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O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático

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Academic year: 2018

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Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Cató-lica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Dou-tor em Comunicação e Semiótica – Signo e significação nas mídias, sob orientação do Prof. Doutor. Sérgio Bairon

Sergio Roclaw Basbaum

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica PUC/SP

O primado da

percepção e suas

conseqüências no

ambiente

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Resumo

A pesquisa visa examinar aspectos da comunicação contemporâ-nea pelo viés da percepção. Trata-se de uma hipótese que emerge em au-tores tão distintos como Walter Benjamin, Marshall McLuhan e Vilém Flusser, que atribuem grande importância à mediação tecnológica nos modos de perceber o mundo e formalizar o conhecimento. Procura-se verificar em que medida a onipresença da mediação digital - da ordena-ção do poder aos afetos privados - têm dado origem a modos específicos de perceber, significar o mundo e formalizar a experiência. Inquire-se portanto, pela natureza de uma percepção digital nas sociedades contempo-râneas. Para tanto, examina-se a natureza da experiência perceptiva, a partir de Merleau-Ponty - que a define como berço do sentido da experi-ência vivida -, e das pesquisas contemporâneas da antropologia dos sen-tidos (Classen; Howes), que permitem superar o conceito de ponto de vista

- que marca a primazia da visão na modernidade - pelo de ponto de experi-ência: o modo como uma cultura percebe e significa o mundo. Em segui-da, examina-se o caráter tecnológico da mediação no Ocidente contempo-râneo, tomando por base Martin Heidegger, Vilém Flusser, Marshall McLuhan e Walter Benjamin. Procedendo a um inventário de manifesta-ções culturais tão distintas como chats, redes, games, VJs, e a arte contem-porânea, conclui-se que a mediação digital tem determinado um novo ponto-de-experiência, característico de uma cultura digital (Gere), em que a visão se integra de modo mais equilibrado aos demais sentidos, intensi-ficando os estímulos sensoriais e alterando noções de tempo e espaço, se-gundo, porém, uma estrutura subliminar inerente à precisão e à eficiên-cia tecnológicas.

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Abstract

The goal of this research is to examine aspects of contemporary comunication from a perceptual approach. This hipothesis emerges from authors as distincts as Walter Benjamin, Marshall McLuhan and Vilém Flusser, all of which ascribe large importance to technological mediation in the ways we perceive the world and formalize knowledge. We search to verify by which measure the ubiquity of digital mediation - from the ordering of power to private affections - has given origin to specifical ways by which we perceive, signify and formalize our experience. We inquire, therefore, about the nature of a digital perception in contemporary societ-ies. To achieve this, we examine the nature of perception, through the work of Merleu-Ponty, who defines it as the source of the meaning of lived ex-perience, and through the contemporary work of the anthropology of the senses (Classen; Howes) which allow us to overcome the concept of point of view - which defines the primacy of vision in Modern Age -, through the concept of point of experience: the way by which a culture perceives and as-cribe meaning to the world. Next, we examine the technological character of contemporary Western mediation, taking as a ground the works of Mar-tin Heidegger, Flusser, McLuhan and Benjamin. By making an inventory of cultural manifestations as distinct as chats, networks, games, VJs and contemporary artworks, we conclude that digital mediation has deter-mined a new point-of-experience, in which vision has been integrated to other senses in a more balanced form, intensifying sensorial stimuly, altering notions of space and time, ruled, however, by a subliminar struc-ture inherent to technological efficiency and precision.

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Sumário

Resumo 5

Abstract 6

Agradecimentos 11

Introdução 13

Capítulo I

Os sentidos e o sentido da experiência 25

Capítulo II

Do ponto de vista ao ponto de experiência 63

Capítulo III

Mundo sem ruído: A utopia digital 121

Capítulo IV

Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 175

Capítulo V

O primado da percepção digital 217

Conclusão

Deus não joga dados 279

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Para Tereza e Luiza;

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Agradecimentos

A muitos colegas, amigos, familiares e colaboradores devemos a possibilidade deste trabalho ter sido concluído. Seria impossível citar to-dos, mas agradecemos especialmente:

Tereza Loparic, amada e talentosa companheira, suportou a extra-ordinária pressão que, sabe-se, as pessoas mais próximas e mais queridas acabam por sofrer no tempo e na imersão que um trabalho desse porte demanda ao autor, nas condições em que produzimos e no contexto do tem-po hipermoderno - a sua colaboração, como parceira, cúmplice e revisora, jamais poderei agradecer suficientemente; Luíza Loparic Basbaum, ama-da e super especial filha, com seu carinho e talento, não apenas agüentou brava e generosamente as ausências do pai, como ofereceu sempre humor, sensibilidade e carinho nas horas mais difíceis do trajeto; Marília Cauduro Ponte, querida amiga, nos acompanhou com entusiasmo contagiante e fez o projeto gráfico que agregou qualidade visual e legibilidade a este volu-me. Meus pais Hersch e Natacha, que torceram e colaboraram demais, com a grandeza, a afetividade e a inteligência que lhes é peculiar. A Profa. Andréa Loparic deu muitas provas logicamente irrefutáveis de generosi-dade, além de conhecido brilhantismo intelectual e erudição que nos per-mitiram evitar muitos equívocos; Carlos Carvalho foi um interlocutor in-dispensável, e os amigos Tatiana Catanzaro e Nélson Lago partilharam con-versas aqui e ali importantes.

Quanto ao conteúdo, não teríamos sido capazes de trabalhar o dis-curso aqui desenvolvido não fosse a contribuição do filósofo Marcos Sacrini, que nos auxiliou muito na compreensão dos difíceis meandros da

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procurava tapar os buracos de sua formação incipiente no privilégio do diálogo com um grande filósofo; e Ricardo Basbaum - que tem, nos últi-mos 40 anos, estado pelo menos três anos à minha frente - além de parti-lhar um fértil diálogo sobre a arte, tem nos dado a oportunidade única de acompanhar de muito perto o desenvolvimento de uma obra extraordiná-ria, no complexo terreno da arte contemporânea.

Às alunas e alunos do curso de Comunicação nas Artes do Corpo, meu agradecimento de coração à sua disposição em partilhar e construir momentos e vivências sensoriais, sem os quais esse trabalho seria muito diferente. Aos colegas do NuPH (Núcleo de Pesquisa em Hipermídia), em especial o fenomenólogo Luis Carlos Petry, com quem tivemos longas e incríveis conversas sobre filosofia, e que nos auxiliou na preparação de uma hipermídia para a apresentação no Subtek, em 2003; ao meu orientador, Prof. Sérgio Bairon, cuja amizade e confiança, bem como a cumplicidade, foram fundamentais para que este projeto ousasse tomar esta forma; Martin Grossmann pela conversa sempre produtiva; por fim, Edna Conti e Cida Bueno, da Comunicação e Semiótica da PUC-SP, que sempre, ge-nerosamente e em todas as horas souberam tornar mais simples, para nós, os caminhos sinuosos da papelândia.

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Introdução

“Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partir da política, ou a partir da religião, ou então a partir da

economia? Deve-se compreender uma doutrina por seu conteúdo manifesto ou pela psicologia do autor e pelos acontecimentos de sua vida? Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser. Todas essas visões são verdadeiras, sob a condição de que não as isolemos, de que caminhemos até o fundo da história e encontremos o núcleo único de significação existencial que se explicita em cada perspectiva.”

Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção.

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Essa articulação triangular entre percepção, arte e tecnologia tem sido um território que nos fascina já há mais de uma década. Desde o iní-cio dos anos 1990, vínhamos inquirindo sobre as relações entre os sons e as cores, que nos levaram às tecnologias digitais, que então tornavam-se mais acessíveis ao público em geral. Buscávamos, ali, de algum modo, e segundo uma afinidade com as manifestações mais radicais da arte moder-na e contemporânea, reunir numa reflexão origimoder-nal uma trajetória inten-sa de estudo e criação musical, e nosso interesse e percurso acadêmico com as imagens em movimento do cinema. Essa aspiração pela união de sons e cores resultou, em 1999, numa dissertação de mestrado (pouco depois publicada em um pequeno livro), que reunia uma reflexão singular sobre a experiência sinestésica - sobretudo sustentada sobre o discurso da neu-rologia contemporânea -, a um inventário de poéticas sinestésicas em vá-rios campos da arte, e, finalmente, à formalização de uma proposta de lin-guagem de cores e sons, a cromossonia. Com isso, nos vimos na posição de sugerir uma certa vocação dos aparatos digitais para estes intercruzamentos e fusões de signos e sensações, que os anos que se seguiram somente vie-ram a confirmar de maneira até mesmo ostensiva. Ostensiva, também, foi a progressiva instalação dos aparatos digitais em todas as instâncias da experiência vivida, uma radical transformação da paisagem cotidiana que nos levou a pôr em cheque o significado de tal paisagem nova e seu impac-to na ordenação e na significação do mundo. Uma transformação de tal escala não poderia passar despercebida e impensada, e é tanto mais espan-tosa quando se tem em mente a ingenuidade com que travamos nosso pri-meiro contato com os PCs, então novidade grávida de inúmeras possibili-dades, abrigando essa aparente positividade que ainda hoje seduz e infor-ma muitos discursos sobre a arte digital. Afinados de há muito com a inquietude e a poder de fogo crítico exercitado pelas artes já ao menos desde o chamado ciclo das vanguardas, não poderíamos deixar tal instalação, de implicações extraordinárias, sem reflexão.

