• Nenhum resultado encontrado

Do que falamos, quando falamos de moralidade comum?

O primeiro ponto importante é reconhecer que a moralidade comum nem sempre leva esse nome. O que tem como consequência o fato de Beauchamp e Childress reclamarem para si a paternidade do termo, a despeito de Bernard Gert ter proposto antes, mas com outra denominação – ‘moralidade como um sistema público’. Interessante notar que Beauchamp e Childress, mesmo em sua última edição, fazem questão de se referir à proposta de Gert dessa forma (7), ao criticá-la, e não como outra proposta de teoria de moralidade comum. Mas é isso que é a proposta de Gert, explicitada no título de sua obra Common Morality. Deciding What to Do, de 2004.

Moralidade comum, para Beauchamp, Childress e Gert, significa um conjunto de normas (regras, princípios, ideais) universalmente compartilhados por pessoas racionais (Gert) e moralmente comprometidas (Beauchamp e Childress), de forma natural, intuitiva. São normas óbvias demais para serem ignoradas, tais como “não mate”, “não cause dano”, “não engane”, etc. Darão origem a regras e princípios, por sua vez com aplicação em situações biomédicas (Beauchamp e Childress).

Dois autores citados por Beauchamp e Childress não usam o termo ‘moralidade comum’, mas é o que propõem. No caso de um deles, é impressionante a proximidade de propostas entre aqueles e este – W.D. Ross. Embora Beauchamp e Childress não se refiram à sua própria abordagem como intuicionista (ou intuitiva), na prática é o que ocorre, pois o ponto de partida são crenças morais universalmente compartilhadas (ainda que devam ser submetidas ao processo do equilíbrio reflexivo), portanto pré-teóricas. Além disso, a noção de deveres prima facie e a própria lista destes deveres proposta por Ross é em muito semelhante à proposta de Beauchamp e Childress.

O outro autor é Alan Donagan, talvez o único a apresentar uma teoria de moralidade comum (que ele chama apenas de “teoria da moralidade”) com uma

abordagem mais sólida. Moralidade comum, para Donagan, é a aplicação da regra de ouro (Não faça com os outros o que não deseja que faça com você mesmo), traduzida filosoficamente pelo imperativo categórico kantiano - : “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” Refutar Donagan equivalerá, basicamente, a refutar Kant e sua ética de deveres como imperativos categóricos que desconsideram os fins e as consequências.

Precedendo em um ano a publicação da quarta edição de Principles of Biomedical Ethics, a obra Prospects for a common morality (227) propôs a tarefa de responder à pergunta se seria possível uma moralidade comum a treze diferentes autores. Alan Gewirth (228.), David Little (229) e Annete C. Baier (230) propõem os direitos humanos como o candidato a ocupar o lugar de uma moralidade comum.

Gerwith (228) propõe três passos para a justificação dos direitos humanos como moralidade comum. Primeiro, o conceito de 'direitos' está intimamente relacionado à ideia de 'interesses justificados'. E a justificação não repousa, por sua vez, numa ideia de 'interesses que levem a uma maximização da utilidade social'. Repousa, unicamente, no fato de que se trata de demanda legítima: "Fulano tem direito a...". O segundo passo é enfatizar a palavra 'humanos' em 'direitos humanos', no sentido de abarcá-los todos. O terceiro e mais difícil passo seria: Como aplicar o conceito de direitos comuns a todos convincentemente? A solução encontrada por Gerwith é semelhante a outras propostas de moralidade comum, simplificar ao máximo os direitos, reduzindo-os ao básico, com isso eliminando os interesses conflitantes. Estes seriam apenas dois: liberdade e bem-estar.

Já Little (229) propõe como ponto de partida os direitos humanos dos documentos e tratados internacionais que, acredita ele, seriam uma prova de que um vocabulário minimamente acordado entre os povos é possível. O vocabulário dos direitos humanos, seria, então, a base da moralidade comum. Baier (230), por sua vez, concentra seu foco na linguagem dos direitos humanos, e no ‘direito a ter voz’. Fazer-se ouvir como um direito humano básico teria como consequência, pelo menos, o direito a não ser torturado, que garantiria que a voz não fosse trocada pelo grito de dor. Também Baier, portanto, reduz sua moralidade comum a um mínimo.

