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Acredito que nos referirmos ao professor, é dizer da sua docência. É pôr à mostra aspectos imbricados no fazer-se pessoal e coletivamente, no cotidiano escolar. Assim como defendida por Pimenta (1997), parto da compreensão de docência como uma prática social e, como tal, envolta nas condições históricas de sua produção, construída na relação entre sujeitos e significada na e pela experiência do confronto entre expectativas pessoais, demandas socioculturais e normatizações politico educacionais. O desafio de compreender tal configuração reside em capturar esses aspectos em movimento, inseridos no contexto escolar, em situação de ensino, através da ação do professor.

Essa perspectiva fundamenta-se na construção de uma epistemologia da prática profissional docente proposta nos estudos de Tardif, Lahaye e Lessard (1991), Tardif (2000 e 2002), Tardif e Lessard (2005), cuja finalidade é, “... revelar saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho” (TARDIF, 2002, p. 256).

A prática profissional docente como espaço de produção de saberes informa às pesquisas sobre formação de professores em todos os seus desdobramentos temáticos, para uma atitude teórico-metodológica centrada no reconhecimento da figura

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do professor como sujeito competente para dizer da sua profissionalidade, sem que isso signifique alçá-la a um grau de objetivação que enerve a subjetividade relativa às escolhas, às tensões, aos valores e tradições inerentes ao conjunto dos saberes- fazeres necessários e produzidos na docência.

Nos diferentes contextos, os professores agem como atores e autores das suas práticas e dos saberes escolares que mobilizam e produzem, na relação com os outros – alunos e seus pares – com suas histórias, tempos e lugares.

Nesse sentido, ao longo do tempo e por diferentes experiências formativas a docência se constitui em espaço de construção de identidade profissional. Para Cavaco (1995, p.189),

A identidade profissional construída em interacção com o universo de trabalho, modelada pelas suas regras e pelas representações que o estruturam, mantém um núcleo genético central que o mundo da vida contribui para enriquecer e afeiçoar.

Considero que o núcleo genético central da profissão professor ao qual se refere à autora, diz respeito à formação das novas gerações ou como nos ensina Arendt (2007) remete à “responsabilidade pelo mundo”, que se refaz cotidianamente nas práticas escolares, entre os fios da tradição e as exigências das transformações socioculturais, políticas e econômicas.

Tardif e Lessard (2005, p. 35) consideram que a “docência é um trabalho cujo objeto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos, mas de relações humanas com pessoas capazes de iniciativa e dotadas de uma certa capacidade de resistir ou de participar da ação dos professores”. Tal compreensão nos coloca diante de uma profissão de interações humanas, entendida como um trabalho realizado no âmbito de um espaço escolar, formal ou não-formal, com controle e regulamentações, investido de objetivos, conhecimentos, tecnologias e finalidades.

Constituído também por um conjunto de conhecimentos, competências e habilidades específicos que lhe confere status de profissionalidade, o trabalho docente requereu ao longo do tempo o reconhecimento e o profissionalismo necessários à crescente exigência dos seus resultados. Expandem-se os conhecimentos,

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diversificam-se os objetivos, complexificam-se o significado do ensinar, ampliando-se as responsabilidades da atuação do professor em um universo que se modifica cotidianamente, mediante a participação dos sujeitos envolvidos em uma rede de interações.

Como prática social institucionalizada, a docência constrói-se enquanto identidade profissional de uma categoria que reconhece a heterogeneidade dos elementos que a constitui. Nesse sentido, evidencia-se uma construção lenta, temporal, associada a diferentes espaços, sob a influência de princípios sociais, culturais, institucionais e científicos2. O que nos leva a considerar identidades docentes, no plural, pois o entrecruzamento de discursos e representações produz determinados modos de e como os professores são vistos e se veem. De acordo com Garcia, Hipólito e Vieira (2005, p. 54).

A identidade profissional dos docentes é assim entendida como uma construção social marcada por múltiplos fatores que interagem entre si, resultando numa série de representações que os docentes fazem de si mesmos e de suas funções, estabelecendo, consciente e inconscientemente, negociações das quais certamente fazem parte suas histórias de vida, suas condições concretas de trabalho, o imaginário recorrente acerca dessa profissão — certamente marcado pela gênese e desenvolvimento histórico da função docente —, e os discursos que circulam no mundo social e cultural acerca dos docentes e da escola.

Imbricados nessa construção estão os saberes dos professores. Estes saberes mobilizados no cotidiano da sua atuação encontram-se nos mais variados lugares da sua história pessoal, nos modos de experienciar suas relações sociais, de entrar em contato com as histórias do seu em torno cultural e das formas de desenvolvimento da sua escolarização. Falo aqui das dimensões do fazer-se sujeito, a partir das relações espaço temporal que configuram um “estar no mundo”. Em outro movimento, a estes saberes coadunam-se experiências formativas advindas da formação profissional inicial,

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Sobre a profissão docente reconhece-se uma significativa produção acadêmica, que resulta de um lastro de pesquisas voltadas para diferentes focos, como: construção identitária; profissionalismo e profissionalidade; formação inicial e continuada; políticas públicas, cultura escolar e suas relações com as práticas e representações docentes. Cf. (TARDIF, LAHAYE e LESSARD, 1991); (TARDIF e LESSARD, 2005); (BRZEZINSK, 2002); (ANDRÉ, 2002); (NÓVOA, 1995a, 1995b); (PIMENTA, 2002).