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não parece dar a ver senão a si mesma. O problema da percepção, no en-tanto, nos parece menos uma questão de explicar este ou aquele mecanis-mo que possamecanis-mos dominar ou controlar nas nossas sinapses e áreas corticais, do que o modo como nos atamos ao mundo, como o vivemos e como o significamos. A percepção, antes de qualquer outra posição que queiramos assumir, deve ser vivida, capturada ali em sua gênese num corpo em circunstância, que impõe o desafio extraordinário da presença e da formalização da experiência vivida em suas diferentes manifestações. Esta fala vivencial que entendemos retomar traz a marca da fenomenologia merleau-pontyana que buscou, com um compromisso talvez até hoje sem paralelo, abrir à experiência, por meio de uma admiração pelo mistério inesgotável do vivido, o mundo perceptivo. Do discurso científico e sua compulsão calculadora, seus gráficos, seus PET-scans e seus modelos simulatórios, migramos, então, para a órbita da fenomenologia, sua busca da descrição do vivido e sua conhecida crítica a certo modo de ser da ciên-cia, e este trabalho reflete intensamente a mudança no modo de abrir e abordar esse nosso campo de interesse.

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circunstâncias específicas dos anos 1930, o zelo com que McLuhan procura, na década de 1960, não fazer de sua reflexão uma crítica negativa atesta o incontornável da instalação tecnológica do cotidiano; ao passo que Flusser já escreve, nos anos 1980, na iminência de uma paisagem tecnológica con-sumada - cuja natureza e conseqüências procura investigar.

Se, ao curso destes últimos anos, as obras destes autores nos cati-varam, e encontramos neles aberturas para pensar a contemporaneidade, a reflexão sobre a tecnologia dificilmente pode ignorar as posições que Heidegger procurou formular sobre o Ocidente e o problema da técnica, desde sua controvertida atuação nos anos 1930 (a adesão e posterior rup-tura, sem retratação óbvia, porém, ao partido nazista). Ainda ao início do percurso deste trabalho, tivemos a oportunidade de apresentar, no ano 2000, em curso do Prof. Sérgio Bairon, um seminário sobre o conceito de

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Merleau-Ponty, trata-se uma familiaridade mais simples de elucidar, pela importância da fenomenologia de Husserl na maturação desses dois grande filósofos, e mesmo pelas referências ao pensamento heideggeriano que se encontram, aqui e ali, nos textos do fenomenólogo francês. Este leque de grandes pensadores do século XX, Merleau-Ponty, Benjamin, Heidegger, McLuhan e Flusser, constitui o núcleo da conversação desenvolvida neste trabalho, e, esperamos demonstrar amplamente a possibilidade dessa integração. Para sustentar os argumentos que, regra geral, retiramos des-se núcleo, fazemos uso de razoável bibliografia de apoio.

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busca por encontrar os melhores caminhos para ordenar esta pesquisa se beneficiou, nos três últimos anos, de uma extraordinária aventura no campo dos sentidos. Vale dizer que, se o nosso interesse fosse por uma metodologia estritamente científica, teríamos, provavelmente, acumula-do, com quase duas centenas de alunos, um incrível material de pesquisa, com depoimentos individuais dos mais variados, colhendo histórias pes-soais e descrições de vivências que dão a dimensão inesgotável do univer-so dos sentidos; parece-nos, porém, que este material alimenta em gran-de medida as direções que este trabalho tomou, sem que seja preciso com-prometer a vivência construída em sala de aula com a transformação do diálogo em dados objetivos de pesquisa - aquilo que se vive, cada qual carrega consigo, em seu corpo. Por fim, no curso de Comunicação e Multimeios, tivemos oportunidade de ler e reler os textos de Vilém Flusser que mais nos inspiram, e colocá-los num debate articulado com estudan-tes que, malgrado não tenham sempre a formação demandada por uma leitura mais efetiva da reflexão flusseriana, experimentam hoje, de certo mudo, o mundo técnico descrito pelo filósofo de Praga, que aterrissou no Brasil e deixou polêmica e fértil contribuição em língua portuguesa.

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perple-xidades e a tentativa de formalizar nos termos da conversa do presente aquilo que se recolheu pelo caminho tornam possível. É do esforço, por-tanto, em construir esse diálogo entre a vida e a produção de conhecimento formal, que emerge aquilo que pode, eventualmente, ser uma contribui-ção singular ao pensamento da cultura contemporânea. Com todos os inacabados que o leitor venha, certamente, a encontrar, serão perspecti-vas que emergem da sua trajetória, da sua vivência, e é nessa diferença e na singularidade de cada um que se funda o diálogo que tece o real. Este trabalho, portanto, não foge da sua incompletude, nem do desafio de pro-curar fundar esse lugar próprio, a partir de onde se pode pensar o presen-te a partir da articulação entre a percepção, a arpresen-te e a presen-tecnologia.

Os dois primeiros capítulos são dedicados à percepção. Em Os sen-tidos e o sentido da experiência tentamos extrair da fenomenologia de Merleau-Ponty alguns argumentos que serão decisivos em todo o desen-volvimento deste trabalho. Trata-se, retomando principalmente a Fenome-nologia da percepção de retomar o primado da percepção na gênese do sen-tido e dos modos de formalização da experiência vivida. Para Merleau-Ponty, a percepção inaugura nossas relações com o mundo, funda em nós a própria idéia de verdade, me dá mesmo a gênese da racionalidade. Pro-curamos reiterar a relevância do discurso merleau-pontyano no contexto contemporâneo, e, sobretudo repor em questão o inacabamento e o mis-tério do vivido, fazendo notar esse modo próprio à percepção de ocultar-se para nos dar um mundo, em que não há ainda certo ou errado, que abri-ga o impreciso e o indeterminado, mas que é pleno de significação: um mundo perceptivo, pré-judicativo, que a cultura, esse empreendimento coletivo, normatiza e explicita. Diremos que os sentidos, então, fundam o sentido da experiência, nos lançam ao mundo e o vestem de significação. A obra de Merleau-Ponty, entretanto, foi criticada de diversas formas, e nas páginas finais do capítulo procuraremos tratar de algumas destas críticas e mostrar aquela que consideramos sua maior limitação: a crença de que um certo modo de ser da percepção é universal, e seus laços com uma for-ma de perceber o mundo que é característica da cultura ocidental.

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uma certa primazia da visão no Ocidente. Pretendemos mostrar que os sentidos significam, sim, o mundo, mas que diferentes culturas operam modos radicalmente diferentes de perceber e dar sentido coletivamente ao vivido. Tentaremos trazer, tanto quanto nos é possível, mais próximos do leitor o modo como os diferentes sentidos significam o mundo, e ten-taremos também, tanto quanto possível, oferecer a nossa própria experi-ência em conjunto com aquelas oferecidas pela literatura pesquisada. Pro-curaremos opor à idéia tipicamente ocidental e moderna de “ponto de vis-ta”, um conceito mais abrangente de “ponto de experiência”, que pode descrever melhor o modo como diferentes culturas organizam o campo perceptivo e explicitam uma gestalt experiencial, um modo de dar sentido ao mundo. Ao final, colocaremos o nosso tema principal: a interferência das tecnologias de mediação no equilíbrio do campo perceptivo, e sua in-tervenção nos modos de perceber, significar a experiência e formalizar conhecimento. Trata-se da parte da tese central de McLuhan, que já se encontrava, porém, esboçada em Benjamin, e é reiterada por Flusser. Este capítulo, que articula uma longa coletânea de fragmentos de textos - um pouco ao modo como trabalhamos em sala de aula, utilizando este ou aquele parágrafo para inaugurar um tema, ou concluir uma fala que o situa -, nos parece, agora à distância, ter um pouco um pouco da escrita fragmentária de McLuhan, embora sejamos menos originais e mais metódicos que o professor canadense.

