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1.3 Saber Histórico Escolar

1.3.2 Outros fios fortalecem a tessitura

Miranda (2007), assentada na perspectiva da epistemologia do saber escolar assinala que este deva ser “compreendido como criativo, dissonante e peculiar em face das matrizes disciplinares de referência e, nesse sentido possui uma identidade própria que deve ser objeto de problematização e investigação” (p. 204-205).

Conforme seu estudo, realizado no doutoramento em Educação, a produção do saber histórico escolar reveste-se, sobretudo dos elementos formativos oriundos de diferentes cenários urbanos e dos elos com a memória, atuando na construção da identidade local.

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Ao privilegiar os discursos dos professores em contextos escolares diferenciados por sua configuração espacial e cultural, enfatiza a elaboração dos critérios de plausibilidade e de seleção da matéria histórica a ser ensinada ratificando um saber escolar “ressignificado na e pela prática de seus sujeitos e não como mera didatização das informações geradas a partir das ciências de referência”. (p. 42)

Nesse sentido, ratifica a impossibilidade de uma relação verticalmente hierarquizada do saber acadêmico sob o saber escolar, e advoga o reconhecimento das diferenças epistemológicas existentes, bem como das finalidades que o conhecimento assume socialmente.

Por outro lado, Miranda (2007) afirma que embora haja lógicas distintas entre a produção do saber acadêmico e do saber escolar, há que se considerar que a especificidade deste é construída face à matriz de referência e das bases orientadoras que nos conferem a ciência histórica.

Ao recorrer à obra de Rüssen (2001), para quem a Teoria da História possui uma “função didática de orientação” da vida prática, Miranda (2007) reafirma a importância do diálogo com o campo epistemológico, neste caso, com a História, para entendermos como esta se constitui em uma forma específica de explicar o mundo e que, portanto, suas formas de teorização ou narrativas históricas não se dirigem apenas a profissionais específicos, mas estão relacionadas à experiência humana em diferentes maneiras de aprendizagem histórica, entre elas, a história escolar.

Além do diálogo com a matriz da ciência de referência em bases de autonomia relativa e capacidade de ressignificação mediante a variabilidade cultural na qual se insere, o saber histórico escolar estrutura-se a partir dos elos com a memória e com a tradição curricular vinculada a institucionalização e desenvolvimento da disciplina.

Ao situar a pesquisa no quadro compreensivo das relações entre saberes, cultura, lugar e memória a autora afirma que,

a especificidade do lugar e os elos com a memória local podem funcionar como elementos mediadores do saber do professor e da valorização que ele faz do conhecimento histórico. (MIRANDA, 2007, p. 206)

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Pensar a produção do saber histórico escolar a partir das perspectivas acima apresentadas, reconhecendo suas diferenças de marco temporal, de lugar, do foco de problematizações e de abordagens elaboradas ajuda-me na busca de respostas às minhas inquietações, à medida que entrecruzam dimensões variadas e complexas da composição do saber escolar.

Nesse sentido, numa tentativa de síntese compreensiva destaco que tais proposições: confirmam a especificidade do saber escolar face à matriz de referência, sem desta prescindir; situam sua produção no contexto ativo e criativo da escola, constituído por relações que conformam uma determinada cultura; assinalam a ação dos sujeitos, professores e alunos, envoltos em suas experiências sócio-históricas a partir das quais atribuem sentidos particulares aos processos escolares que vivenciam, evidenciando valores e escolhas éticas; reconhecem variados elementos instituintes do processo de didatização oriundos de fontes diferentes, de natureza social, epistemológica e políticoeducacional, que são confrontados e utilizados de acordo com os critérios de plausibilidade construídos pelos sujeitos da prática docente, mediante sua formação e relação com o saber.

No que diz respeito à especificidade do saber histórico escolar as citadas contribuições (CHERVEL, 1990; MONTEIRO, 2007; MIRANDA, 2007) se dão em relação ao entendimento da sua constituição vinculada às práticas sociais mais amplas, à tradição pedagógica e disciplinar, aos vínculos com a memória e aos significados atribuídos à formação histórica.

