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3. JORNAIS: ESCRITAS DO COTIDIANO

3.2 DOCUMENTOS ABERTOS PARA O COTIDIANO

A escolha de um impresso periódico para uma pesquisa no campo da História se dá por ser um meio importante em se perceber aspectos do cotidiano marcados na escrita. Chama-se de impresso periódico o material impresso com certa periodicidade. Esta distinção é importante pois diferencia os jornais e revista de livros, por exemplo. Isto impõe, portanto, práticas de leitura diferentes da leitura de um livro.

O jornal é leitura diária, faz parte da organização do dia de quem o consome. A cada dia, uma nova publicação, com novos textos, chega ao mundo do leitor. Essas práticas de leitura podem ser observadas ao tomar contato com os acervos de impressos periódicos como do O Estado de S. Paulo.

Pelo jornal é possível notar as mudanças urbanas, as reformas, os novos estabelecimentos que são inaugurados, o comércio, os produtos nacionais e importados vendidos na cidade, os espaços de sociabilidade, as tensões e disputas políticas nacionais, bem como os acontecimentos internacionais.

Jornais são uma fértil fonte a ser pesquisada no campo da História. Se por muito tempo historiadores dedicaram-se ao estudo dos editoriais, das grandes reportagens e principais notícias, cabe aqui destacar as escritas consideradas “menores”. Estas escritas com linguagem mais acessível, com textos mais curtos e temas mais cotidianos são fundamentais para se compreender o dinamismo de um mundo urbano em transformação.

A modernidade entra também nos hábitos mais corriqueiros: comer, trabalhar, divertir- se tornam-se atividades alvo das escritas de jornal. Por isso, os impressos periódicos são elementos importantes para se capturar a forma de vida dos homens e mulheres no espaço urbano, neste caso na cidade de São Paulo nos anos 1920. Fazer uma História dos costumes e do cotidiano é atividade desafiadora e por isso tem-se no Estado de S. Paulo um bom exemplar para percorrer os caminhos diários dos moradores da cidade-metrópole.

A década de 1920 foi escolhida por tratar-se de um período em que a cidade está em ebulição cultural e comercial. Grandes construções como a do Edifício Martinelli começam a verticalizar a cidade enquanto novos hábitos de vida urbana chegam ao cotidiano dos/as paulistanos/as.

Para apreender o cotidiano nos anos 1920 é possível percorrer as páginas do jornal e ali, nas diferentes formas de escrita, encontrar exemplos do cotidiano por escrito. Na publicidade é possível perceber, por exemplo, os hábitos de higiene e cuidado com a saúde diários – nos anúncios de sabonetes, elixires, cremes e pomadas – que, por conta do projeto higienista de República ficam cada vez mais evidentes no contato com o impresso. Ser moderno é ser saudável. E o cuidado com a saúde envolve uma gama cada vez maiores de produtos médicos e cosméticos comercializados nas páginas do jornal.

Surgiram seções especializadas, dedicadas ao público feminino, esportes, lazer, vida social e cultural, crítica literária, assuntos policiais e internacionais. Aos poucos delineava-se a distinção entre matéria de caráter informacional ou propriamente jornalística, supostamente neutra e objetiva, e o texto de opinião, que tomava posição e defendia ideias e valores (DE LUCA, 2013, p.152).

Outra forma de perceber os hábitos cotidianos se dá por meio das colunas esportivas. Na década de 1920 a seção de esportes cresce no jornal e são várias as notas que dão conta das práticas esportivas cotidianas na cidade. O esporte entra no cotidiano a partir da ideia de lazer aos fins de semana, que começa a ser difundida neste período. A divisão do tempo entre trabalho e lazer é bastante característico da cidade moderna. O tempo fora do trabalho deve, portanto, ser aproveitado nos espaços oferecidos pela cidade, e não como tempo de descanso. Os esportes, além de proporcionarem o tempo do lazer contribuem também para o cultivo do corpo saudável, pratica estimulada pela medicina higienista em voga.

As crônicas se apresentam também como escritas dessa vida comum. Crônicas são tipos textuais apresentados ao público para serem lidos no dia-a-dia. Com escrita fácil e acessível, o texto das crônicas divulga a vida urbana em constante transformação. A relação com o tempo – Chronus – está presente na origem da palavra latina. As crônicas fazem parte da maioria dos impressos periódicos do início do século XX no Brasil, sendo um elemento importante para se compreender as escritas de jornais.

Os diversos círculos intelectuais formavam-se em torno dos homens de letras que, por volta do final do século XIX, combinavam a atividade literária com o emprego em jornais e revistas, apontando para a profissionalização da atividade. Escritores como Coelho Neto, Olavo Bilac, Bastos Tigre assinavam crônicas e colunas diárias nos jornais da capital federal, enquanto em São

Paulo Monteiro Lobato, Amadeu Amaral, Menotti del Picchia, entre outros, frequentavam as colunas do jornal do Commercio, Correio Paulistano e O Estado de S. Paulo. Disputando espaço com o noticiário, as colunas literárias proliferavam, exigindo maior amplitude (COHEN, 2013, p.107).