Introduzido o tema da técnica, buscaremos, no terceiro capítulo,

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serão também retomadas para definirmos o modo como se dá aquela in-tervenção na cultura e na percepção já sugerida anteriormente, e seus la-ços com o modo como definiremos técnica e tecnologia.

Finalmente, em Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos

procuraremos enfrentar o paradoxo da arte - esse território da cultura, “canal ideológico” que, não obstante suas fronteiras móveis, possui cer-tas especificidades, e do qual se afirma, quando em retrospecto histórico, dar a ver uma época; mas ao qual, quando na efetividade do presente, atribui-se também um poder específico de estar adiante de seu tempo. Procuraremos examinar, alimentando-nos de autores como Benjamin, Clement Greenberg, Ronaldo Brito e Martin Grossmann, o modo como se pode abrir mão da noção hoje pouco operativa de vanguarda para enten-der as condições que podem sustentar a arte como campo de conhecimento capacitado a exercer pensamento poderosamente crítico, formalizado como presença e fundador de experiência. Tentaremos propor alguns cri-térios que - conquanto certamente transitórios, visto que a noção de arte é fluida, histórica e mutante - permitem pensar, num mesmo registro de uma percepção contemporânea, trabalhos menos ou mais apoiados por recursos tecnológicos digitais, e analisaremos, por uma espécie de estra-tégia comparativa, alguns artistas cujos trabalhos nos pareceram, ao lon-go dos últimos anos, de especial interesse no contexto contemporâneo. Tivemos o cuidado, aqui, de falarmos tão somente de obras que tivemos a oportunidade de experienciar, no Brasil e no exterior , e cuja presença deixou em nós marcas menos ou mais ricas, lembranças menos ou mais indeléveis.

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media-Por outro, busca avançar decisivamente nessa curiosa vocação sinestésica abrigada na instalação digital, uma vocação que já havíamos, em 1999, apontado, mas que podemos agora repor em bases bastante mais consis-tentes, e colher conseqüências mais radicais. E, ainda, teremos prepara-do uma situação reflexiva que permite distinguir com certa nitidez o moprepara-do como o caráter técnico de tal ambiente saturado de sensação instala no campo perceptivo os valores agenciados pelas utopias ambíguas guardadas nas linhas de programa dos dispositivos digitais - uma percepção muito alinhada a um sentido de mundo que, hoje, Gilles Lipovetsky tem chama-do “hipermoderno”.

Nas páginas finais, poderemos fazer um rápido balanço daquilo que este trabalho nos parece ter formalizado, suas contribuições à intensa con-versação corrente e as direções em que nos lança. Para concluir esta intro-dução, algumas prudentes notas sobre o que este trabalho não é:

a) Não é uma exposição enciclopédica, espécie de forma banco de dados (como bem notou Manovich) sobre teorias da percepção, teorias da tecnologia, teorias da arte moderna e contemporânea. Tais trabalhos têm grande importância e utilidade, mas aqui trata-se, antes, de uma tentativa de costurar argumentos para tecer idéias (para dialogar a partir de uma certa posição). É, nesse sentido, um trabalho largamente conceitual;

b) Não é uma catalogação e subsequente categorização (igual-mente: estratégia banco de dados) de trabalhos e procedimentos de lin-guagem de arte eletrônica, tecnológica, arte digital, soft-cinema, web-art,

vídeo-arte, midia-arte, performance, instalações, cavernas e outros quetais que - malgrado o prejuízo que se tem em não observar mais de perto especificidades de obras especialmente interessantes, algumas even-tualmente vistas aqui de relance - pertencem, como esperamos de-monstrar, a um mesmo campo de forças da cultura digital contempo-rânea, e têm sua leitura obscurecida por mitos modernistas que tenta-remos desfazer, e por certo alheamento com relação a elementos constitutivos da cultura digital - o fundo da percepção digital - que procuraremos nomear e descrever;

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algum êxito. As marcas do trajeto anterior, porém, não foram delibe-radamente escondidas ou apagadas, e são retomadas e discutidas aqui e ali (sobretudo no primeiro e no último capítulo);

d) Não é a tradução para o cenário brasileiro de um, dois ou três autores eventualmente desconhecidos em língua portuguesa, cuja versão e contextualização (também útil, de toda forma) eventualmente pudessem nos poupar do exercício árduo mas aventureiro do pensamento. Tal não é a vocação do autor, que tem, como já se viu, alguma consciência dos riscos implicados em sua empreitada e no entanto procura, no melhor de seu compromisso, oferecer um trabalho que constitua a sua contribuição le-gítima (e, na melhor das hipóteses, em alguma medida original e eventu-almente polêmica por certa radicalidade, já que não há nada mais saudá-vel ao conhecimento do que a discussão) ao nosso meio acadêmico;

e) Não é, por fim, uma tentativa de estabelecer diálogo com a psi-canálise, que está fora de nosso alcance. O leitor que advier a este trabalho com disposição aberta às suas (desta tese) proposições, terá mesmo o di-reito de censurar-lhe pelo descaso para com a tradição psicanalítica, que tem enorme contribuição à teoria da arte, do cinema e da cultura. Tal cen-sura nos parece mesmo mais razoável que as duas críticas que já antecipa-mos de certo modo acima, a da multidisciplinaridade e a do determinismo, visto que a psicanálise ocupa um lugar extremamente problemático na cultura tecnológica contemporânea, que por muitas vezes mesmo a nega -e tal não é a disposição d-est-e trabalho, daí a justificativa impr-escindív-el destas linhas. O leitor que trouxer consigo o rico patrimônio da reflexão psicanalítica poderá fazer sua recepção na direção que lhe aprouver, even-tualmente tomando aqui alimento para expandir estas reflexões às dimen-sões das forças psíquicas interiores que se põem em operação num mun-do constituímun-do pelo primamun-do da percepção digital. Sobretumun-do porque, mes-mo se dando sobre um fundo comum da cultura, e marcada pela entropia da mediação tecnológica - como se pretende demonstrar - a percepção não é desligada dos processos mentais superiores e nem “imotivada”, de modo que há enorme universo a ser explorado pela psicanálise no caminho que queremos abrir.

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con-Capítulo I

Os sentidos e o

sentido da

experiência

As quatro Névoas do Caos

o Norte, o Leste, o Oeste e o Sul -foram visitá-lo

ele as tratou muito bem

quando elas saíram, se perguntaram

como poderiam retribuir-lhe a hospitalidade Vendo que o Caos não tinha buracos no corpo Como elas tinham

(olhos, nariz, boca, ouvidos etc.) resolveram dar-lhe um buraco por dia ao fim de sete dias

o Caos morreu

Kuang-Tsé via John Cage via Augusto de Campos, 2003

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mos: diante de nossos olhos, as duas soluções do cubo - aquela que, diga-mos, assenta sobre essa mesma página, e a outra, que se ergue da página para o alto - continuam sua dança perpétua, seu ula-ula silencioso e tranqüilo, zombeteiro quase. Mesmo quando uma intenção deliberada in-veste o olhar que se projeta sobre ele, segundo uma vontade de reorgani-zar o campo visual, o salto de lá para cá nos toma uma duração, uma fração qualquer de tempo, num modo de ser como imagem e de se dar não aos nossos olhos, mas à nossa consciência, que repõe, com simplicidade, todo o mistério da experiência perceptiva do mundo. Não se trata da bengala que é torcida ou oscila pelo efeito da água na refração da luz: aí é apenas uma ilusão, vamos dizer assim, estável, bem comportada, até; meu olhar não pode revertê-la, não pode desfazê-la (Descartes reservou precisamente à razão este papel!), mas tampouco ela mesma desliza de uma configuração à outra diante de mim da forma um pouco desrespeitosa como o faz o cubo. Esse humor, essa ambigüidade, uma certa graça dessa resistência à racio-nalidade determinada a ter as coisas disponíveis aos seus artifícios - e, portanto, de certo modo quietas, ou, mais formalmente, constantes -, parecem estar ainda mais explícitos quando Wittgenstein escolhe, para tra-tar de problemas do pensamento e da linguagem, uma figura como a do

pato-lebre1:

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Do mesmo modo como o cubo, com todo o seu status de uma forma ideal, platônica mesmo, se reconfigura diante de mim alheio à minha von-tade, o pato-lebre desmonta, ainda mais ironicamente - já que seu aspec-to informal nos remete muiaspec-to mais ao cotidiano de, digamos, jogos infan-tis, do que a um certo aspecto laboratorial do cubo - o projeto de uma du-plicação do mundo pela representação que nos livre do incômodo do corpo e de sua finitude, da contingência de um vivido no qual cada instante en-cerra uma infinidade de manifestações que recusam sua formalização in-tegral em nome da riqueza da experiência, que nos dispense da dúvida do mundo e de ter que retomá-lo sempre a cada instante. A ambigüidade do pato-lebre parece querer fazer pouco do projeto de uma totalização mate-mática da natureza: no vivido, o geometral está nu.

