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Embora alguns dos autores citados anteriormente não tenham usado exatamente o mesmo termo, como Donagan e Ross, estes construíram deliberadamente uma teoria com pretensão de uma moralidade comum. Um fato interessante no curso da investigação para a realização deste trabalho foi constatar que praticamente todos os autores consultados também acabaram por propor alguma forma de moralidade comum.

Uma característica evidente na abordagem dos bioeticistas latino-americanos é o viés social e político de suas propostas. Enquanto as abordagens com origem em países ricos preocupam-se essencialmente com a fundamentação filosófica, frequentemente descuidando das consequências práticas para a comunidade global, as latino-americanas concentram seu foco na capacidade de solução prática de problemas persistentes, ou mesmo os sociais causados por questões emergentes.

A despeito do foco diferente, as abordagens pela perspectiva latino- americanas também arriscam a possibilidade de uma moralidade comum. Garrafa e Porto, por exemplo, (205, 212 e 213), ponderam que o estabelecimento de uma diferença entre as palavras ‘ética’ e ‘moral’ permitiria associar-se a última a ‘morais particulares’, culturalmente construídas, enquanto ‘ética’ seria algo transcendental que paira sobre todas estas moralidades particulares, como uma possibilidade de diálogo e compreensão mútua. A natureza corpórea do ser humano, com sua capacidade para sentir dor e prazer também seria algo universal e, consequentemente, terreno possível para uma moralidade comum. Não causar dor se colocaria como um parâmetro mínimo de aceitação universal. O que nos remete à exigência de Beauchamp e Childress para a pretensa amostra para seu experimento da moralidade comum – que seja constituído apenas por pessoas que aceitam, no mínimo, o princípio da não-maleficência como inegociável. Certamente, nem a Bioética de Intervenção se resume ao mínimo aceitável, nem também o

Principialismo se resume à não-maleficência. E, se há eventuais pontos de partida semelhantes, certamente os de chegada foram bem diversos.

Miguel Kottow (215) rejeita o naturalismo ético científico, mas acolhe o linguístico, fazendo com que sua proposta – o naturalismo ético linguístico – pareça- se com a de Rebecca Kukla (199). Por se ancorar na razão e na linguagem comum, o naturalismo ético linguístico (a moralidade comum de Kottow), teria o potencial de ser universalizável sem ser absoluto, capaz de elaborar verdades morais revisáveis, ancoradas na evolução histórica. Outro candidato a moralidade comum seriam os direitos humanos, que seriam “de aceitação universal”. Mas essa crença (de que os direitos humanos gozam de aceitação universal) está longe da realidade encontrada nas diferentes partes do mundo.

Schramm (223), por sua vez, proporá como um “nível básico” universalizável (sua moralidade comum), o evitar o sofrimento, postulando o Estado como principal responsável pela garantia de proteção àqueles mais vulneráveis a que se aconteça o “sofrimento evitável”.

A teoria da moralidade comum é tratada como “fundamentalismo moral” por Tealdi (225), mas ele propõe a sua própria, que seria, como outros autores propuseram, os direitos humanos, legítimos postulantes a uma “ética verdadeira” (sua moralidade comum). Isso porque seriam inalienáveis, universalizáveis, não negociáveis e absolutos.

A pergunta persiste teimosamente: Existe, de fato, uma moralidade comum? Elencar as várias e díspares abordagens à possibilidade de uma moralidade comum permite enxergar que:

1- Trata-se de uma angústia generalizada. 2- Não existe.

3- É inútil e perigoso insistir em sua existência.

Não chega a ser surpresa que bioeticistas se esforcem na busca de uma teoria ética geral, que dê conta de todas as situações potencialmente conflituosas no

vasto campo da bioética. Filósofos morais fizeram o mesmo. Mas também não é nenhuma surpresa que esta tarefa se mostre infrutífera.