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traduzidas em saberes científicos, artísticos, estéticos e filosóficos que perpassam o rol dos conteúdos disciplinares apreendidos, em geral, na universidade.

Não podemos esquecer que esses mesmos conhecimentos são apreendidos através de participações em movimentos sociais, estudantis, religiosos, sindicais, ainda que por variadas maneiras e assentados em diferentes perspectivas. Há também os saberes com os quais os professores lidam na organização e funcionamento da carreira do magistério, como por exemplo, suas regulações, prescrições e finalidades. E como parte significativa do repertório dos saberes docentes temos os saberes da prática, oriundos das situações vivenciadas no cotidiano escolar, sobretudo nas ações de ensino3.

Relacionado à compreensão de produção de saberes pelos professores, aponto que meu olhar sobre o saber, está assentado na sua dimensão relacional, pois como assinala Charlot, em estudos sobre o fracasso escolar dos alunos em termos de relação com o saber,

Não há saber senão para um sujeito, não há saber senão organizado de acordo com relações internas, não há saber senão produzido em uma “confrontação interpessoal”. Em outras palavras, a ideia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber). (2000,p. 63)

Desse modo, não podemos pensar que os professores possuem um saber a ser ensinado, mas que produzem saberes a partir de diferentes experiências de relação com o saber, isto é, da relação consigo mesmo, com os outros, com as teorias, com os livros e objetos didáticos, com a rotina escolar, com as práticas culturais e os artefatos

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Acerca da natureza, origem e tipologia dos saberes docentes, bem como das suas dimensões de temporalidade, heterogeneidade e pluralidade há um conhecimento consensuado no universo de produção da pesquisa acadêmica educacional, não obstante a existência de diferentes focos de análise e nuanças entre a identificação de certa relevância entre seus tipos. Nesse sentido, intitulam-se como saberes profissionais dos professores: saberes disciplinares, das ciências específicas; os saberes curriculares e pedagógicos, situados no campo das ciências da educação, da seleção sociocultural e da tradição pedagógica; saberes experienciais ou da prática, produzidos no ambiente do trabalho (TARDIF, 2002); (PIMENTA, 2002); (BORGES, 2004); (GAUTHIER, 2006); (FREIRE, 2003); (PERRENOUD, 1999).

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do mundo contemporâneo, enfim, constroem uma relação com o saber em sua dupla dimensão: epistêmica e identitária4.

Nessa perspectiva, do ponto de vista epistêmico, na atividade docente, os professores apropriam-se de um objeto de saber, por meio dos muitos recursos empíricos; dominam uma atividade materializada pelo corpo e engajada no mundo; experienciam a forma intersubjetiva da relação com o mundo, inscrita em um sistema de valores e comportamentos que imprimem o aprendizado do domínio e da regulação das relações.

Já a dimensão identitária que se apresenta na relação com o saber, remetemos aos processos de socialização, escolarização e profissionalização que constituem o universo de referência dos professores, uma vez que dizem respeito às imagens construídas, individual e socialmente de/por cada um. Nesses processos estão imbricadas as relações com os outros. O outro como sujeito externo, do mundo e, o outro, como aquele que há em cada um.

Estas duas dimensões que constituem a relação com o saber estão imersas no mundo. Não se fazem à parte das relações sociais. Coexistem em um determinado espaço e tempo. Mas isso não significa dizer que são determinadas por estruturas ou condições sociais. Como afirma Charlot (2000, p. 74)

Que a relação com o saber seja social não quer dizer que deva ser posta em correspondência com uma mera posição social. É verdade que essa posição é importante, mas a sociedade não é apenas um conjunto de posições, ela é também história. Para compreender a relação de um individuo com o saber, deve-se levar em consideração sua origem social, mas também a evolução do mercado de trabalho, do sistema escolar, das formas culturais, etc. (grifo do autor)

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Cf. Charlot, 2000. O autor define Relação Epistêmica com o saber a partir das figuras do aprender, que de um modo geral pode caracterizar-se por: “passar da não-posse à posse, da identificação de um saber virtual à sua apropriação real”(p.68); Trata-se aqui da construção de um saber-objeto; pode ser também passar “do não-domínio ao domínio de uma atividade. Esse domínio se inscreve no corpo” (p.69); Outra forma da relação epistêmica com o saber refere-se ao domínio relacional. Saber dominar, regular uma relação. Esse “sujeito epistêmico é o sujeito afetivo e relacional” (p.70). A Relação Identitária com o

saber, diz que “aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, às suas

referências, à sua concepção da vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si aos outros” (p. 72).

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Nesse sentido, se compreendermos a docência como uma prática social (PIMENTA, 1997), e as relações com o saber, como relações sociais (CHARLOT, 2000), torna-se necessário refletirmos a mobilização dos saberes dos professores em situações de ensino, a partir de diferentes contextos culturais nos quais ocorre a construção dos saberes escolares.

Neste caso, passo a tratar mais especificamente da categoria saber histórico escolar, em relação com o saber escolar, como um elemento estruturante da minha problematização.