Pode-se imaginar que foi essa ordem de problemas que a experi-ência renova sem cessar, essa multiplicidade de presenças tecendo a pre-sença serena de um mundo que supera tudo de quanto eu possa dar razão, e em cuja abundância me perco, que fez com que Descartes - e mesmo antes dele, os gregos - e a filosofia se voltassem à busca de uma ordem que pu-desse estar não aí, nessa superfície irresponsável e jocosa em que as ilu-sões fazem pouco do meu olhar, mas que governasse, por detrás das apa-rências, esse modo de ser de todas as coisas. Assim, em certo momento, quando Merleau-Ponty quer fazer ver que, no percurso que foi da dúvida

ao método para construir uma certeza - de tal modo que esse movimento de todas as coisas, esse Ser que brinca em torno de mim, e no qual eu me si-tuo, não mais pudesse tomar-me como um de seus brinquedos, surpreen-dendo-me com seus caprichos, ou, em outras palavras: impondo-me o imponderável de um destino2 -, enfim, no esforço feito para desenvolver

uma lide com esse duplo que, entre outras re-compensas mais imediatas, me gratificaria com a posição de comandante das coisas, algo se perdeu, uma objeção que lhe será feita será a de que a sua vindicação de retorno é precisa-mente a de um retorno àquilo cuja superação era nada menos que a meta de toda a jornada (Merleau-Ponty, 1990:68). Trocando em mi-údos: o que visava Merleau-Ponty, ao querer retornar a um mundo percebido de aparênci-as ilusóriaparênci-as cuja superação constituiu justa-mente o esforço de toda a história da filosofia,

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ples: trata-se de conhecer sua própria origem, de modo a terem, filosofia e ciência - aventuras da razão - a noção mais exata de sua própria identi-dade, do ponto a partir de onde se fizeram, de sua gênese mesmo. E não que a consciência desse brotamento da razão na experiência do mundo fosse algo de que, em algum tempo de sua história, filosofia e ciência ti-vessem consigo a lembrança, como fosse somente uma chave perdida no caminho da conquista da representação: trata-se de uma origem que elas nunca souberam ver. O corolário dessa constatação é fazer ver que a razão clássica, que de tudo quer ter ciência, abriga talvez um impensado e vive em certa inconsciência de si mesma. Retomar essa origem, como condi-ção necessária à continuidade de uma razão que tome posse de si, e não dê por certo esse impensado a partir do qual opera, é o projeto da Feno-menologia da percepção (publicado na França em 1945), um volume que tomou a Merleau-Ponty mais de uma década de esforço filosófico, e cujas marcas se desdobram, de um modo ou de outro, em sua obra posterior.3

Já mais de meio século nos separa da tese merleau-pontyana so-bre a percepção, e muito do impulso que a sustenta foi colhido em experi-mentos psicológicos que, diante da vasta produção científica da segunda metade do século XX, e em especial da multiplicação de trabalhos nas áre-as da cognição e da neurologia náre-as décadáre-as de 1980 e 1990, seria justo tal-vez questionar. E, ainda, implica em pergun-tar qual a razão de se retomar uma reflexão que parece ter, assim, a chance de ter sido tão su-perada quanto toda uma teoria anterior da percepção que é ali desconstruída. É a crítica um tanto vazia que fazem, por exemplo, um Meyer4, quando afirma que qualquer filosofia

“só pode se fazer a partir de uma nova desco-berta da ciência”; um Ramachandran - que seguidamente desdenha “os filósofos”, como se toda a variedade dos sistemas e dos temas da filosofia fosse algo que se pudesse generalizar deste modo, reduzindo-a a certa filosofia da

3 Ver, por exemplo, Lefort (2004:9): “ O olho e o espírito é o último escrito que Merleau-Ponty pôde concluir em vida. [...][Nele] interroga-a [à paisagem no Tholonet] como que pela primeira vez, [...] como se todas as suas obras ante-riores - e, antes de mais nada, o grande empreendimento da Fenomenologia da percepção (1945) - não pesassem em seu pensamento, ou pesassem de-mais, de modo que foi preciso esquecê-las para reconquistar a força do espanto [...].”

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consciência -5 ou ainda um Francis Crick, que

ironiza de forma talvez um tanto leviana toda a discussão filosófica sobre a consciência.6

Quando se toma, porém, a argumentação de Merleau-Ponty, o que se vai descobrir é que, não apenas a reflexão da ciência contemporâ-nea ainda assenta largamente sobre os mes-mos preconceitos denunciados e discutidos na

Fenomenologia da percepção - aliás, sabe-se de há muito que a ciência se faz sobre certa filoso-fia, ainda que procure em geral ignorá-lo -, bem como que trabalhos recentes sobre a per-cepção incorrem no mesmo uso equivocado (como Merleau-Ponty mostra bem), por exemplo, da noção empirista de sensação (bas-ta ver Meyer, 20027; ou Santaella, 19928). Por

outro lado, se certa ciência parece querer fa-zer pouco da filosofia, trabalhos recentes nas áreas de percepção (por exemplo: Engel e König, 19989), inteligência artificial (Wheeler,

5 Ramachandran e Blakslee (2004:314-7) tecem críticas gerais à filosofia da cons-ciência (que denomina “ o filósofo” ) - em especial à famosa “ falácia do homúnculo” - sem nomear, porém, a qual filosofia se referem. À de Chalmers? À de Searle? À de Husserl? Mais adiante, demonstra certa simpatia por Dennet (Ramachandran e Blakslee, 2004:317). Esta discussão extrapola completamente os limites deste trabalho, embora nossas simpatias quanto ao debate corrente estejam, acreditamos, claramente afirmadas no correr do texto.

6 Varela (1996:4) menciona a “ characteristic bluntness” (aspereza; rudeza) de Crick, ao passo que Noë e Thompson citam: “ No longer need one to spend time attempting... to endure the tedium of philosophers perpetually disagreeing with each other. Consciousness is now largely a scientific problem” (apud. Noë e Thompson, 2003:1). (“ Não precisamos mais perder tempo tentando… supor-tar o tédio do perpétuo desacordo entre filósofos. A consciência, agora é, em grande parte, um problema científico” .). Em especial quanto à “ bluntness” le-vantada por Varela, pode-se fazer uma singular comparação em termos do uso da linguagem por estes diferentes modos de abordar a consciência: enquanto para Crick “ You are nothing but a pack of neurons” (apud Varela, 1996:4), (“ Você nada mais é que um punhado de neurônios” ) Merleau-Ponty já retoma todo o tempo a riqueza da experiência do mundo: “ A melhor fórmula da redu-ção [fenomenológica] é sem dúvida aquela que lhe dava Eugen Fink, assisten-te de Husserl, quando falava de uma ‘admiração’ dianassisten-te do mundo” (Merleau-Ponty, 1994:10). Acreditamos que o leitor entenda a que nos referimos (exceto quando indicado na bibliografia, as traduções das citações são nossas). 7 Meyer (2002:45) adota a posição de Changeux, que, empenhado na busca dos

“ correlatos neurais da consciência” , menciona a busca pela “ contrapartida neuronal do que Diderot chama ‘apercepção das relações’” . Ora, em vista da crítica de Merleau-Ponty às concepções clássicas da percepção, retomar Diderot é sintomático do cartesianismo implícito no modelo localizacionista que do-mina as neurociências. Excelente crítica à questão dos NCC (neural correlates of consciousness) se encontra em Noë e Thompson (2003).

8 Também Peirce recai no engano conceitual da “ pura sensação” , cuja crítica efetuada por Merleau-Ponty é brevemente retomada no presente trabalho. Como se dirá mais adiante, Varela e Shear (2002) e seu grupo retomam Merleau-Ponty e a fenomenologia de Husserl para tentar tratar o “ difícil pro-blema da consciência” .

