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Um olhar “diabólico”: a versão dos grupos satânicos sobre a perseguição católica

Capítulo 2 – Cultura do oculto: discursividades diabólicas e pluralidade religiosa na Itália

2.5. Invertendo o sagrado? Satanismos contemporâneos e discursos diabólicos

2.5.1. Um olhar “diabólico”: a versão dos grupos satânicos sobre a perseguição católica

112 AMORTH, Gabriele; RODARI, Paolo. O sinal do exorcista: minha última batalha contra Satanás. Campinas:

Ecclesiae, 2013, p.51.

113 Satana nei giocattoli di Natale. La Stampa, 26/11/1992, nº 324, p. 15.

114 Sobretudo em relação ao satanismo ácido, que carece de fontes e dados de pesquisa por ser difícil de mapear e

por normalmente estar envolvido com práticas criminais que não necessariamente mantêm algum diálogo com o mundo do satanismo (seja do perfil ocultista ou racionalista).

Na Itália, segundo os dados fornecidos pela pesquisa de Introvigne e Zoccatelli, o satanismo organizado não chega a 400 membros (estimativa do CESNUR de 2016)115. No país, destaca-se o Tempio di Pan, antes chamado de Impero Satanico La Luce degli Inferi e depois

Chiesa del Grande Ordine di Satana, no qual o diabo aparece como uma personificação do bem

e do conhecimento. Seu fundador converteu-se ao catolicismo e pôs fim ao movimento em 1998. Outra comunidade conhecida é a Confraternità di Efrem del Gatto, também identificada como Chiesa Nera Luciferina, ativa em Roma desde 1980, tendo possivelmente finalizado suas atividades em 1996 após a morte de seu fundador Efrem del Gatto (pseudônimo de Sergio Gatti, 1945-1996). Existiam também algumas publicações, como a revista Black Star, veiculada pelo grupo Satanael (Universale Fratellanza della Luce Nera), em Santeramo in Colle, Bari. O satanismo organizado inicial, em grande parte, foi desfazendo-se. No entanto, novos agrupamentos surgiram, seguindo uma tendência global comum a outros países, a partir da internet, como a Unione Satanisti Italiani (tendência ocultista) e Satanismo Razionalista, pautado nas proposições de LaVey, mas autônomo em relação à Church of Satan116.

É interessante e sintomático o crescimento dos crimes rituais envolvendo elementos do mundo satânico, e mesmo os satanismos organizados de cunho ocultista e racionalista, desenvolvidos na Itália e nos Estados Unidos a partir, principalmente, dos anos 1980. O caso do “satanismo ácido” das Bestie di Satana em 2004 foi um dos últimos a serem relatados pela grande mídia jornalística, como pudemos verificar em nossa pesquisa de 1980 a 2013 nos periódicos La Repubblica, Corriere della Sera e La Stampa. Essas diferentes tipologias de satanismo – que muitas vezes são apenas justificativas para práticas transgressivas (muitas vezes criminosas), e não crenças religiosas estruturadas – desenvolveram-se com pujança em países que mantêm uma forte tradição religiosa no controle da vida social (Estados Unidos e Itália, por exemplo).

O satanismo organizado embasa-se na transgressão de alguns valores morais e religiosos socialmente definidos, uma espécie de rebelião contra a tradição cristã. A cruz invertida, elemento importante em seus rituais, representa simbolicamente essa concepção. A seguir, identificaremos brevemente alguns desses elementos na tentativa de trazer o olhar de alguns grupos satânicos italianos, como os Bambini di Satana (liderado por Marco Dimitri, de

115 INTROVIGNE, Massimo; ZOCCATELLI, Pierluigi. Il pluralismo religioso italiano nel contesto postmoderno.

In: Le religioni in Italia. Online, acesso em 11/12/2018. <http://www.cesnur.com/il-pluralismo-religioso-italiano- nel-contesto-postmoderno-2/>.