Parece inevitável que, para se chegar a um destino comum, parta-se sempre de um ponto à primeira vista óbvio. Pois o que pode ser mais óbvio do que a natureza humana? O que pode ser mais natural do que inferir que ninguém quer sentir dor, ou que todos concordam com condutas básicas para uma convivência harmônica? Ou que direitos humanos sejam naturais? Ou que haja uma linguagem universal que permeia as várias diferentes culturas, fornecendo-lhes a ponte necessária para um entendimento mútuo? Ou que haja uma ética transcendental que acima das muitas morais particulares?

A questão é que, ainda que tudo isso seja verdade (no sentido experimentalmente verificável), por que disso se seguirá qualquer norma? Por que, da constatação de nossa finitude e interdependência se segue que devamos nos tratar com consideração e respeito? Posso agir com consideração e respeito, ou não, independentemente de ter consciência disso. Ou posso justificar uma falta de consideração mesmo sabendo que sou finito e dependo dos demais.

O que determinará meu comportamento moral será minha adesão voluntária a um sistema específico de normas que eu desejar para mim. Concordando com Brito (240), “não há um sentido objetivo para a justificação moral, ou seja, um sentido independente de nossas preferências subjetivas”.

Vários autores se deram conta dessa dificuldade, e, embora com a esperança de propor uma moralidade comum, contentam-se com um mínimo, um item básico que pode ser o “respeito mútuo” (Engelhardt), ou “não causar dor/sofrimento” (Garrafa e Porto, Kottow e Schramm), ou, simplesmente, diálogo (Kukla). Mas fica logo evidente, e alguns autores reconhecem isso (como Garrafa e Porto, por exemplo), que este mínimo é pouco demais, insatisfatório para, efetivamente, solucionar os problemas reais que se apresentam, tanto no terreno mais restrito da ética biomédica, quanto no mais amplo, da bioética.

Voltando à proposta de Beauchamp e Childress, pode-se fazer o mesmo questionamento. Além das críticas elencadas anteriormente, cabe ainda (e principalmente) a ponderação de Brito citada acima, de que nossa adesão a

determinada justificação moral se dará na medida em que o queiramos, movidos por nossas preferências pessoais. A aceitar a advertência de Brito, elimina-se por completo a possibilidade de uma “moralidade comum como moralidade universal”.

Mas não é apenas inútil se insistir na existência de uma moralidade comum, é também perigoso. Além do risco de ser anti-ético ao usar a separação dos termos ética e moral discutido anteriormente, há o risco apontado por Tealdi (225), do “fundamentalismo moral”. Um exemplo contemporâneo real serve bem à ilustração do temor de Tealdi. O movimento “Black lives matter” surgiu recentemente nos Estados Unidos, em resposta ao assassinato de jovens negros americanos em quantidade desproporcionalmente superior ao de brancos daquele país. Trata-se de uma forma de chamar a atenção da sociedade a uma estatística escandalosamente imoral de sua polícia. Sendo uma característica da direita americana o desprezo por dados estatísticos e evidências científicas (como se vê no caso do aquecimento global), seus representantes passaram a refutar o slogan do movimento negro com outro – “All lives matter”.

“Todas as vidas importam” faz bastante sentido e parece irrefutável, por seu alcance pretensamente universal. Se alcança mais gente, é mais ético, segue o argumento. (Ou caberia também dizer, se é universal, é mais ético). Entretanto, “todas as vidas” não estão sendo afetadas igualmente. Há grande desproporção desfavorável para as vidas negras. Nesse sentido, o slogan que à primeira vista é “mais ético”, por ser universal, acaba sendo profundamente imoral, por encobrir um fato real, que precisa de muito mais atenção e cuidado por parte da sociedade (aí sim, toda ela) e, principalmente, aqueles que têm o poder de consertar o que está errado. Sendo os Estados Unidos um país democrático, o movimento chama a atenção de cidadãos que votam, negros ou não. Diante disso, “All lives matter” serve apenas como arma de poder para tentar impedir mudanças no status quo, favorável a seus propositores. Uma arma (supostamente) democrática, contra o exercício da democracia.