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2. IMPRENSA, CIDADE E ALIMENTAÇÃO

2.3 JORNAIS E CIDADE

Entendendo os jornais como uma construção de muitos autores – redatores, jornalistas, cronistas, repórteres, fotógrafos, anunciantes e romancistas – vê-se a pluralidade que pode ser encontrada numa mesma edição. Percebendo os pormenores que cada tipo de texto apresenta é possível então produzir uma narrativa que priorize, para além das informações encontradas nestes textos, sua organização, suas condições de produção e os diferentes tipos documentais que se apresentam num mesmo periódico. Estudar o papel da imprensa numa cidade como São Paulo é relacionar as atividades comerciais às atividades intelectuais, como bem apontam Tania Regina de Luca e Ana Luiza Martins (2006, p.39)

Tempo, espaço, velocidade e técnica potencializadas permitiram crescimento no setor, ainda que num país sem tradição editorial, mas cuja capital da República, cosmopolita, esforçava-se por juntar-se à vanguarda do jornalismo. País onde, repentinamente, brotara um empório comercial vigoroso – a cidade de São Paulo e algumas capitais do país – engrenagens que punham em funcionamento os recursos viabilizadores de crescimento, testemunhados por uma imprensa vivaz.

Jornais são escritos para serem lidos ao sabor do dia-a-dia, em meio às atribulações diárias. Desta forma um mesmo documento, o jornal, pode ser analisado a partir das variadas formas de escrevê-lo (crônicas, reportagens, editoriais, publicidades). Ainda que as taxas de analfabetismo fossem muito altas no período, os periódicos apresentam o cotidiano por escrito, pois os periódicos, produtos do correr do dia, trazem em suas linhas eixos de sociabilidade, eixos políticos, gostos incentivados, opiniões culturais e problemas sociais expostos.

A imprensa periódica, especialmente a diária, apresenta características de uma sociedade: são formas de viver, de comer, de fazer política ou música num dado tempo e espaço. Eles nos dão a ler aspectos culturais e sociais e trazem em seus escritos maneiras de perenizar o cotidiano. Arquivar o cotidiano é tarefa das mais difíceis, pois este está situado no campo do efêmero, do passageiro. Antigos periódicos custodiados por arquivos públicos ou bibliotecas são, portanto, janelas abertas para um passado, que nos apresentam o cotidiano a partir de diferentes óticas.

A imprensa mais profissionalizada passou a figurar como segmento econômico polivalente, de influência na melhoria dos demais, visto que informações, propaganda e publicidade nela estampadas influenciavam outros circuitos, dependentes do impresso em suas variadas formas. O jornal, a revista e o cartaz – veículos de palavra impressa – potencializavam o consumo de toda ordem (MARTINS; DE LUCA, p.38, 2006).

A partir dos jornais é possível mapear um cotidiano que não se faz mais presente. Em meio às escritas mais comuns como as crônicas, pode-se perceber as demandas da cidade em seu dia-a- dia, as reformas que ocorriam na cidade, as novidades que ali chegavam, as novas construções, ou seja, é possível mapear o movimento de uma cidade com vida. Para o historiador é um movimento de “representar o já representado, re-imaginar o já imaginado. Nessa medida, imagens e textos são – para ele – fontes sobre as quais vai colocar suas questões” (PESAVENTO, 2002, p.11). Foi possível pensar nos escritos de alimentação presentes nestes periódicos como temática de análise, tendo em vista que aparece nos periódicos sob diferentes formatos. Com a intenção de pensar o cotidiano, vindos das páginas dos jornais, pensar a alimentação, como prática deste cotidiano prescrito apresenta-se como fértil recorte, pois auxilia a comprovar o trânsito do cronista no debate público e a sua preocupação com um processo civilizador em curso, de aprofundamento das distinções sociais, muito presentes nas crônicas de Coisas da Cidade.

Os meios impressos são documentos importantes para se observar inúmeras questões, e dentre elas as construções do gosto, propaganda das novas formas de ser e agir ganham destaque. Jornais como O Estado de S. Paulo apresentam visões sobre uma cidade alvo de reformas modernizantes, seja no espaço urbano, ou nos gostos e nas maneiras de viver, e por isto optou-se como recorte espacial a cidade de São Paulo entendendo esta como centro irradiador destas novas formas de vida no país. Mudar era preciso, mas era igualmente necessário apresentar as modificações e o meio escrito diário foi o escolhido para tal atividade. Para Nicolau Sevcenko (2001, p.17), o problema reside no ritmo das mudanças, pois “nunca teremos tempo para parar e refletir, nem mesmo para reconhecer o momento em que já for tarde demais”. Esta sensação de estar no loop da montanha russa, como afirma o autor, e desta forma não ter o tempo para perceber a mudança parece ter acontecido no início da República no Brasil. Jornais foram, durante todo o século XX, um dos principais meios de comunicação, nos quais é possível encontrar desde reportagens que constroem acontecimentos até elementos que auxiliam na reconstrução, por parte da História, do cotidiano das cidades e do país, pois, de acordo com Pierre Nora (1979, p.182), “os media transformam em atos aquilo que não teria sido senão palavra no ar”, e desta forma, os periódicos apresentam-se como documento útil para análises que busquem verificar tais atos do passado. Não fosse o registro por meio da imprensa periódica seria mais dificultoso buscar mapear os hábitos sociais, as formas de diversão e lazer ou mesmo as percepções sobre o processo de modernização vivenciado por São Paulo no período em questão.