116 INTROVIGNE, Massimo. Satanism: a social history. Leiden/Boston: Brill, 2016; INTROVIGNE;

ZOCCATELLI, op. cit.; INTROVIGNE, Massimo. I satanisti: storia, riti e miti del satanismo. Milano: Sugarco Edizioni, 2010, p.398.

Bolonha) e o Ordo Templi Orientis – Fraternitas Hermetica Luciferiana (O.T.O.), criado em 1989 junto com a Akkademia PanSophica Alpha Draconis a partir de uma cisão promovida pelo seu líder bolonhês Roberto Negrini. Ambos mantinham um diálogo, apesar de terem formado grupos separados117.

Os Bambini di Satana surgiram no início da década de 1980, em Bolonha, por meio de Marco Dimitri118. Em contato com Roberto Negrini, Dimitri acabou apropriando-se do pensamento do ocultista inglês Aleister Crowley. Já em 1982, o líder do grupo passou a se denominar satanista e organizar rituais diabólicos na província de Forlì, em Pesarese e entorno à cidade de Bolonha, utilizando casas abandonadas, bosques desconhecidos e, posteriormente, um templo em Bolonha para realizar as missas negras e os cultos de caráter sexual. Contava com a adesão de seguidores por meio de juramentos e pactos de sangue, abrindo a possibilidade para o casamento dos membros de todos os gêneros e sexualidades, inclusive em caráter poligâmico. Ao entrar para o grupo, eram realizadas cerimônias de anulação dos ritos de batismo e de renúncia a qualquer ligação com o cristianismo119.

O texto que rege a comunidade Bambini di Satana é o Vangelo Infernale, que abarca uma conotação hipersexual da prática ritual, como se fosse um “catecismo invertido” voltado para a realização dos próprios desejos e interpretando o ser humano como um deus na Terra: o homem como o próprio diabo. Segundo Dimitri, “Satanás é dinheiro, arte e orgasmo, música, lesbianismo e traição”120. Apesar de não se identificar com as propostas de LaVey, o grupo de

Dimitri elenca vários elementos do satanismo racionalista da Church of Satan ao considerar a figura de Satanás uma representação da potência do ser humano, de sua liberdade soberana e de crítica à dominação cristã e moral da sociedade. Dimitri e seus seguidores encontraram no satanismo uma hiper-ação, uma hiper-liberdade e um hiper-prazer individual negado e condenado pelo catolicismo e pela moral social. O rito “satânico” representa e exacerba uma falta na vivência social.

Em pesquisa no arquivo do GRIS em Bolonha, encontramos uma publicação periódica da Akkademia PanSophica Alpha Draconis, veiculada ao Ordo Templi Orientis –

Fraternitas Hermetica Luciferiana liderado por Roberto Negrini. Nesse periódico trimestral,

117 INTROVIGNE; ZOCCATELLI, op. cit.,

118 Entre 1994 e 1996, Dimitri e alguns seguidores foram acusados de cometer abusos em garotas e crianças, e

também de realizar sacrifícios humanos. Pouco tempo depois, em 1997, foram absolvidos. INTROVIGNE, op. cit., 2010, p.401.

119 Ibid., p.398-399. 120 Ibid., p.400.

chamado Daimon (edição de 1990)121, encontramos uma reportagem do referido grupo satanista criticando a postura do GRIS e da Igreja Católica ao perseguirem as seitas e grupos ocultistas de uma maneira desmedida e sem fundamento. Esse embate entre o O.T.O. e o GRIS nos mostra de que forma o satanismo contemporâneo conecta-se a uma concepção racionalista, anticlerical e de busca por uma liberdade do sujeito e do seu potencial transgressivo e autônomo em relação à ideia de um “deus soberano” e “castrador”.