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199610) ou nos estudos da consciência [Varela

(1996); Varela e Shear (2002); Noë e Tompson (2004)] retomam a filosofia de Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, e ainda as hipóte-ses gestaltistas, em busca de caminhos para tra-tar os mistérios da experiência, da consciência e da percepção que superem um modelo carte-siano da mente, colocando a consciência num corpo e numa circunstância - um corpo que ela é (e não que ela habita) e uma circunstância que não somente a define, como não pode ser res-trita às artimanhas e às condições ideais de um laboratório. De modo que vale retomar alguns dos argumentos de Merleau-Ponty e tentar ver o que nos abre esse seu retorno eloqüente, e tal-vez insuperado, ao vivido da percepção. Após o que, poderemos tentar mostrar que os limites de seu trabalho não estão aí onde certa ciência gostaria de vê-los - mas não pode encontrá-los, visto que a ciência é um território cujo sentido, procedimentos e alcance são bem elucidados em Merleau-Ponty, e às suas questões pode-se dizer que ele responde com suficiente clareza (num modo talvez menos radical, mas solidário a Heidegger11): sua filosofia é mesmo um

ultra-passamento que busca levar a própria ciência a compreender a implicação de suas descobertas -, mas naquilo de que ele não mesmo poderia dar-se conta, dada a ambição de universalida-de universalida-de uma essência da percepção aí desenhada, e sua solidariedade, ainda que crítica, à tradição filosófica moderna do Ocidente.

Trata-se, portanto, de retornar à expe-riência. Diremos, de saída, que algo como o “mundo” se faz presente para mim. Tomá-lo assim, como presença para mim, não implica, em princípio, e nem exclui, a possibilidade de que este mundo seja algo em si, presente inde-pendentemente da minha presença, que seja

10 Num interessante artigo em discute a questão da experiência estética, a partir das telas de Mark Rothko, no terreno da robótica e A-life (artificial life), tam-bém Wheeler (1996:226-34) recorre a Heidegger: “ In fact, I suggest that if the Heideggerian picture is compelling, then there is good reason to think that the dynamical systems perspective [...] combined w ith the concept of active perception, provides a compatible framework for the scientific investigation of the mechanisms underlying world-embeddedness.” (Wheeler, 1996:229). (“ De fato, minha sugestão é que, se a descrição heideggeriana não pode ser recu-sada, então há boas razões para se pensar que a perspectiva dos sistemas di-nâmicos [...] combinada com o conceito de percepção ativa fornece um qua-dro adequado à investigação científica dos mecanismos subjacentes à imersão no mundo” ). Cabe certamente a questão de como Heidegger perceberia essa apropriação de Ser e tempo dentro do contexto de uma ciência, e, em especi-al, de uma cibernética à qual criticou profunda e veementemente. 11 Em vários momentos de seus textos, Merleau-Ponty faz referências a Heidegger.

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um mundo objetivo, como o supõem certa filosofia e certa ciência. Um tal mundo objetivo, porém, só posso supô-lo a partir do momento em que este se apresenta, e tal presença se faz pelo chão que sinto sob os meus pés, pelo vento ou pela água, por exemplo, em minha pele; pelas imagens que vejo, pelos sons que ouço, pelo ar que respiro, pelos aromas que capturo, ou pela matéria do mundo que transformo em mim mesmo quando me alimento e que traz consigo sabores, texturas etc. É enfim, através do que a percep-ção me oferece que se tece em mim a presença do mundo: um certo cená-rio. Não se trata ainda sequer de considerar que os sons que ouço, por exemplo, não existem por aí como o chão que piso - são apenas “ondas” que

percebo como sons: há uma comunhão, por assim dizer, mais intuitiva, en-tre uma pedra que pego em minha mão e sua materialidade física, sua du-reza, sua aspedu-reza, sua permanência, do que entre os sons que ouço e sua volatilidade. Trata-se, antes, de que cada elemento que me afeta, nesse ce-nário que a todo instante reafirma sua presença, não apenas manifesta uma alteridade - já que me descubro pelo que não sou -, mas me situa na cena. Sou, nesse momento, diria Merleau-Ponty, “um sujeito perceptivo, liga-do pelo corpo a um sistema de coisas” (Merleau-Ponty, 1990:57). Admi-tindo que “nossa vida é inerente ao mundo percebido” (Merleau-Ponty, 1990:64), temos aí o que se pode, de saída, dizer da percepção: é o nosso contrato com mundo:

“A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” [Merleau-Ponty, 1994:6]

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“A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no mundo, sem confundi-lo nunca com as minhas divagações.” [Merleau-Ponty, 1994:5-6]

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mun-do cuja existência, de imediato, antes da dúvida, reconheço: disponho da “experiência da verdade”, e a percepção emerge assim como “aquilo que funda para sempre a nossa idéia de verdade” (Merleau-Ponty, 1994:13). Enfim, como diz Merleau-Ponty:

“Nós estamos na verdade, e a evidência é a ‘experiência da verdade’. Buscar a essência da percepção é declarar que a percepção é não presumida como verdadeira, mas definida por nós como acesso à verdade.” [Merleau-Ponty, 1994:13-4]

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pectivas que experimentam, sob diferentes ângulos, esse fluxo inesgotá-vel de um Ser ao qual interrogam, que nos interroga sem cessar, e cuja to-talidade não pode ser apreendida por nenhuma subjetividade por si só, que Merleau-Ponty nos autoriza a chamar “mundo real”. O encontro com o “outro”, assim, mostra o caráter unilateral da minha verdade, e inaugura o senso comum, o acordo intersubjetivo, histórica e culturalmente demar-cado, a respeito daquilo que constitui o “real” para a experiência partilhada. Não se trata, porém, de negar que haja uma unidade mais ampla nesse “real” que se dá em fragmentos a cada um, segundo sua experiência: o todo a que se dirigem as consciências, em que participam o ego e o alter, é um mesmo mundo, que “já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável” (Merleau-Ponty, 1994:1), e apenas não se esgota nesse acordo − “A idéia da verdade reside absoluta e inequívoca na vida, ainda que a verdade só possa ser dita à meia”, como o disseram Bairon e Petry (2000:90). O empenho da filosofia e da ciência clássicas tinha a su-perar, então, no senso comum, não somente as ilusões, mas a pluralidade das perspectivas. Ultrapassar o entendimento cotidiano e repor o cosmos segundo um “olhar de sobrevôo”, ensinar a ver não somente uma ordem oculta por trás das aparências, mas estabelecer uma totalidade inequívoca de mundo, onde já não há mais ego nem alter, definida pelas construções ideais da representação: os juízos libertos da circunstância. Ora, como mostra Merleau-Ponty, desse modo, meu esforço em fazer razão da minha experiência já não se dirige ao mundo que inaugurou em mim a reflexão, nem ao acordo com um outro e sua fração de mundo, mas a Deus ou o que quer que se queira que constitua a totalidade transparente, sobre a qual não paira dúvida e que se encontra realizada de antemão nalgum lugar ideal,

12 “ Considerar que nós temos uma idéia verdadeira é crer na percepção sem crí-tica [...] É porque se supõe efetuado em algum lugar aquilo que para nós exis-te só em inexis-tenção: um sisexis-tema de pensamento absolutamenexis-te verdadeiro, capaz de coordenar todos os fenômenos, um geometral que dê razão de todas as pers-pectivas, um objeto puro sobre o qual trabalham todas as subjetividades. Não é preciso nada menos que esse objeto absoluto e esse sujeito divino para afastar a idéia do gênio maligno e para garantir-nos a posse da idéia verdadeira.” (Merleau-Ponty, 1994:70-1).

transcendente ao horizonte do vivido.12 Ao

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calcula-da − um teorema de Pitágoras, por exemplo, ou a fórmula einsteiniana de matéria e energia. A partir do mundo percebido − ou a partir daquilo que nele se apresentou como tratável segundo os procedimentos definidos: os

objetos da ciência − foram lançadas as hipóteses, encenados os experimen-tos, feitas as demonstrações e medições, e, havendo o rigor necessário, não pode haver senão concordância: ergue-se, assim, o especular geometral do mundo, o real fixado e liberto do paradoxo, o telos do objetivismo.

O que Merleau-Ponty censura seguidamente nessa filosofia, e mais geralmente na ciência que ela sustenta, não é essa busca metódica de uma verdade, nem o exercício dessa razão. É o esquecimento de sua origem, da experiência do mundo vivido da qual ela só pode ser “expressão segunda” (Merleau-Ponty, 1994:3), e de onde nasce todo o seu sentido:

“As representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas subentendem, sem mencioná-la, essa outra visão, aquela da consciência, pela qual antes de tudo um mundo se dispõe em torno de mim e começa a existir para mim. Retornar às coisas mesmas é retornar a esse mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem − primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho.” [Merleau-Ponty, 1994:4] De tal modo que a representação é um acesso legítimo ao Ser, con-quanto abrigada na amplitude da experiência que busca explicitar, e não fe-chada sobre si mesma, na lide com os signos vazios de um duplo absoluto:

“Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se encontram, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito Absoluto ou em mundo no sentido realista.” [Merleau-Ponty, 1994:8].