No início do século XX, os jornais foram utilizados para divulgar e discutir propostas de governo, propagandear novos produtos e locais de sociabilidade, bem como hábitos a serem adquiridos com as reformas sociais e urbanas ocorridas no Brasil no período. Assim, a proposta aqui presente julga que os jornais desta época, tais como O Estado de S. Paulo são documentos que dão a ler elementos que auxiliaram na construção das demandas sobre as sociabilidades burguesas e os diferentes espaços da cidade próprios para o consumo de alimentos.

Anúncios estão bastante presentes nestes jornais. Com eles é possível reconstruir os locais de sociabilidade, bem como mapear algumas reformas urbanas próprias à época, notadamente pensando nos lugares da alimentação nesta nova cidade que se desenha com o século XX. É preciso ainda pensar nas modificações ocorridas nas formas de divulgar produtos e lugares. No início do século XX é possível perceber algumas mudanças neste tipo de comunicação. Neste primeiro momento, ainda na década de 1920, os anúncios encontrados nos jornais são apenas escritos, e poucas foram as vezes em que se recorreu ao uso de imagens, que passam a ser tão comuns nas décadas seguintes. As imagens passam a povoar a publicidade, modificando assim as formas de divulgar e oferecendo à leitura – tanto do texto como das imagens – novos elementos, e assim “sobreviver da pena implicava em transitar pelo mundo da publicidade” (DE LUCA; 2010, p. 124). Ainda é possível compreender as modificações nos formatos dos jornais pelas publicidades, entendendo que “o advento da ilustração foi essencial para o impulso e a diversificação do impresso periódico” (DE LUCA; 2010, p. 134). As ilustrações nos dão a ler, também, o crescimento de um público leitor, como o público feminino, e também da escolarização no país, que gradativamente vai aumentando a procura pelos materiais impressos, e dessa forma, foram necessárias algumas modificações em seu formato, tais como a inclusão de ilustrações nas páginas dos jornais, deixando-os mais sedutores. Os anúncios são também importantes testemunhos do passado. Auxiliam no conhecimento de produtos, serviços, eventos e também dos novos hábitos experimentados na cidade. São restaurantes, cafés, confeitarias, hotéis, que fazem parte de uma cidade em processo de modernização.

Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca (2006, p.4) destacam que há uma grande diferença entre propaganda e publicidade, sendo que a primeira possui características ideológicas, enquanto a segunda é própria da experiência capitalista. A publicidade passa então a ser crucial para a atividade jornalística no país. A relação cidade, comércio e publicidade fica bem evidente no decorrer desta pesquisa. Com a intensificação das reformas urbanas, a nova promessa de modernidade, o capitalismo crescente e as atividades periódicas intensificadas, a publicidade ganha papel de destaque nas páginas dos jornais. A atividade publicitária foi se

modificando com o passar do tempo e os anúncios foram ganhando textos mais complexos, ganhando formas e imagens. A publicidade

conheceu inicialmente desenvolvimento lento no país de mercado iniciante. Limitada por volta de 1879 apenas ao anúncio classificado, sucinto e discreto, de natureza meramente informativa, beneficiou-se em seguida de recursos visuais que divulgavam produtos e prestavam serviços (MARTINS, DE LUCA, 2006, p.48).