Nos contextos escolares será a ação do professor ante a mobilização dos seus saberes a conferir exequibilidade à história ensinada. Nesse sentido, Charlot (2000) chama atenção para o fato de que não existe um saber em si, assim como não existe um sujeito de saber, haja vista a natureza relacional do saber. Assim, não existe um saber desencarnado, sem corpo, sem alma e fora de um lugar. Conforme esse autor,

Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Não obstante, os homens

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mantêm com o mundo e entre si (inclusive quando são ‘homens de ciência’) relações que não são apenas epistemológicas. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para construir o saber, mas, também, para apoiá-los após sua construção: um saber só continua válido enquanto a comunidade científica o reconhece como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trata de um saber que tem valor e merece ser transmitido. (CHARLOT, 2000, p.63)

Durante esta pesquisa, em um dos encontros do grupo focal7 uma das professoras faz as seguintes indagações: “Vou dizer sinceramente, eu queria saber sobre as aulas de história, qual é o suporte que vocês têm? Vocês gostam das aulas de história? É fácil dar aula de história? Como é que vocês veem as aulas de história?” (Amanda, 1º encontro do GF, 06/09/2011)

Tais questões mobilizaram-me a pensar, no primeiro momento, sobre as relações das professoras com o saber histórico escolar em referência ao conhecimento histórico. O que seria para essa professora o suporte para dar aula? Conceitos substantivos, procedimentos metodológicos, formas de abordagem e comunicação construídas a partir do conhecimento histórico fazem parte deste questionamento?

Se assim o for, reconhecer o necessário diálogo entre o saber histórico escolar e as formas de produção do conhecimento histórico não se reduz a identificação de tais elementos, como se aquele fosse por este validado, mas sim, implica em pensarmos em que bases esse diálogo acontece.

Os questionamentos da professora suscitaram-me ainda outras reflexões, como por exemplo, a dúvida posta em relação a sentimentos de segurança, satisfação e prazer com o trabalho realizado com o ensino de História. O que isso significava no contexto das suas aulas? Penso então na atribuição de sentidos à história ensinada, por esses sujeitos. O que implicava eliminar a possibilidade do caráter de validação do saber histórico escolar pelo diálogo com a ciência de referência, pois se desta não podemos prescindir, faz-se necessário reconhecer que o seu domínio não é suficiente

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O grupo focal foi uma das técnicas utilizadas no conjunto dos procedimentos metodológicos adotado na pesquisa. Este será melhor especificado no capítulo 2.

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para a prática das professoras e trazer à tona outros elementos que constitui a produção, situada, da história ensinada.

Nesse sentido, destacava-se a ideia do ensinar. O que seria dar aula de história para alunos dos anos iniciais do ensino fundamental? Apresentavam-se também nos questionamentos da professora à imagem do professor, ou melhor, a sua pessoa. Quem é esse sujeito? Como ele se sente ao dar essa aula? Como se reconhece no plano da sua profissão? O que ele traz de pessoal e profissional para aquela atividade de dar aula?

A partir dos questionamentos acima, tomo a seguir o lugar da pesquisa empírica, o contato com os sujeitos, a elaboração dos procedimentos e instrumentos que me possibilitassem capturar os dizeres e as práticas envoltas nos sentidos eu lhes são atribuídos.

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CAPÍTULO 2

LUGARES, SUJEITOS, INSTRUMENTOS E MODOS DE TECER

Todos juntos começaram um Novo mundo a criar: ponto aberto, canutilho, Ponto de haste e de areia, ponto cheio e De cadeia, crivo, marca e ponto russo, Ponto Paris, ponto-atrás, e nem lembro Quanto mais... tudo o que é ponto existente E outro mais que se invente. (Ana Maria Machado)

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A partir do quadro esboçado quanto à delimitação e aos pressupostos da problematização investigada, cabe aqui apresentar os sujeitos-retalhos que compuseram comigo esta colcha e os instrumentos que nos permitiram tecê-la, além de mostrar como nos dispusemos em movimento, pra lá e pra cá, cruzando fios, problematizando, encontrando brechas.

