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Do Vaticano II às normas vigentes: documentos complementares e o novo Código de

Capítulo 1 – Catolicismos contemporâneos: um desafio para alguns exorcistas

1.5. Percurso histórico e Ius vigens do rito de exorcismo

1.5.3. Do Vaticano II às normas vigentes: documentos complementares e o novo Código de

O Concílio Vaticano II não abordou de maneira direta a temática da possessão diabólica e do exorcismo, como já discutimos anteriormente107. Somente após alguns anos foi

possível perceber um movimento de reestruturação do rito exorcístico, sendo ele o último a ser reformulado após o Vaticano II, 33 anos depois. Os próprios exorcistas se lamentavam acerca dessa demora e desatenção quanto à prática e à regulação do ritual do exorcismo, sobretudo Gabriele Amorth. Corrado Balducci, demonólogo atuante em Roma, assumiu um posicionamento mais cauto, pelo menos em suas entrevistas. Essas últimas, recorrentes não somente nas publicações religiosas, como as revistas do movimento carismático, denotam como os exorcistas estavam empenhados em fazer circular o tema, angariando, quando possível, a atenção da sociedade e mesmo da Igreja Católica:

Monsignor Balducci, lei descrive un'Italia atea e materialista. Il diavolo fa ancora paura al punto da dover rinnovare il rito dell'esorcismo? [Balducci:] “Il nuovo rito non dipende dai cambiamenti, tanto meno da quelli del diavolo. E neppure dall'aumento degli indemoniati, come ho sentito dire in qualche tv”. Da che cosa dipende, allora? “Cominciamo con il chiarire una cosa. I casi di possessione non sono soltanto rari. Sono eccezionali, eccezionalissimi...”. Monsignore, se tutto è rimasto come prima, perché cambiare dopo 400 anni? “Guardi che la rivoluzione la vedete solo voi giornalisti. C'è stato un Concilio, negli ultimi 30 anni è stato modificato l'intero messale romano di Paolo V. Mancava soltanto l'ultimo capitolo, De obsessis a daemonio. Ora il rinnovamento si è completato, ma la rivoluzione dove sarebbe?”. Non sarà un caso, se proprio questo punto è stato modificato per ultimo, no? “Il tema è delicato, evidentemente hanno avuto bisogno di un po' di tempo in più”108.

Após o Concílio Vaticano II, além das regras vigentes presentes no De exorcismis

et supplicationibus quibusdam (DESQ)109, três documentos que abordam a regulação do exorcismo foram publicados e escolhidos para serem brevemente analisados, pois são normalmente citados pelos exorcistas italianos em seus livros. O primeiro deles foi a Carta

107 YOUNG, Francis. A history of exorcism in Catholic Christianity. London: Palgrave, 2016, p.211. 108 Esorcista? Meglio un medico. La Stampa, 27/01/1999, nº 26 p. 9.

Apostólica de Paulo VI de 15 de agosto de 1972 (Ministeria quaedam110), com a qual o exorcismo foi retirado das ordens menores, tornando-se apenas um ministério (o que já era indicado no Ritual Romano de 1952). O segundo foi o Les formes multiples de la superstition (1975), documento divulgado pela Congregação para a Doutrina da Fé que reforçava com cautela a existência do diabo e o percurso da demonologia, tornando-se um documento oficial da Santa Sé sobre o assunto. E, por último, a nova edição do Código de Direito Canônico de 1983, promulgado pelo papa João Paulo II a partir da constituição apostólica Sacrae Disciplinae

Leges em 25 de janeiro de 1983. Esse código refere-se apenas à Igreja Latina e a parte referente

ao exorcismo ficou restrita ao cânone 1172111.

Existe, entretanto, uma certa tensão e incoerência tanto nas publicações quantos nos debates emergidos após o Concílio Vaticano II: percebemos isso analisando tanto a carta apostólica Ministeria quaedam quanto a Les formes multiples de la superstition, bem como o pronunciamento de Paulo VI na Udienze generale de 15 de novembro de 1972. A carta apostólica e o pronunciamento papal são mais relevantes devido à maior circularidade e ao caráter de autoridade que assumem no contexto eclesial. O documento Les formes multiples de

la superstition, diferentemente, trata-se de uma publicação menos citada pelos exorcistas,

exposta inicialmente no L’Osservatore Romano francês e traduzida para a sua versão italiana no mesmo ano, em 1975, tornando-se um documento oficial da Santa Sé.