Estes escritos apresentavam ao público leitor pequenos textos que versavam sobre acontecimentos da vida urbana – um jantar beneficente, o calçamento ou arborização de uma rua, ou mesmo lugares a se frequentar para fazer refeições. Para além do breve relato as crônicas estimulavam modelos de civilidade e ditavam as regras para o convívio social moderno e civilizado.

Encarar as crônicas como exemplares da literatura moderna é um passo importante para a pesquisa histórica. Nicolau Sevcenko (2003, p.28), importante pesquisador das crônicas no início do século XX no Rio de Janeiro e em São Paulo afirma que

Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, a que nos interessa aqui, a que motivou este trabalho, é a literatura, em particular a literatura moderna. Ela constitui possivelmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da perplexidade. É por onde desafiam também os inconformados e os socialmente mal-ajustados. Essa é a razão por que ela aparece como um ângulo estratégico notável, para que a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada estrutura social. Tornou-se hoje em dia quase que um truísmo a afirmação da interdependência estreita existente entre os estudos literários e as ciências sociais.

O jornal traz, portanto, diferentes olhares sobre um mesmo espaço, sobre um mesmo processo. Este entendimento – que cada autor traz em seus textos a sua perspectiva – impõe ao historiador uma mudança de epistemologia. Se por muito tempo os historiadores “resgatavam” documentos do passado e apenas reproduziam aquilo que continha na fonte, cabe ao historiador do presente questionar as escritas do passado e a verdade pré-estabelecida pelo material impresso.

A tarefa da História é, portanto, produzir narrativa verossímil sobre determinado passado, questionando as fontes e atentando não apenas para o seu conteúdo escrito como também ao seu suporte e materialidade, ao contexto de produção, às demais escritas da publicação. Enfim, é necessária uma leitura atenta a tudo que envolve a produção de um jornal.

A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não se regrida a posições reducionistas anteriores, é de que se preserve toda a riqueza estética e comunicativa do texto literário, cuidando igualmente para que a produção

discursiva não perca o conjunto de significados condensados na sua dimensão social (SEVCENKO, 2003, p.28-29).

Neste sentido é fundamental destacar que não existe um documento imparcial. A escrita de uma coluna de jornal sempre envolve o ponto de vista do autor, o aval do redator e do editor, além da aceitação do público-alvo, afinal, o jornal é uma empresa e precisa ser comercializado, gerando lucros. Dar conta destes aspectos é questionar as visões ingênuas sobre a imprensa que não questionam a verdade do documento. O historiador, portanto, entende as escritas como olhares, versões possíveis sobre determinado assunto.

Inicialmente fazendo a pesquisa por palavras-chave – Coisas da Cidade – foram encontradas aproximadamente mil e duzentas referências entre janeiro de 1920 e dezembro de 1929. A pesquisa por palavras-chave é um bom instrumento de buscas, entretanto, não dá conta de todo o material disponível no acervo.

O catálogo on-line, oportunamente interrogado, faz a parte do advogado do diabo. Certamente, a desorientação pode durar uma fração de segundo: em geral, os pressupostos (sobretudo os ideológicos) retomam de imediato o controle da situação. Mas à pergunta imprevista colocada pela documentação casual será preciso continuar a prestar contas. Também na pesquisa, como no xadrez, as aberturas são importantes, às vezes decisivas; em todo caso, influenciam longamente o curso do jogo. A responsabilidade de quem faz pesquisa começa aqui (GUINZBURG, 2005, p. 167).

Apenas por esta pesquisa inicial não foi possível, por exemplo, estabelecer uma periodicidade nem a localização da coluna no corpo do jornal. A busca por termos, portanto, não alcança todas as publicações disponíveis.

A pesquisa que faz usos de recursos on-line apresenta desafios metodológicos. É preciso explicar como se dá o contato com o material e garantir que nada que possa ser visto presencialmente fuja das vistas do historiador imerso nos acervos on-line. Por isso é fundamental não limitar as pesquisas apenas ao que está disponível.

A perambulação do historiador através dos catálogos (eletrônicos ou em papel) não é muito diferente daquela de um fotógrafo que caminha por uma cidade pronto a captar em um instantâneo uma realidade contingente e fugidia. A palavra "click" — o clic da máquina fotográfica — foi usada por Leo Spitzer para definir a intuição do crítico que de um golpe capta o traço revelador de um texto que leu e releu cem vezes. Mas quem já observou os instantâneos de Henri Cartier-Bresson ou de Robert Capa (poderiam ser acrescentados outros nomes) sabe que por trás do disparo do obturador está memória, escolha, em uma palavra: construção. Aquilo que permite reagir fulminantemente ao acaso é o lento acúmulo da experiência. E, em cada caso, ao reconhecimento de um

tema de pesquisa promissor (o instantâneo) deve necessariamente seguir o filme: para além da metáfora, a pesquisa (GUINZBURG, 2005, p.169).