O artigo, intitulado “Il G.R.I.S. Una nuova inquisizione?!!”, foi redigido pelo fundador da comunidade, Roberto Negrini, por meio de uma linguagem precisa, clara e acurada. Nota-se que o grupo conhece bem o que a Igreja Católica representa na sociedade italiana e de que forma seus “erros” a tornam uma instituição com defeitos e não autorizada a perseguir outros agrupamentos religiosos, como o satanismo de Negrini. O texto começa citando um representante do Ordo Templi Orientis – Fraternitas Hermetica Luciferiana que participou em um programa televisivo promovido pelo Canale 5, contando com a intermediação de Giorgio Medail e de um representante do GRIS vêneto (Beppe Grisetti). Essa situação desagradou o referido grupo satanista pois Grisetti não era um especialista em história e antropologia das religiões, mas um “inquisidor” e “perseguidor” de seitas ligado ao GRIS e à Igreja Católica. A partir desse episódio, desdobrou-se toda a crítica tecida pelo O.T.O. que, aliás, elogiou o programa de televisão por apresentar o satanismo sem confundi-lo com os “pseudo-ocultismos populares”122 e com os lugares-comuns normalmente promovidos pela mídia.

Durante o programa, o representante do GRIS alarma os telespectadores dos perigos sociais e morais que as seitas satânicas podem representar, sobretudo aos “pobres jovens indefesos”. Negrini replica: “O Grisetti concluiu então a sua polêmica lamentando que as autoridades civis e a magistratura ‘não intervêm’ e que a ‘excessiva liberdade social e política’ dos nossos tempos não consente de cercar ou reprimir ‘tais organizações’” 123. Após as

acusações do GRIS, o membro do O.T.O. alega a necessidade de não confundir a rebeldia juvenil, que por vezes pode ser criminal e elencar elementos “diabólicos”, com as tradições organizadas neopagãs e satânicas que em nada comungam com os crimes rituais denunciados pela Igreja Católica e pelos jornalistas de “crônicas negras”. O GRIS é definido da seguinte forma no periódico Daimon:

121 Il G.R.I.S. Una nuova inquisizione?!! Ovvero… quando i cani abbaiano alla luna. Daimon. Periodico ufficiale

della Akkademia PanSophica Alpha Draconis. Periodico trimestrale di cultura neopagana thelemica gnostica e luciferiana, 1990, p.83-89. Arquivo do GRIS, Bolonha.

122 Ibid., p.83.

123 “Il Grisetti ha poi concluso la sua filippica lamentando che le autorità civili e la magistratura ‘non intervengono’

e che la ‘eccessiva libertà sociale e politica’ dei nostri tempi non consenta di arginare o reprimere ‘tali organizzazioni’”. Ibid. p.84. Tradução nossa.

Il “Gruppo Ricerca Italiana Sette” (G.R.I.S.) è una organizzazione nazionale fondata e diretta da personaggi “di punta” del mondo cattolico, con lo scopo preciso di “studiare” e “classificare” le “sette religiose”, di schedare i loro membri e, là ove sia possibile, di intervenire per dissolverne l’influenza e la stessa esistenza. Naturalmente, per il G.R.I.S., la qualifica di “setta” è automaticamente attribuibile a qualsiasi gruppo, ente o organismo (financo cristiano, ma soprattutto non-cristiano), che non sia ufficialmente riconosciuto dalla Chiesa Cattolica di Roma…124

Aliás, a rebeldia da juventude italiana e pequeno burguesa, que pode recair sobre os crimes rituais e em satanismos ácidos, de acordo com o artigo do periódico Daimon, estaria mais ligada a uma negação desesperada e psicológica do mundo cristão do que aos grupos organizados como o O.T.O. Os crimes rituais cometidos por jovens na Itália seria, então, no olhar do Ordo Templi Orientis, uma neurose social causada pela repressão, pelo controle e abusos do cristianismo e da moral social cristã.