Ou ainda, num trecho bastante conhecido:

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inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo, revelando-me como ‘ser no mundo’.” [Merleau-Ponty, 1994:9]

Formalizado desse modo, efetuada esta substituição da experiên-cia das coisas pela sua reconstrução, o conhecimento não pode acomodar senão segundo a ordem própria a uma racionalidade que se dirige a uma teleologia ou um mito da verdade objetiva− esta mesma um conceito histo-ricamente fundado −, a facticidade do vivido e sua resistência à redução ao constante, ao estável e ao calculável. E a percepção não pode ser senão um termo menor de uma cadeia causal em que a razão é o ponto mais elevado (e não seria engano perceber aqui já desenhada a superioridade das fun-ções corticais que dominará a neurologia até pelo menos a década de 199013), e os sentidos não são mais do que os “fornecedores dos dados” do

mundo exterior.

Seguidamente, Merleau-Ponty repetirá, de diferentes modos, em contextos variados a mesma advertência: de nada vale procurar elucidar o processo da percepção a partir de seus resultados acabados, projetando sobre a experiência perceptiva conceitos que são produto da reflexão so-bre um mundo tecido no perceber; e não basta, para compreender essa gênese do mundo, o modo como ele é conduzido do indeterminado ao de-terminado, fazer como que uma equação cujos resultados finais conferem, mas cujos termos não correspondem àquilo que de fato se vive. Empirismo e racionalismo o fizeram, ambos, recorren-do, por exemplo, à noção de “sensação”: diz-se, então, que os sentidos me dão qualidades puras − um vermelho, um verde, uma nota dó, um aroma de uma rosa − que valem por si, a consciência sendo inteiramente cada uma delas no ato do sentir. Uma vez tomados pelo corpo, os estímulos sucessivos, vazios de sen-tido, “caos de sensações”, seriam ordenados através de procedimentos complementares, segundo a lógica causal: poderiam ser “asso-ciados”, pela contiguidade das sensações su-cessivas, permitindo definir objetos pela “constância” da correspondência ponto-a-ponto entre os estímulos do mundo em mi-nha retina e o objeto percebido; ou então, po-deriam ser elucidados a partir das

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ções” sobre eles projetadas − estas possibilitariam a acomodação do per-cebido num contexto de uma história capaz de vesti-lo de uma ordem e de um sentido. Vejamos o que há de equívoco em tal modelo “sensação / as-sociação / recordação”: de saída, a própria noção de “sensação pura” é em si mesma uma ficção, já que os psicólogos gestaltistas demonstraram, de maneira aliás bem conhecida, que a mais simples percepção que se pode experimentar envolve relação de figura e fundo,14 determinando um

con-texto em que o que se percebe é, afinal, mais do que os estímulos permiti-riam deduzir − o exemplo que Merleau-Ponty emprega, de início, é o de uma estrutura bastante simples, a mancha branca sobre um fundo homo-gêneo (Merleau-Ponty, 1994:24):

Percebemos aqui, mais do que simples pontos que se ligam por uma lei de associação: os “pontos” são percebidos como uma “mancha”; as margens da mancha como que lhe pertencem, e não ao fundo; já este últi-mo parece prolongar-se sob a figura, que me parece colocada sobre uma superfície contínua. “Cada parte anuncia mais do que ela contém, e essa percepção elementar já está, portanto, carregada de um sentido” (Merleau-Ponty, 1994:24). Percebo sempre um campo de relações, um todo “maior que a soma das partes”, como diz o famoso aforisma da Gestalt - não há, de outro modo, qualquer experiência perceptiva. Supor que a percepção possa ser decomposta em partesextra partes é forçar sobre ela uma estrutura do “mundo objetivo”, em que há “coisas” - decomponíveis em partes - e “va-zios entre as coisas”; mas, na experiência perceptiva vivida, que me dá sem-pre campos de relações, nada há que corresponda às noções de sensação pura e correspondência ponto-a-ponto entre os estímulos e o percebido, ou às partes autônomas de um modelo mecânico. A partir dessa impossi-bilidade, dessa incompatibilidade entre o pensamento analítico e o tecido perceptivo, as contradições que se encontram ao examinar a noção de

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sação não mais deixam de vir à tona. Falou-se da correspondência ponto-a-ponto entre os estímulos e os objetos formados na consciência. Mas o cubo já não nos dissera há pouco que a experiência percebida se descola de seus estímulos para constituir sua própria sintaxe? Ou, então, tomemos um outro exemplo conhecido - e, pode-se dizer, igualmente irônico - as retas de Muller-Lyer:

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“Uma paisagem em dia de neblina”, a penumbra no quarto ao ama-nhecer, quando o olho experimenta o limiar entre ter cores ou somente tons de cinza, ou ainda as cores cambiantes do céu no “lusco-fusco”, nos lembram o quanto vivemos em meio a

situa-ções indeterminadas, às quais recusamos o es-tatuto de realidade, por conta das teorias que nos obrigam a tratar sensações como defini-das, num mundo de objetos definidos. Ao fazê-lo, negamos o caráter experiencial de algo que não é necessariamente “isso” ou “aquilo”, mas “nem uma coisa, nem outra”. As cores, que são bem o exemplo costumeiro da “quali-dade pura”, mostram a dimensão dos proble-mas aí colocados. Ora, uma coisa é ver cores -dependentes de uma série de variáveis, como luz, área ocupada pela cor, as cores em sua pe-riferia, como o mostram os diversos trabalhos apaixonadamente dedicados à cor, por Itten (1996), Albers (1975), Pedrosa (2002), ou so-bretudo Goethe (1993)15; e ainda assim, num

contexto da luz variável de um dia, vemos as cores com certa permanência; outra é dar no-mes às cores, tentar determiná-las segundo o

15 O relato de Goethe é célebre e, como se sabe, uma espécie de manifesto anti-newtoniano. Traz inúmeras passagens que nos repõe a aventura do olhar que se entrega às cores. Por exemplo: “ Um dos mais belos casos de sombra colo-rida pode ser observado na lua cheia. O brilho da vela e o da lua podem ser colocados em perfeito equilíbrio. Ambas as sombras podem ser apresentadas com a mesma força e nitidez, de modo que as duas cores estejam perfeita-mente equilibradas. Coloque uma superfície na posição oposta ao brilho da lua cheia, e a vela um pouco ao lado, a uma distância conveniente; coloque diante da superfície um corpo opaco, e surgirá em seguida uma sombra dupla: a projetada pela lua e iluminada pela luz da vela será vista como um forte amarelo-avermelhado e, ao contrário, a projetada pela luz e iluminada pela lua, como o mais belo azul. Onde ambas as sombras se encontram, tornando-se uma só, tornando-será preta. A sombra amarela talvez não possa tornando-ser apretornando-sentada de maneira mais contundente. A proximidade imediata do azul e a sombra preta que se interpõe tornam o fenômeno ainda mais agradável. Pois quando o olhar se demora um pouco na superfície, o azul, complementar ao amarelo, intensi-fica novamente esse amarelo que o complementa, que por sua vez produz seu oposto, um tipo de verde mar.” (Goethe, 1993:70). Descrições como essa, re-pletas ao mesmo tempo da força daquilo que foi vivido e expressas com uso de vários “ um pouco ao lado” , “ talvez” e outras expressões que reservam um espaço de indeterminação atravessam toda obra que Goethe dedica às cores.