Nos anúncios aqui estudados é possível perceber uma transformação em curso. Se num primeiro momento, ainda no século XIX, os anúncios eram objetivos e sintéticos, trazendo em seu texto apenas a informação necessária tão comum às demandas de serviço (por exemplo: Precisa-se de cozinheira; contrata-se garçom), a partir do início do século XX os textos publicitários passam a ganhar novos contornos e ficar mais complexos pois buscam vender um produto e incutir valores e normas de conduta social. Ser elegante, vestir as roupas da moda ou frequentar o espaços que representavam a vida elegante necessitavam de anúncios mais complexos. Assim, além das informações mais objetivas, utilizavam da subjetividade para construir seus textos e atrair mais clientes. Maria de Lourdes Eleutério (2013, p.84) destaca a relação entre cidade, publicidade e comércio no excerto abaixo

A imprensa tornava-se grande empresa, otimizada pela conjuntura favorável, que encontrou no periodismo o ensaio ideal para novas relações de mercado do setor. Logo, aquela imprensa periódica resultou em segmento polivalente, de influência na otimização dos demais, isto é, da lavoura, comércio, indústria e finanças, posto que as informações, a propaganda e publicidade nela estampadas influenciavam aqueles circuitos, dependentes do impresso em suas variadas formas. O jornal, a revista e o cartaz – veículos da palavra impressa – aliavam-se às melhorias dos transportes, ampliando os meios de comunicação e potencializando o consumo de toda ordem.

Uma cidade que vivencia a formação de uma nova camada burguesa, tem nos anúncios publicitários papel de destaque na promoção de novas formas de vida, hábitos, diversões e produtos, pois “Os anúncios iriam atender e estimular o consumo da classe média emergente e da elite, dispostas a folhear as páginas dos periódicos, ávidas por novos produtos trazidos pela industrialização e pela urbanização” (ELEUTÉRIO, 2013, p.94).

Para pensar os hábitos alimentares, o cotidiano e a vida comercial de São Paulo na década de 1920, além dos anúncios, as crônicas presentes na seção Coisas da Cidade apresentam fácil leitura do transitar no espaço urbano. Eleutério, ao analisar crônicas de Olavo Bilac define bem o papel das mesmas, entendendo que estas “permitem captar a nova inserção do transeunte naquele cenário, cristalizado em imagens nas páginas dos periódicos.”

(ELEUTÉRIO, 2013, p.91), o cronista estava, portanto “reproduzindo o cotidiano em mutação” (ELEUTÉRIO, 2013, p.95). O mesmo movimento acontece com a publicação de Coisas da Cidade, pois dá acesso a um passado que já não existe mais, mas está presente ainda nas páginas do jornal, e nos possibilita remontar um pouco do cotidiano da cidade de São Paulo por meio de seus textos. Com linguagem acessível e tom leve, as crônicas faziam parte de uma imprensa com público pouco leitor, que aos poucos, foi aproximando os indivíduos à imprensa periódica A linguagem coloquial e a temática da crônica vinham ao encontro da agilidade exigida pela imprensa de periodização intensificada – diária, semanal, quinzenal, mensal. Segundo o clássico ensaio de Antonio Candido, aquele texto privilegiava acontecimentos de durabilidade efêmera (ELEUTÉRIO, 2013, p.97).

A História feita por meio dos periódicos só é possível devido ao alargamento das ideias de documento, promovidas pela terceira geração dos Annales, nas décadas finais do século XX, que agenciou modificações atentando para novos temas, novos problemas e novos objetos para a historiografia, destacando-se o trabalho emblemático de Jacques Le Goff e Pierre Nora à frente da coleção Faire de L’histoire lançada em 197452. O aumento das possibilidades de documento diz respeito também ao dos temas de preocupação dos historiadores, “que incluíam o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes (...)” (DE LUCA; 2010, p. 113). É aí que se situam tanto a temática pensada para esta análise como os documentos aqui elencados.

Um ponto importante de destaque é pensar o início do século XX e o processo de modernização. Assim, é notável o entendimento de uma experiência de aceleração do tempo: num turbilhão de transformações (urbanas, políticas, sociais e culturais), num processo acelerado de modernizações vivenciado nas cidades, o tempo parece acelerar. Alguns autores se destacam neste debate, em especial Pierre Nora em Entre memória e História: A problemática dos lugares (1993) que destaca esta sensação de aceleração do tempo. Em O Retorno do Fato (1979) o mesmo autor relaciona este processo com o boom midiático experimentado no século XX. As transformações urbanas colocavam os cidadãos comuns em contato diário com a mudança. Eram edifícios subindo vertiginosamente, carros correndo pelas ruas, ruas e calçadas em obras: tudo parecia mudar e mudar rápido. Levando este debate para os jornais, que noticiavam dia a dia essas transformações, a aceleração do tempo se apresenta de forma ainda mais evidente: o que foi notícia em um dia já não é mais novidade no seguinte, fazendo da experiência urbana um sem-fim de novidades.

Assim, a relação entre cotidiano e cidade é, portanto, fundamental para ter acesso, por meio dos jornais, às experiências urbanas de homens e mulheres em meio a um processo de modernização. A imprensa periódica é um dos principais meios para se chegar às experiências cotidianas de homens e mulheres, especialmente a partir das escritas por vezes consideradas menores, como as crônicas e os anúncios.