Uma das tensões ocorre nas proposições do papado de Paulo VI. Enquanto que na carta apostólica identificamos uma clara apropriação das formulações do Concílio Vaticano II em prol da delimitação dos papéis do laicato e do clero, bem como a retirada do exorcismo das ordens menores, na Udienza generale enfatiza-se um posicionamento silenciado no Vaticano II sobre a questão do diabo como presença real e atuante na história humana:

Troviamo il peccato, perversione della libertà umana, e causa profonda della morte, perché distacco da Dio fonte della vita (Rom. 5, 12), e poi, a sua volta, occasione ed effetto d’un intervento in noi e nel nostro mondo d’un agente oscuro e nemico, il Demonio. Il male non è più soltanto una deficienza, ma un’efficienza, un essere vivo, spirituale, pervertito e pervertitore. Terribile realtà. Misteriosa e paurosa. Esce dal quadro dell’insegnamento biblico ed ecclesiastico chi si rifiuta di riconoscerla esistente; ovvero chi ne fa un principio a sé stante, non avente essa pure, come ogni creatura, origine da Dio; oppure la spiega come una pseudorealtà, una personificazione concettuale e fantastica delle cause ignote dei nostri malanni112.

110 Esse documento também renovou a disciplina da primeira tonsura, das ordens menores e do subdiaconato. 111 OMARA, Francis. Exorcism in church law: charism, ministry and canonical regulation. Tese (Doutorado em

Direito Canônico). Roma: Pontificia Università Gregoriana, 2008, p.60-63.

No pronunciamento de novembro de 1972, meses depois da promulgação do

Ministeria quaedam, o papa proferiu um discurso sobre o “mal” que não se fez presente no

Vaticano II e que, por outro lado, estava em conformidade com o que defendem os exorcistas italianos em suas publicações e entrevistas. O papa fundamentou suas afirmações com trechos bíblicos, dizendo que a presença do demônio como ser atuante ocorre desde os tempos de Jesus. De acordo com Paulo VI, a questão do “diabo” faz parte da doutrina cristã e não deve ser explicada por meio dos saberes psiquiátricos, psicanalíticos ou aqueles fornecidos por experiências espiritualistas113. É a Igreja Católica que deve ser responsável pela definição do que se entende por “mal” e “demônios”. Apesar de falar sobre o diabo como presença real, o papa não faz nenhuma menção ou incentivo ao ofício exorcístico na Udienza generale. Acreditamos, a partir da análise de seus discursos, que Paulo VI não se opunha aos projetos dos exorcistas, que ainda eram tímidos naquela conjuntura, porém não foi um incentivador direto desses sujeitos responsáveis por “expulsar o mal”.

Seguindo um outro percurso, na referida carta apostólica de Paulo VI o exorcismo é mencionado como um “escritório comum” dentro da Igreja Católica, podendo participar laicos e padres dentro das funções estabelecidas para cada um pelas regras eclesiásticas. O discurso do papa nos parece transitar entre uma leitura pós-conciliar (presente na Ministeria quaedam e em atitudes ecumênicas como a reconciliação com a Igreja do Oriente114) e, ao mesmo tempo, tridentina quando se trata da questão do mal e do diabo (Udienza generale). Contudo, mesmo quando Paulo VI defende um posicionamento em consonância com o Vaticano II, ele não exclui a existência de um ofício exorcístico e deixa bem delimitado o que cada membro (clero ou laico) é autorizado a realizar.

Per questo il Concilio Vaticano II stabilì che nelle celebrazioni liturgiche ciascuno, o ministro o semplice fedele, svolgendo il proprio ufficio, si limiti a compiere tutto e soltanto ciò che, secondo la natura del rito e le norme liturgiche, è di sua competenza (Cost. sulla Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 28: AAS 56 (1964), p. 107).

[…]

II. Quelli che finora erano chiamati Ordini minori, per l'avvenire dovranno essere detti «ministeri». III. I ministeri possono essere affidati anche ai laici,

<https://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1972/documents/hf_p-vi_aud_19721115.html>. Acesso em 20/02/2019.

113 Ibid.

114 Em 1964, o papa Paulo VI realizou um encontro em Jerusalém com o líder da Igreja Ortodoxa, uma

reconciliação histórica entre as duas instituições. Esse evento ficou conhecido como “Encontro com Atenágoras”, e anulou as excomunhões do Grande Cisma do Oriente de 1054.

di modo che non siano più considerati come riservati ai candidati al sacramento dell'Ordine115.

O Les formes multiples de la superstition (1975) apresenta-se como um documento peculiar nessa conjuntura, trazendo o título de “Fé cristã e demonologia” e abordando a história da demonologia e as discussões teológicas acerca da existência do mal em suas variadas formas. Apesar de ser um texto que defende a existência do diabo como elemento presente na história humana, fundamentando a argumentação na linguagem dos evangelhos e na atuação de Jesus116, o mesmo adota uma postura comedida em relação aos excessos das crenças no demônio e no exorcismo. O opúsculo reconhece que o Magistério forneceu pouca atenção à demonologia e ao exorcismo ao longo da história da Igreja e, principalmente, no Concílio Vaticano II. Isso se justificaria pelo fato de o exorcismo não ser mais uma prioridade da Igreja como foi nos tempos de Jesus, o que denota um posicionamento contrário ao que defendem os exorcistas. Mesmo tendo como tema central a demonologia, o documento segue a linha do silenciamento do Vaticano II e se alinha às perspectivas pós-conciliares de extrema prudência quanto ao uso do rito exorcístico, noções presentes também no Código de Direito Canônico e no DESQ. Discorrendo sobre a abolição do exorcismo como ordem menor, fica evidente essa leitura comedida:

Tal medida não significa, naturalmente, que o poder de exorcizar não pertença mais ao padre, ou que ele não tenha mais que exercê-lo. Obriga, no entanto, a admitir que a Igreja, deixando de fazer desse ministério uma função específica, já não reconhece os exorcismos da importância que tiveram nos primeiros séculos. Essa evolução certamente merece ser levada em consideração117.