Uma das principais questões impostas ao pesquisador dos acervos on-line é a falta de contato com a materialidade do impresso. A leitura na tela é diferente da leitura no papel e, portanto, se muda o suporte, muda também a leitura que fazemos dele. Por isso é importante o contato com o jornal em papel: perceber os detalhes que fogem ao olhar da tela iluminada, seu tamanho físico. Imaginar os leitores em contato com o papel impresso e pensar as práticas de leitura do Estado é atividade importante na pesquisa histórica, afinal de contas é pela materialidade que se pode pensar as técnicas disponíveis no período em questão.

Ao mesmo tempo que os acervos on-line nos impõem uma outra postura metodológica é preciso destacar a facilidade do acesso a eles. Somente pelos acervos on-line é possível disponibilizar este conteúdo aos historiadores do Brasil e do mundo. A prática de disponibilizar os acervos on-line auxilia na divulgação do conhecimento e na garantia do acesso às fontes de pesquisa. Assim sendo, empresas como o grupo Estadão possibilitam o acesso por meio da assinatura mensal de seu conteúdo, fazendo do acesso ao passado um negócio também lucrativo.

Desta forma foram reunidas todas as colunas Coisas da Cidade em pastas organizadas por ano e mês de publicação63. Primeiramente pesquisadas as crônicas que apareceram pela

busca de termos, e depois, as que foram buscadas edição por edição.

Coisas da Cidade é uma coluna de crônicas que aparece timidamente no Estado de S. Paulo a partir da década de 1910. Mas é somente no final do ano de 1918 que a coluna passa a ser assinada sob o pseudônimo P.

P. é um atento habitante da cidade. Sua visão das transformações urbanas, dos hábitos cotidianos aparecem por escrito nas crônicas publicadas pelo autor. Estes escritos trazem de forma leve e delicada os aspectos mais comuns da vida na cidade: os bondes, as peças teatrais, os encontros e desencontros da vida citadina, o carnaval e os esportes, além das reformas de ruas e dos novos serviços, que são alvos do olhar atento de um personagem que vê o seu entorno em constante modificação.

Coisas da Cidade, portanto, narra o comum. Com textos pequenos – se comparados às grandes reportagens, notícias de guerra e de economia, geralmente entre as páginas 4 e 6 do jornal, antes das Partes Comerciais, a crônica é publicada com periodicidade não mapeada. Em

alguns meses ela aparece todos os dias, em todas as edições, em outros não é publicada nenhuma vez. É, portanto, uma coluna flutuante em números, mas ainda assim muito frequente no jornal. Usualmente não saía às segundas-feiras, mas isso não se configura como uma regra. Por isso é possível inferir que seu escritor folgava aos domingos. Além do cronista aqui em questão, pelo número de páginas do jornal, pode-se constatar que domingo era um dia de pouco trabalho na redação, o que pode ser compreendido através da lei que proibia a jornada de trabalho nos jornais aos domingos. As publicações de segunda a domingo têm entre dez e dezesseis páginas, enquanto que as de segunda-feira somam, no máximo, seis páginas. Em todas as edições as últimas páginas são dedicadas aos anúncios – afinal, são eles que possibilitam a existência financeira do jornal.

O Estado de S. Paulo traz algumas divisões internas que são perceptíveis na leitura do jornal. As primeiras páginas dedicam-se às notícias internacionais e de outros estados do país, especialmente do Rio de Janeiro com a coluna Notícias do Rio. As correspondências por telegramas possibilitam o contato com informações de todo o mudo e assim, o contrato com a empresa Havas possibilita a conexão de São Paulo com outras partes do globo.

Após as notícias internacionais e de outros estados vem as notícias do Estado de São Paulo. O mercado do café, pilar de sustentação do projeto burguês republicano, aparece com bastante frequência nas páginas do Estado. Por fim, nas últimas páginas que antecedem os anúncios, aparecem as notícias consideradas ordinárias. Aquilo que faz parte do cotidiano do/a paulistano/a. As corridas de automóvel, as notas sociais, os jantares, os esportes, a loteria. Tudo isso está presente nestas últimas páginas e é sobre elas que esta pesquisa se dedica.

O que é possível perceber pelos escritos aqui estudados é a construção de uma nova sensibilidade para a vida urbana. Os gostos, os cheiros, a organização espacial, tudo parece estar em transformação nesta década de 1920. A vida urbana vai ser marcada pelas exigências de um público cada vez mais atento aos protocolos de civilidade, às regras de convívio social e a organização e asseio dos espaços públicos e privados.