Joseph Albers: Joseph Albers: Joseph Albers: Joseph Albers:

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objetivante de um modo de pensar o mundo e suas coisas que é muito pos-terior à experiência que o constituiu. Brakhage (1983:341) o diz bem: “[...] quantas cores há num gramado para o bebê que engatinha, ainda não cons-ciente do ‘verde’?” Se me deparo com o reflexo da luz refratada que me dá as cores do espectro, numa repetição do experimento newtoniano, ou, mais cotidianamente, tenho o espectro refletido na superfície de um compact-disc, ou ainda, tenho as cores dispostas no acontecimento tão raro de um arco-íris, há regiões de transição entre as cores que declaram enfaticamen-te essa indeenfaticamen-terminação, que não posso definir como “verde” ou “azul” ou “laranja”, que não são “dizíveis”, e que pedem para ser “mostradas”, par-tilhadas. E, ainda assim, na concordância de estarmos nos dirigindo a uma mesma paisagem, sabe-se que não há identidade completa no modo como experimentamos essa cor, bem como no modo como eventualmente a no-meamos. Por fim, na “hora mágica”, aquela extensão escorregadia de tem-po que antecede ou sucede o nascer ou o tem-por do sol, nem mesmo os cálcu-los e as “latitudes” dos filmes fotográficos encontram a precisão, como ainda lembra Brakhage, que se dedicou de modo singular a essa empresa poética do olhar: “[...] pode-se ainda fotografar uma hora após o nascer do sol, ou uma hora antes do poente, naquele período tabu, em que nenhum laboratório garante nada” (Brakhage, 1983:345). Não existe, enfim, algo tal como “pura qualidade”: no quadro que vejo, de Magritte, é ainda o cachim-bo, a despeito de suas advertências, o que vejo; o som que ouço é “um pás-saro”, “um relógio”, “uma flauta”, “um sino”; aquele perfume, “uma flor”, “o mar”, “o jardim”. A sensação pura só existe como “objeto tardio de uma consciência científica”16:

“A teoria da sensação, que compõe todo o saber com qualidades determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equívoco, puros, absolutos, que são antes os ideais do conhecimento do que seus temas efetivos; ela só se adapta à superestrutura tardia da consciência [...] [No entanto] É ora a aderência do percebido a um contexto e como que sua viscosidade, ora a presença nele de um indeterminado positivo, que impedem os conjuntos espaciais, temporais e numéricos de se articularem em termos manejáveis, distintos e identificáveis.” [Merleau-Ponty, 1994:34]

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As dificuldades derivadas do conceito de “qualidade pura” servem, para Merleau-Ponty, de suporte a outras considerações, à medida que vão se revelando os modos de ser do percebido. Este nunca me oferece, então, “elementos claros e distintos”, como o desejaria o pensamento lógico, mas, como os gestaltistas demonstraram, apresenta sempre “conjuntos signi-ficativos” que se reorganizam conforme o contexto: as “coisas” só nos apa-recem envoltas em relações, que podem assumir diferentes configurações conforme um ponto de vista, conforme o sentido da situação para o viven-te. Assim, ali onde a percepção nos abre um mundo indeterminado, pré-objetivo, que não se sujeita às categorias do conhecimento que inaugura, a sensação também não pode ser simplesmente reduzida aos estímulos pro-vocados na periferia dos órgãos sensíveis; onde se dá a sua gênese, já estão implicados processos de entendimento que antes eram considerados ex-clusivos de funções superiores: trata-se de uma mescla de sentido bioló-gico e psicolóbioló-gico. Merleau-Ponty vai tomar esse irredutível da sensação à qualidade pura para desmontar as análises da percepção constituídas an-teriormente aos estudos da Gestalt. Fala-se por exemplo, no empirismo, em “associação” ou “projeção de recordações”, como fossem, já dissemos, operações complementares que permitiriam, no primeiro caso, à consci-ência relacionar as sensações por certa familiaridade − como “marcas que se vão deixando sobre a cera”, lembra Carmo (2002) − ou, no segundo, atribuir à intervenção posterior de uma história pessoal esse sentido psi-cológico que a paisagem possa assumir para aquele a quem se apresenta.

René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte:

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Mas a qualidade pura não era uma experiência fechada em si, de identifi-cação total entre o sensível e o senciente? Ou, ainda, as sensações, em con-junto, não eram o “caos das sensações”? Ora, segundo esse modelo, seria necessário introduzir alguma outra operação que me permitisse, em pri-meiro lugar, distinguir elementos que possam ser associados, por conti-guidade ou aos fatos em minha memória. Uma qualidade que é por si não pode existir senão em conjunto com outras qualidades que não se comu-nicam; e minhas recordações só podem ser investidas sobre o percebido se este já me oferece algo em que investir a lembrança. Só posso fazer associ-ações porque este todo já se ofereceu a mim com um sentido; do contrário, qualquer associação é igualmente possível. Ora, se se pretendia que fos-sem as associações por certa familiaridade que me permitiriam constituir uma cena a partir do teatro desordenado das qualidades puras e autônomas, verifica-se que ou é tarefa impossível − já que aquilo que é experiência de sensação pura e distinta, em que a consciência se perde, não admite por-tanto associação alguma −, ou é tarefa desnecessária − já que, se posso fa-zer associações, é porque a cena que deveriam ordenar já estava posta, e portanto não há mais caos muito antes de que recordações possam ser convocadas. O mundo que a percepção torna presente vai se desenhando, então, como a presença de um cenário, já investido de certa ordem, certo sentido; que é móvel, comporta ambigüidade, é vivo e inacabado, mas não é redutível nem ao caos das sensações nem à pura somatória de partes autônomas e distintas, como o quereria um modelo de um mundo objetivo: “Se enfim se admite que as recordações não se projetam por si mesmas nas sensações, e que a consciência as confronta com o dado presente para reter apenas aqueles que se harmonizam com ele, então reconhece-se um texto originário que traz em si seu sentido e o opõe àquele das recordações: este texto é a própria percepção.” [Merleau-Ponty, 1994:46]

Ou ainda:

“Perceber não é experimentar um sem número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las; é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível.”

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pro-cedimentos que já demandam a tarefa anterior de definir, de algum modo, aquilo a que se possa fazer associações ou ligar recordações, a tradição racionalista não encontra menos embaraços diante dessa noção abstrata da sensação pura. A estratégia racionalista é fazer uso dos conceitos de “atenção” e “juízo”. A noção de atenção aparece também no pensamento empirista: o caos de sensações só adquire aí alguma ordenação, me dá objetos, à me-dida que volto sobre esta ao aquela parte de meu campo perceptivo o meu foco, assim como um projetor lança uma luz indiferente aqui ou ali. Num tal modelo, persiste ainda a lacuna de saber-se como, num campo de sen-sações indiferentes, este ou aquele fenômeno podem solicitar a atenção, e portanto a consciência permanece passiva e despida de intenções. Para o racionalismo, ao contrário, os objetos já estão todos lá, definidos no mundo objetivo e exato, bastando apenas que eu “preste atenção” para percebê-los e tê-percebê-los à disposição. Mas, desse modo, lembra Merleau-Ponty, a aten-ção não acrescenta nada, visto que, uma vez mais, quando a atenaten-ção se volta sobre este ou aquele objeto, a ligação entre meu corpo e a paisagem já está consumada: perde-se ainda a operação que me permite dispor de um ho-rizonte, e o modo como literalmente me cria um mundo permanece em silêncio. Num momento, está-se no caos das sensações; no momento se-guinte, já é o mundo das coisas objetivas. A percepção persiste como “essa surda presença do mundo que se sublima no ideal da verdade absoluta”. O juízo intervém, aí, para expulsar o indeterminado: tenho dois olhos, mas vejo apenas uma imagem, porque o julgamento determina às sensações sua significação e as sujeita à sua ordem; “vejo, pela minha janela, chapéus que se movem, e julgo que são homens” − conforme o exemplo consagrado de Descartes. Num tal cenário, do qual me apropriei pelo ato de atenção e que livrei de equívoco pelo exercício do julgamento, para experienciar, final-mente, uma percepção, não cabem ilusões: o mundo objetivo e preciso está aí à disposição de cada um, bastando apenas “prestar atenção” e julgar. Mas, se a percepção se torna “interpretação”, o “sentir” tornou-se vazio: “a sen-sação não é sentida” e palavras como “ver” ou “ouvir”, inerentes a uma cir-cunstância, perdem o sentido frente a uma consciência que, antes mesmo tenha “coisas”, de tudo já detém o estatuto (Merleau-Ponty, 1994:65):

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Ora, ainda uma vez, a teoria não acomoda de nenhum modo a am-bigüidade esquiva das ilusões:

Não basta que eu saiba − e portanto disponha dos elementos ne-cessários ao julgamento −, para reverter em mim uma imagem que em nada corresponde aos estímulos objetivos17: é somente quando me desloco a um

