questão da “ neutralidade axiológica” da técnica começa a ser problematizada já no século XIX, intensifica-se no en- tre-guerras - quando o caráter tecnológico da modernidade é já explícito - e acirra-se, naturalmente, na perplexidade diante dos fatos e das armas da II Guerra Mundial.

10 Emmanuel Carneiro Leão traduz assim este pequeno trecho: “ A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra” (Heidegger, 2001:11). “ Teimosa” porém, nos parece uma tradução menos adequada ao sentido original do que “ worst” (pior), da tradução de William Lovitt, citada em nosso texto.

11 As pontes que possibilitariam aproximar mais as reflexões de Heidegger e McLuhan são numerosas e surpreendentes - algumas delas serão tratadas ao longo deste texto, embora não seja o objetivo desta tese verificá-las extensa- mente. Em Gutenberg Galaxy, McLuhan tece elogios explícitos a Heidegger: “ Heidegger sufboards along the electronic wave as triumphantly as Descar- tes rode the mechanical wave.” (McLuhan 1997:248). [“ Heidegger desliza (surfe) sobre a onda eletrônica tão triunfantemente como Descartes sobre a onda da mecânica” (McLuhan, 1977:333)] . A possibilidade (e a necessida- de) de um estudo que verifique as relações entre estes dois pensadores cha- ve do século XX já foram notadas por outros autores, por exemplo Heim (1993: xvi): “ Future scholars will sort out how these two thinkers differ while sharing many assumptions. [...] Both Heidegger and McLuhan saw that the computer would pose less danger to us as a rival artificial inteligence than it would as an intimate component of our everyday thought and work.” (Futuros estudi- osos irão verificar a maneira como estes dois pensadores diferem ao mesmo tempo em que partilham diversas posições [...] Tanto Heidegger como McLuhan viram que o computador seria menos perigoso como uma inteligência rival do que como um componente familiar de nosso pensamento e nosso traba- lho cotidianos” .

possibilidades para estarmos guardados de seu eventual potencial nocivo. A afirmação de McLuhan ecoa, por surpreendente e distante que pareça, o Heidegger que diz “we are delivered over to it [technology] in the worst possible manner when we regard it as something neutral.”10 (Heidegger, 1977:4).11 Coloca-se, assim, sob interrogação essa opi- nião comum que atribui tão somente aos seus usos os significados da tecnologia, e é a partir dessa dúvida que examinaremos a questão.

Digamos, em princípio, a partir da ex- periência mais cotidiana, que a tecnologia pa- rece abrigar um fascínio que lhe é próprio, e que pode ser verificado, por exemplo, na atração que exercem sobre as crianças os brinquedos eletrônicos: andam, pulam, acendem luzinhas, cantam canções, dançam etc.. Comparados aos brinquedos tradicionais, “educativos” ou não, os brinquedos eletrônicos têm esse seu apelo irresistível. Esse fascínio multiplica-se na es- fera do entretenimento coletivo, como quan- do se atribui, de maneira corriqueira, grande valor a filmes do cinema comercial de grande público cujo atrativo reside em seus “incríveis

efeitos especiais”. Não se trata de fenômeno recente, já que, para nos man- termos na história do cinema, a novidade tecnológica sempre exerceu aí sua atração - ligada, sem dúvida, à demanda pela “impressão de realida- de” -, de um modo que lhe é específico. Discutindo a transição do cinema mudo ao cinema falado, Claudia Gorbman comenta:

“new technological developments in dominant cinematic represen- tation do not contribute solely to greater ‘realistic effect.’ [...] it is the novelty of technology that is celebrated for a while; its very pre- sentation mystifies or makes a spetacle of the technology in ques- tion.” [Gorbman, 1987:44]12

De modo geral, em toda a era moderna, tal fascínio pela novidade tecnológica participou de um cenário em que o entretenimento foi - e cada vez mais a partir do século XIX - o território da cultura onde as conquistas impressionantes da ciência foram celebradas na experiência cotidiana. Jonathan Crary (1990) descreve em detalhes o modo como as pesquisas ópticas de Plateau, Purkinje, Roget, Brewster, Holmes, Wheatstone e ou- tros resultaram rapidamente em brinquedos como taumatrópio,