O silenciamento sobre o exorcismo e a possessão, presente no Vaticano II, desdobrou-se, de alguma forma, no Código de Direito Canônico e no Novo Ritual de Exorcismo, que abordam timidamente e com muita prudência os casos de “possessão diabólica”. No entanto, alguns discursos que surgiram após o referido concílio, como analisamos anteriormente, nem sempre seguiram à risca essa postura de “silenciamento”

115 PAULO VI, Ministeria quaedam, 15 de agosto 1972. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/paul-

vi/it/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-proprio_19720815_ministeria-quaedam.html>. Acesso em 20/02/2019.

116 “Se Jesus sustentou esta linguagem, especialmente se a traduziu em ação pelo seu ministério, foi porque ele

estava expressando uma doutrina necessária - pelo menos parcialmente - para a noção e realidade da salvação que ele trouxe”. IGREJA CATÓLICA. Fede Cristiana e demonologia, 1975. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19750626_fede- cristiana-demonologia_it.html>. Acesso em 21/02/2019. Tradução do autor.

encontrada nas documentações advindas do Vaticano II. Desse modo, nota-se como os projetos de igreja emergidos no contexto pós-conciliar são variados e, algumas vezes, conflitantes.

Tratando-se do Código de Direito Canônico de 1983, temos o cânone 1172, o qual proíbe a prática do exorcismo por pessoas sem a expressa autorização do ordinário local, devendo o padre ser prudente, com conhecimento, virtudes morais e vida íntegra. Esse cânone tem as mesmas fontes do antigo cânone 1151 e é o único que aborda o assunto dentro do CIC atual. A revisão foi feita por uma comissão em 1981 e incorporou alguns elementos presentes na antiga versão118, como podemos verificar no texto integral: “Cân. 1172 — Ninguém pode

legitimamente exorcizar os possessos, a não ser com licença especial e expressa do Ordinário do lugar. § 2. Esta licença somente seja concedida pelo Ordinário do lugar a um presbítero dotado de piedade, ciência, prudência e integridade de vida”119.

Posteriormente à publicação do novo Código de Direito Canônico (1983), foi lançada a Carta Inde ab aliquot annis (1985)120, redigida pela Congregação para a Doutrina da Fé e enviada a todos os ordinários para lembrá-los das regras vigentes sobre o exorcismo. Foram reforçadas as seguintes normas: 1) observar as regras do CIC 1172 (1983); 2) nenhum clérigo, padre (não autorizado) ou laico pode pronunciar a oração de exorcismo de Leão XIII; 3) pessoas ou padres não autorizados não podem realizar exorcismo ou liderar grupos de oração com o objetivo de expulsar o demônio121. Não há, portanto, uma condenação ao exorcismo, mas aos seus excessos e à participação do laicato de forma irregular, já que a autoridade de expulsar o diabo é da Igreja e do padre autorizado. Essa carta nos parece um alerta e uma resposta a algo comum na conjuntura italiana: a realização de práticas de “libertação do mal” regidas apenas por laicos, muitas vezes sem a presença de um sacerdote responsável: “Recent years have seen an increase in the number of prayer groups in the Church aimed at seeking deliverance from the influence of demons, while not actually engaging in real exorcisms. These meetings are led

118 YOUNG, Francis. A history of exorcism in Catholic Christianity. London: Palgrave, 2016, p.231; IGREJA

CATÓLICA. Código de Direito Canônico. 4ª edição. Conferência Episcopal Portuguesa. Braga: Editorial Apostolado da Oração, 1983, p. 204. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cod-iuris- canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf>. Acesso em 19/02/2019.

119 IGREJA CATÓLICA, op. cit., 1983, p. 204.

120 Também nomeada como Letter to Ordinaries regarding norms on Exorcism. Cf: IGREJA CATÓLICA.

Congregation for the Doctrine of the Faith. Letter to Ordinaries regarding norms on Exorcism, 1984. Disponível em:

<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19850924_exorcism_e n.html>. Acesso em 19/02/2019.

121 OMARA, Francis. Exorcism in church law: charism, ministry and canonical regulation. Tese (Doutorado em

by lay people, even when a priest is present”122. Após essa constatação, são elencadas as regras a serem seguidas, como já mencionamos anteriormente.