ângulo apropriado, vendo, por exemplo, essa mesma figura a partir da ex-tremidade de uma das retas, que o campo se reorganiza e as linhas emer-gem em sua configuração paralela. Essa paisaemer-gem nova, essa reorganiza-ção súbita do campo que encontro, pela minha teimosia e pelo meu inte-resse, e já dispondo da chave da ilusão, é que constitui, finalmente, o que é o ato de atenção − uma mudança nas relações de contexto a partir de cer-ta motivação pela qual me dirijo a ele. Mas essa é antes um interesse, uma intenção, que só existem em direção às coisas presentes, ao Ser que me acolhe, do que a posse de um poder constituinte que torna possível que haja, para mim, mundo. Por outro lado, Merleau-Ponty também adverte que, quando se estabelece o julgamento ali mesmo onde a contingência funda a presença do mundo, o que se obtém, finalmente, é um juízo em que a potência de laborar a reflexão da razão − que pretende, no seu específico, descolar-se da circunstância

− fica comprometida. Bem como, já se disse, o modo de ser do percebido − as hierarquias, a solidariedade e as tensões entre as coisas, o campo, a paisagem inacabada, onde dados dos sentidos já se manifestam de imediato conforme um certo sentido − permanece ina-cessível. Enfim, a filosofia clássica não per-cebe esse modo de ser, aquém ainda do certo

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e do errado, do mundo da percepção: “O empirismo não vê que precisa-mos saber o que buscaprecisa-mos, sem o que não o procuraríaprecisa-mos, e o inte-lectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos, sem o que novamente não o procuraríamos.” (Merleau-Ponty, 1994:56) Pelo preju-ízo do mundo “objetivo”, e a tentativa de construir o percebido segundo a lógica tardia da razão que ali brota, resulta, para Merleau-Ponty, uma filo-sofia de certo modo manca, já que “o pensamento infinito que se desco-bre imanente à percepção não seria mais o mais alto ponto da consciên-cia, mas, ao contrário, uma forma de inconsciência” (Merleau-Ponty, 1994:68), alheio que está à sua própria gênese.

Mas como pode se dar tal alheamento, como é possível que toda uma ciência e uma filosofia tenham permanecido por tanto tempo incapazes de tratar, nos termos adequados (segunda essa fenomenologia), essa trama perceptiva? N´O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, em que apresenta à Sociedade Francesa de Filosofia uma espécie de síntese de seu trabalho sobre a percepção, Merleau-Ponty chama a atenção ao fato de que a fenomenologia e seu retorno às coisas só poderiam surgir no momento em que o campo constituído no jogo das representações estivesse de tal modo adensado, que se tornasse evidente o conflito entre as abstrações conceituais e a experiência vivida: “[...] a fenomenologia não poderia se constituir antes de todos os outros esforços filosóficos que a tradição racionalista representa nem antes da construção da ciência. Ela mede o afastamento entre nossa experiência e essa ciência; [...] como poderia precedê-la? [...]”18 (Merleau-Ponty, 1990:70). Ainda assim, persiste a

18 Schérer (1981:272) ecoa Merleau-Ponty nisso que, regra geral, tem-se como a virtude do método fenomenológico: “ A importância excepcional conferida a uma filosofia cujo método e o programa põem em primeiro plano os direitos do vivido, e o fazem de algum modo sair da sombra, encontra a sua origem nas múltiplas alienações ou reificações que privam o homem da posse de si mesmo e a vida de seu sentido.”

questão de como a percepção pôde passar, por assim dizer, desapercebida, por diferentes doutrinas e ciências que sobre ela se posi-cionaram, e mesmo a abrigaram naquilo que ela tem de particular: ser a origem do pensa-mento do mundo − Merleau-Ponty reconhe-ce em Descartes e Kant esse estatuto da per-cepção como um “conhecimento originário” (Merleau-Ponty, 1994:74). A perda da experi-ência perceptiva emerge, então, pelo próprio modo singular como a racionalidade se cons-tituiu, que é, para Merleau-Ponty, tão somente um desenvolvimento das teses do mundo já implicadas e oferecidas no imediato do

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do mundo que me é dado a perceber, esse que a fenomenologia sugere pôr “entre parênteses” − é somente desdobrada pela filosofia e pela ciência, que por fim simplesmente operam segundo uma tese já implícita na per-cepção. O ato perceptivo é que faz crer nesses conjuntos de coisas banha-das em sentidos às quais se lança a interrogação curiosa de uma razão que as tematiza como seus objetos, e o “momento decisivo da percepção” é o “surgimento de um mundo verdadeiro e exato” (Merleau-Ponty, 1994:85): “A ciência e a filosofia foram conduzidas durante séculos pela fé originária da percepção. A percepção abre-se sobre coisas. Isso quer dizer que ela se orienta, como para seu fim, em direção a uma

verdade em si em que se encontra a razão de todas as aparências. A tese muda da percepção é a de que a experiência, a cada instante, pode ser coordenada à do instante precedente e à do instante seguinte, minha perspectiva às das outras consciências − a de que todas as contradições podem ser removidas, a de que a experiência monádica e intersubjetiva é um único texto sem lacuna −, a de que aquilo que é agora para mim indeterminado tornar-se-á determinado para um conhecimento mais completo que está antecipadamente realizado na coisa, ou, antes, que é a própria coisa.” [Merleau-Ponty, 1994:85-6]

A razão aparece, assim, como uma extensão, uma explicitação da-quilo que na própria experiência já está realizado, um sentido do mundo, a tese do mundo verdadeiro e exato que a ciência procura avançar. Não há, mais, a necessidade de se conceber a antítese clássica entre “razão” e “sen-sação”. É a experiência perceptiva, com seu modo próprio de ser, que con-duziu a gênese desse mundo aí explicitado, e se ele pôde erguer-se sobre essa fundação da maneira tão resoluta como o fez, não é porque tenha delibe-radamente esquecido essa sua origem no imediato, mas é porque é próprio da percepção, e a sua conclusão final − e Merleau-Ponty fala mesmo em “astúcia” −, ocultar-se, para dar a ver não a si mesma, mas o mundo:

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experiência viva através da qual primeiramente os outros e as coisas nos são dados, o sistema ‘Eu-Outro-as coisas’ no estado nascente, despertar a percepção e desfazer a astúcia pela qual ela se deixa esquecer enquanto fato e enquanto percepção, em benefício do objeto que nos entrega e da tradição racional que funda.” [Merleau-Ponty, 1994:89-90; grifo nosso]

O tecido dessa percepção que assim se manifesta nas palavras de Merleau-Ponty não é mais, então, oposto à razão. É somente porque cada percepção “recomeça por sua conta o nascimento da inteligência”, antes das categorias e dos objetos acabados da reflexão realista, e “tem algo de uma invenção genial” (Merleau-Ponty, 1994:75) − já que literalmente fun-da por si própria a paisagem inesgotável, inacabafun-da, mas prenhe de signi-ficação: “a estrutura, o sentido e o arranjo espontâneo entre as partes” (Merleau-Ponty, 1994:91), em que atualizo a minha presença e a das coi-sas a que me lanço −, que posso proceder no exercício da reflexão, tornar a verdade não mais uma “noção” mas uma “idéia”, fundar o conceito, falar em “objetividade”. Assim, o mundo inaugurado pela percepção nada tem de semelhante a um “caos de sensações” que só servia para iluminar os privilégios concedidos a uma razão que, para Descartes e os que se segui-ram, deveria ser o “ponto mais alto da condição humana”. Mas, se não elucida o modo como se efetivam suas relações com o mundo que preten-de abarcar, sendo corpo em circunstância, “ser” no mundo, tal razão não pode ultrapassar a condição de tão somente explicitar o percebido: só posso dispor de “objetos” porque a percepção já me dá “coisas”, vestidas de sen-tidos. Não é tampouco como o queria tardiamente Flusser (1963): a lingua-gem, o nomear, o objetivar, constitui o salto do “caos” ao “cosmos”. Sem dúvida, as representações nos permitem tratar abstratamente o mundo, e, embora o próprio Merleau-Ponty tenha mais tarde se colocado esse pro-blema complexo das relações entre a percepção e a palavra, pode-se suge-rir que só nomeio o que percebo; ou que

per-cebo de modo diferente aquilo que nomeio;19

ou, ainda que, num jogo lingüístico, eu crie um nome sem objeto, os significados que este po-derá assumir são aqueles da minha experiên-cia com esse nome.20 A percepção, como

emerge na Fenomenologia da percepção,é final-mente essa abertura imediata ao brotamento de um cosmos a ser explicitado, o contrato com

19 “ Luria (1961) também verificou que as crianças com menos de cinco anos ti-nham grande dificuldade para lembrar as diferenças entre pares de formas, a não ser que as pegassem e sentissem seus contornos. Se o fizessem, e se, além disso, dessem nome às formas, os erros na confusão de formas irregulares [...] eram completamente eliminados por volta de três a quatro anos de idade.” (Vernon, 1974:35; grifo nosso).

Referências

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