12 “ Novos recursos tecnológicos para a representação cinematográfica (ou cinemática) não contribuem somente para um maior ‘efeito realista’. [...] É a própria novidade tecnológica que, por algum tempo, é celebrada; é a sua pró- pria apresentação que mistifica ou faz espetáculo da tecnologia em questão” . 13 Do mesmo modo, poucos hoje referem-se aos panoramas, espetáculo visual que teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XIX, e que, quase um século depois, Benjamin (1997:75-7) ainda visitava, em sua infância em Berlim. Benjamin descreve o desinteresse pelo espetáculo do Panorama - uma tela circular que dispunha uma paisagem como vista, por exemplo, do alto de uma montanha, a espectadores sentados em poltronas ao centro - no final do sé- culo XIX: “ Este era o grande fascínio das estampas de viagem encontradas no Kaiserpanorama: não importava onde se iniciasse a ronda. Pois a tela, com os assentos à frente, formava um círculo, cada uma passava por todas as posi- ções, das quais se via, através de um par de orifícios, a lonjura esmaecida do panorama. Lugar sempre se achava. E, sobretudo, já pelo fim de minha infân- cia, quando a moda começou a se desinteressar dos panoramas imperiais, era comum circular naquele recinto semivazio” (Benjamin, 1997:75-6). 14 Considerando a distinção feita por Loparic (inédito:18, n18) entre e jogo e brin-

cadeira - “ 1) um modo de comunicação [...] ao mesmo tempo receptivo e cri- ador, 2) de um acontecer que não conhece regras fixas” (grifo nosso) -, seria talvez mais preciso tratar tais “brinquedos” como “ jogos” , já que o jogo com tais aparatos mecânicos obedece a regras bem definidas para que seu resulta- do aconteça. Esse sentido de “ jogo” é precisamente o que será desenvolvido por Flusser, que fala em “ jogar com os aparelhos” . Aqui, no entanto, é ade- quado falar-se em “ brinquedos” pois é precisamente neste sentido que tais aparatos foram e são tomados, ingenuamente, na cultura, desde o século XIX.

phenakistiscópio, zootrópio, praxinoscópio, calei- doscópio, estereoscópio - boa parte desses asso- ciada normalmente à história da invenção do cinema -, que contribuíram decisivamente para que o homem se habituasse à lide com o maquínico em seu cotidiano. Cada um destes brinquedos teve seu momento de glória na cultura européia, glória tão volátil quanto pro- gressivamente aceleradas se tornaram as mu- danças tecnológicas: o taumatrópio foi supera- do pelo phenakistiscópio; o zootrópio, pelo estereoscópio e pelo praxinoscópio; o teatro óptico, de Emile Reynaud, que reinou durante anos como entretenimento visual e narrativo em Paris, ao final do século XIX, foi simples- mente jogado ao esquecimento pelo apareci- mento do cinematógrafo Lumière13. Embala- das na força e no prestígio dos êxitos da ciên- cia como signo da razão e do progresso, essas novidades tecnológicas, tornadas brinque- dos14 e entretenimento, ofereceram à cultura

de modo geral uma forma de participar de tais êxitos, e constituíram, des- de então até hoje, atração por si15. Crary, porém, revela a sucessão desses aparatos cotidianos no século XIX menos sob o encantamento mágico de seu fascínio do que sob um prisma mais crítico, em que o observador de imagens é convidado à cumplicidade para com diferentes dispositivos na produção de suas próprias ilusões16, sendo submetido a um adestramento progressivo para o convívio com uma nova ordem perceptiva - a ordem regulatória e produtiva das máquinas. Não parece fora de propósito suge- rir que esse mesmo gênero de adestramento pode ser apreciado na socie- dades contemporâneas, em que os games digitais de diversos gêneros - esses surpreendentes jogos interativos, não necessariamente narrativos e potencialmente infinitos - reificam a presença do computador pessoal no cotidiano e agenciam os ajustes necessários à percepção e ao corpo na cul- tura urbana e na ordem produtiva do início do século XXI. Já havíamos notado, com Benjamin, que esse modo de instalar-se no dia-a-dia pelo jogo, pelo entretenimento, pela imersão lúdica, é uma das mais poderosas estratégias de inserção de novos dispositivos na culturas - tornam-se no- vos hábitos. Assim, tais aparatos podem ser tudo: úteis, divertidos, até mesmo objetos elegantes - segundo uma ênfase no design que marca as novas gerações de PCs e notebooks. Não são, porém, ao que parece, nem

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