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Fragilidades de uma moral intuitiva do senso comum

Debruçando-se sobre a quinta edição (2001) de Principles of Biomedical Ethics, L. Turner (193) questiona o que considera as três pressuposições recorrentes da teoria bioética contemporânea, particularmente evidentes no principialismo de Beauchamp e Childress (mas também em outros teóricos da moralidade comum).

Seriam elas a pressuposição de que exista uma moralidade comum universal, transhistórica, que serviria de base normativa para julgar várias ações, que tal moralidade comum encontra-se num estado de "equilíbrio reflexivo amplo", e, finalmente, que este equilíbrio no nível das intuições morais, máximas e princípios é importante como compreensão compartilhada das normas gerais por fornecer a introdução necessária ao engajamento na articulação de normas mais específicas.

Os defensores das teorias da moralidade comum não fornecem qualquer evidência sociológica, antropológica, histórica ou de qualquer tipo para suas pressuposições. E nem teriam como, pois, o que acontece é justamente o contrário, acredita Turner. Até mesmo se considerarmos apenas os Estados Unidos, afirma ele, e aceitando que há um núcleo moral enraizado no conceito de liberdade, até essa pressuposição, além de não universal, também carece de fundamento, pois, ao se deter o olhar mais profundamente sobre o país, percebe-se que a liberdade é privilégio dos mais ricos.

Turner caracteriza sua crítica à moralidade comum que dá suporte às teorias principialistas como simples e direta. Ele acusa os teóricos da bioética contemporâneos como Beauchamp e Childress de simplesmente não fornecerem qualquer evidência de qualquer natureza para sua afirmação. A plasticidade das formas de compreensão da moralidade nas diferentes culturas fornece, na verdade, a prova contrária. Isso vale até mesmo para um recurso utilizado por alguns teóricos da moralidade comum, que é o de recorrer à noção de direitos humanos como universal. Pois, além do fato de se tratar de algo recente na história, há várias percepções locais desse conceito, nas diferentes partes do mundo.

Também no que concerne ao equilíbrio reflexivo Turner alerta que, mesmo em países de cultura anglo-saxã, onde pode parecer haver um certo equilíbrio, que funciona como um solo comum de onde saem liberações legais e morais semelhantes, mesmo nestes, há conflitos morais profundos e eventualmente insolúveis. Dois exemplos seriam a filosofia para o sistema de saúde pública e a legalização ou criminalização do suicídio assistido por médico. Em ambos os casos não há concordância nem entre os diferentes países, nem dentro de cada país, ainda que momentaneamente prevaleça uma ou outra posição.

Os princípios que seguem como consequência natural da moralidade comum não são, eles próprios, tranquilos, continua Turner. O significado que cada palavra tem será bem diferente a depender de quem a pronuncia. Um libertário entenderá a palavra autonomia de forma completamente diferente de um social democrata, por exemplo. Tomando o caso dos sistemas de saúde pública como exemplo, o princípio do respeito à autonomia pode ser contemplado de formas diferentes a depender da perspectiva que se adota, mesmo considerando-se apenas países anglo-saxões. Pessoas que abraçam a filosofia libertária defenderão que a saúde é um bem a ser adquirido, e os impostos devem se reduzir ao mínimo para possibilitar a máxima liberdade de consumo, respeitando-se, assim, a autonomia de cada um. Social democratas, por seu turno, defenderão a taxação progressiva, que distribuirá melhor os meios disponíveis, possibilitando a cada cidadão a liberdade para alcançar o sistema de saúde, já não mais um produto, mas, sim, um direito básico. No primeiro caso, predominante nos Estados Unidos, o conceito de autonomia está isolado dos demais. Já no segundo, predominante no Canadá, por exemplo, o conceito de autonomia está vinculado ao de justiça.

Um problema grave na tentativa de Beauchamp e Childress de escapar de uma prova empírica para sua teoria é bem apontado por Turner. A universalidade da moralidade comum valeria apenas para pessoas moralmente superiores. Pessoas imorais não teriam mesmo como aceitar a moralidade comum. Ora, de fato não se trata de excluir apenas psicopatas. Se fosse esse o caso, nem seria preciso mencionar a possibilidade. É claro que para esses nem a moralidade comum, nem qualquer outra tem sentido. Mas, ao mencionar essa possibilidade, fica implícito que quem não aceita a moralidade comum é amoral. É questionável e mesmo perigoso estabelecer um “nós” e um “eles”, sendo “nós” os que aceitam os pressupostos da moralidade comum, e “eles” os amorais.

Ou a moralidade comum que Beauchamp e Childress propõem é uma versão de um universalismo moral fundamentado em conceitos morais apriorísticos, como uma abordagem neo-kantiana à deliberação moral, para a qual contraexemplos empíricos são irrelevantes, pondera Turner, ou seu núcleo moral é encontrado através do tempo e em diferentes sociedades. Beauchamp e Childress defendem ser o segundo caso, mas não apresentam evidências suficientes para tanto.

Turner identifica a moralidade comum ao longo de seu artigo, o tempo todo como moralidade do senso comum, portanto intuitiva. O que parece ser à primeira vista o forte da proposta de Beauchamp e Childress vem a ser sua grande deficiência. Se é intuitivo, é autoevidente (como vimos em outras propostas de moralidade comum), portanto sem necessidade de uma fundamentação sólida.

É curioso notar que o mesmo Leigh Turner, em artigo anterior ao supracitado, faz uma crítica a algumas propostas de moralidade comum, sempre nominando como ‘moralidade do senso comum’, mas propondo a sua própria (194). A pluralidade de compreensões morais, mesmo dentro dos Estados Unidos, pondera Turner, torna bastante difícil que abordagens a partir da moralidade comum dos principialistas (assim dos casuístas) tenham sucesso. Apesar disso, a possibilidade de que indivíduos mudem de opinião quando suas crenças de base são eficazmente confrontadas, forneceria um vislumbre de uma possibilidade para uma moralidade do senso comum. A diferença entre esta sua proposta e a de outros, como Beauchamp e Childress, seria que a sua é bem mais modesta, resumindo-se a apenas um ponto – tolerância. Percebe-se aqui grande semelhança com a proposta de Engelhardt, iniciada com sua obra Bioehtics and Secular Humanism. The search for a common morality, de 1991, reforçada em The Foudations of Bioethics, de 1996. O mais curioso, porém, é o fato de Turner não fazer qualquer referência a si mesmo e sua própria proposta de moralidade comum quando elaborou sua crítica no artigo de 2003.