Non dobbiamo dimenticare peraltro, che gli “antenati di fede” di questi illustri signori, solo fino a poche centinaia di anni or sono, si dilettavano ad infilare ferri arroventati nelle vagine impuberi di streghe adolescenti… e probabilmente il G.R.I.S. vive nella nostalgia di quei tempi. […] Oggi, alcuni giovani “scappano” di casa, esasperati dalla sconfortante mediocrità o dall’assoluta incapacità pedagogica delle famiglie, o rifiutano la scuola, gli inquadramenti e le istituzioni, per motivi ben diversi e ben più complessi della fantomatica influenza delle “sette sataniche”, che, a parte le sporadiche intemperanze di poche decine di dilettanti cui già abbiamo accennato, non hanno in Italia alcuna vera rilevanza sociale.

[…]

Ma vorremmo chiedere al sig. Grisetti ed ai suoi amici: cosa penserebbe il G.R.I.S. di una “analisi’ e di una “schedatura statistica” unita ad un attento studio psicologico, sulle reali influenze che la mostruosa ed innaturale “morale cristiana” determina sulla psiche degli adolescenti?! […] E ancora, a proposito di “povere famiglie divise”, cosa penserebbe l’illustre censore del “Veneto cattolico” [Grisetti] di proporre ai suoi Capi del G.R.I.S. una attenta indagine su certi ben noti “organismi” di plagio internazionale e di sistematico e squadristico proselitismo giovanile, quali ad esempio l’Opus Dei?! 125

A comunidade Ordo Templi Orientis – Fraternitas Hermetica Luciferiana alia-se, portanto, a um satanismo racionalista em defesa da liberdade humana, assumindo um tom combativo à Igreja Católica e a qualquer forma de repressão da liberdade humana. O diabo, o

124 Ibid. p.85. Grifo do autor. 125 Ibid., p.85-86.

“inimigo” rebelde, torna-se, nesse sentido, um símbolo da potência humana e de sua liberdade de ser e não se submeter à soberania do “deus cristão”. Nesse embate entre o O.T.O. e o GRIS, percebemos que os olhares desencontram-se e contrapõem-se em uma luta de poder e de consolidação de uma narrativa (des)diabolizante, pautada em argumentos documentados, como os casos de abuso e lavagem cerebral atribuídos à Opus Dei, citados, inclusive, no referido artigo do Daimon.

O grupo satanista diz estar empenhado no combate aos abusos do GRIS e da Opus Dei, denotando que a ação dos exorcistas e de parte da instituição católica não foi recebida de forma passiva nem pela população e nem pelos grupos pertencentes aos novos movimentos religiosos. Há, portanto, uma resistência “diabólica” em jogo. Nas palavras de Roberto Negrini: “E, se enfim, como é presumível que alguém tente nos calar, ENTÃO O JOGO SE TORNARÁ AINDA MAIS INTERESSANTE”126.

Já em fins dos anos 1980, a posição defendida pelo GRIS sobre os NMR e os satanismos é praticamente a mesma dos sacerdotes italianos e carismáticos envolvidos no projeto de retomada do exorcismo na Itália. Nota-se, portanto, que essa discursividade diabolizante e antisseita conecta-se harmonicamente entre eles, desenvolvendo-se, inclusive, na mesma conjuntura. Os elementos envolvidos na trama do revival do exorcismo não se restringem às publicações e discursos promovidos pelos exorcistas italianos e carismáticos, mas engloba instituições católicas representadas pelo GRIS e pela Associação Internacional dos Exorcistas.

A volta do exorcismo só foi possível a partir dos anos 1980, consolidando-se nos anos 1990 por meio de um aparato narrativo e discursivo veiculado e defendido a nível local e nacional por diferentes instituições e sujeitos, criando linguagens e possibilidades rituais para que a possessão voltasse à cena social. As táticas adotadas pelos exorcistas foram, sobretudo, narrativas e discursivas. Afinal, uma crença não sobreviveria se não existissem mecanismos que dessem credibilidade a ela127. Foi preciso criar técnicas do “fazer crer” a fim de que o

exorcismo voltasse a ser requerido e valorizado pela hierarquia eclesiástica e pelos fiéis católicos.

126 Ibid., p.89.

127 Cf. DE CERTEAU, Michel. Credibilidades políticas. In: A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3ª edição.