Inicio então a esclarecer minha relação com a atividade de “tecer” uma pesquisa, uma atividade que está imbricada a minha atuação profissional e diz respeito a um certo “modo” de ser professora e de pensar a formação/atuação de um professor- pesquisador.

De acordo com as orientações de Minayo (2000, p.23), entendo a pesquisa como “... uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente. É uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular entre teorias e dados”.

Dessa compreensão podemos depreender que a realidade nunca é capturada em sua inteireza, posto que é múltipla e movimenta-se continuamente de forma dialética.

Assim, os lugares e os sujeitos da pesquisa – as unidades escolares e professoras – particularmente, nas aulas de história são vistos em suas singularidades e dinâmicas próprias, porém sem que isso as individualize no sentido de lançar o olhar sobre elas mesmas, arrancando-as dos seus contextos socioculturais e do seu fazer-se cotidianamente com outros sujeitos.

As elaborações teórico-metodológicas de Elias (1994a, 1994b, 2000, 2001) contribuíram para compor esse modo de olhar para o contexto no qual estávamos inseridos e, mais ainda, para os sujeitos participantes, as professoras.

Neste caso, o conceito de Configuração, desenvolvido pelo autor em sua análise sócio-histórica da sociedade, foi tomado com o sentido de reconhecer a forma exclusivamente relacional de constituição dos seres humanos. Conhecer a configuração professores das escolas municipais de Garanhuns, que atuam nos anos iniciais do

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ensino fundamental diz respeito a compreender a rede de “interdependências” que a constitui. Sobre esse conceito, Elias afirma (2001, p.149):

O que distingue o conceito de figuração [configuração] dos conceitos mais antigos com os quais se pode compará-lo é precisamente que ele constitui um olhar sobre os homens. Ele ajuda a escapar de armadilhas tradicionais, as das polarizações, como a do “indivíduo” e da “sociedade”, do atomismo e do coletivismo sociológico. Os meros termos “indivíduo” e “sociedade” já bloqueiam frequentemente as percepções. Caso se chegue a um distanciamento, fica-se em condições, nos degraus da escada em espiral da consciência, de se reconhecer a si próprio, aparentemente no degrau precedente, enquanto homem entre outros homens, e de reconhecer a sociedade como uma figuração constituída de numerosos indivíduos fundamentalmente interdependentes, ou seja, tributários e dependentes uns dos outros; só então se é capaz de superar intelectualmente a polarização entre indivíduo e sociedade. Eis um objetivo tão fácil como ovo-de-colombo e tão difícil como a revolução copernicana.

Nesta investigação, tornou-se elemento metodológico estruturante compreender as relações das professoras tendo como foco de análise a dinâmica de suas práticas em relação a si e ao outro, ou seja, as interdependências que ligam uns aos outros tanto na configuração macroscópica, neste caso, o sistema educacional do município de Garanhuns, como em uma escala mais reduzida, a escola e o grupo de professoras.

Com base nessa compreensão os procedimentos metodológicos realizados possibilitaram-me uma experiência pessoal com cada uma das quatro professoras em seu cotidiano profissional, como também uma convivência com o grupo, através dos encontros do Grupo focal. Tomo aqui as palavras de Rizzo e Fonseca (2010, p. 142) para dizer do meu entendimento sobre esse grupo: “um coletivo de intensidades, de cruzamentos, formando linhas, em que essas mulheres se constituem”.

As dependências recíprocas ou para usar o próprio termo eliasiano, as interdependências, constituem-se dentro de cada configuração por dinamismo, flexibilidade, antagonismos e busca do equilíbrio de tensões, conferindo-lhes movimento, tanto como condição de permanência/reprodução como de transformação/superação.

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Desse modo, o que fazem as professoras nas salas de aula, o que expressam sobre essas mesmas práticas, sobre o que possuem como “horizontes de expectativas” a partir das experiências vividas, diz respeito a uma maneira de relação com o ser, com o saber e com o mundo que não é construída individualmente. Nessa direção, Charlot (2005) nos ratifica que o sujeito é simultaneamente social e singular.