Robert Merrihew Adams (231) e Gene Outka (232), assim como Alan Donagan, que também participa desta obra com um capítulo (233), têm na religião seu candidato ideal para a moralidade comum. Quanto a Donagan, como já visto, ele associa a religião com os imperativos categóricos kantianos. Para Adams, para a moralidade comum existir, há pré-requisitos sociais e políticos. A sociedade deve ser capaz de conviver bem com o pluralismo, e, para tanto, religião e estado devem estar separados. De acordo com ele, a única religião que preenche esse requisito é a cristã, pois

o judaísmo, como a fé dominante de um grupo étnico, e profundamente conectada com seu senso de nação, não faz distinção clara entre Igreja e Estado; e o islamismo, como uma fé que começou como uma campanha militante para reconfigurar toda uma sociedade, é menos inclinada distinguir entre instituições religiosas e políticas. (234).

Outka, por seu turno, assim como Donagan, escolheu a chamada “regra de ouro” (não faça com os outros o que não deseja que seja feito com você) como base de sua moralidade comum. Entretanto, a perspectiva de Outka, diferente da de Donagan, não alia a regra religiosa com os imperativos laicos kantianos. Para Outka, é o espírito que está em jogo quando se quebra a regra.

Para Margaret A. Farley (235) o feminismo está em posição privilegiada para enxergar melhor o que há em comum entre os seres humanos, porque as mulheres, diferentemente dos homens, estiveram submetidas a estruturas determinantes da experiência de forma universal, que foi sua subordinação aos homens, assim como seu papel no ambiente doméstico e econômico. Outra contribuição do feminismo seria a noção de dano à integridade corporal, que, pela perspectiva feminista seria mais uma questão ligada à autonomia do que à não-maleficência, para usar linguagem principialista.

A proposta de John P. Reeder, Jr. (236) para uma moralidade comum é o que ele denomina "neopragmatismo". Há ilhas de moralidades no mundo, mas estas não são incomunicáveis. “Concretos universais” estabelecem a possibilidade de compreensão mútua que seria o substrato para uma moralidade comum. Um exemplo seria a categoria “opressão”. Trata-se de um concreto universal (um conceito universalmente compreendido). Entretanto, oprimidos e opressores compreendem a mesma palavra de modo diferente, reconhece Reeder Jr. E, neste caso, oprimidos devem ter voz prioritária na comunicação, mas esta permaneceria

sendo uma via dupla, em que opressores também tivessem voz.

Jeffrey Stout (237) reconhece que não existe tal coisa como uma regra moral universal e igualmente aceita por todos os povos de todos os lugares em todos os tempos. As diferenças são muitas. Mas as semelhanças também, e é isso o que permite acreditar na possibilidade de uma moralidade comum. Um elemento chave seria, então, a humildade em se reconhecer que um determinado candidato a moralidade comum se revele insatisfatório com o tempo. Outro elemento chave seria a possibilidade de que uma determinada categoria moral, ainda que não seja reconhecida pela maioria das pessoas, possa ser uma verdade moral. O que também envolve a humildade de perceber tal possibilidade. Humildade seria, então, o núcleo da moralidade comum de Stout.

Lee H. Yearley (238) escolhe o caminho da ética das virtudes como o que possibilita uma moralidade comum. Seu ponto de partida é que seja evidente que todos "concordemos que precisamos de proteger um grupo mínimo de injunções abstratas e universalmente válidas" (238). A moralidade comum nos forneceria a capacidade, mesmo através de culturas e religiões diferentes, de identificar e nos mirar na figura do "homem bom".

Richard Rorty (239) aposta nas regras de um Sistema democrático como sendo o terreno da moralidade comum. E aqui difere radicalmente de todos os autores que escolheram a religião como ponto de partida. Considera essencial o laicismo da sociedade civil democrática, não no sentido de que seja ruim que os cidadãos tenham religião e a pratiquem, mas no sentido de que seja lá qual for a religião que tiverem, sua prática deve ser de tal forma que não interfira no bom funcionamento da sociedade democrática. Em outras palavras, fanáticos não são bem-vindos, pois suas crenças e atitudes não poderão ser justificadas para a maioria. Defende ainda, e nesse ponto de certa forma até se aproxima da Bioética de Intervenção, que as muitas demandas sociais e políticas exigem que se parta para a ação, tendo a as regras da sociedade democrática como sustentação à solução dos conflitos.

Um autor que também defendeu uma proposta de moralidade comum com este nome foi Engelhardt (209), para quem esta seria alcançada por meio de um

humanismo secular. Também Engelhardt reconhece a dificuldade de se estabelecer normas de aceitação universal, o que o força a se restringir a uma única: respeito mútuo.