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Documentos e calendários

No documento Martinho Lutero e Portugal (páginas 74-77)

Dialogues between Martin Luther and Damião de Góis or how the impressions of an encounter

D. Fr Agostinho de Jesus (OESA) and archaeology of the episcopal entrances in

2. Documentos e calendários

Relativamente à especificidade documental, são dois os relatos disponíveis sobre a mesma cerimónia, ao contrário de outras memórias de actos congéneres que costumam ser usados nessas análises. Tais textos encontram-se impressos, sobremaneira a partir da segunda década do século XVII9. Ambos os relatos bracarenses, embora de épocas

diferentes, são incluídos nas biografias do ilustre arcebispo D. Frei Agostinho de Jesus. Também este é um elemento invulgar que, contudo, evidencia alguma falta de neutrali- dade, ou possivelmente uma representação enfática dos eventos referenciados, reflexos das polémicas oriundas da Europa do Norte. Aliás, o documento mais antigo, datado do ano de 1592, é constituído por um texto manuscrito que se distingue também pelo facto de ter sido redigido em castelhano pelo cronista da ordem, Fr. Jerónimo Román10.

Confrade e colaborador muito próximo do neo-arcebispo D. Fr. Agostinho de Jesus, o prolífico autor foi também testemunha ocular da viagem desde a capital lisboeta até à cidade de Braga, assim como da entrada.

Do autor Fr. Jerónimo Román conhece-se também um documento sobre o Convento de Cristo em Tomar, onde é evocado o acontecimento protagonizado pelo arcebispo bracarense11. De facto, foi este o espaço litúrgico onde se consumou a cerimó-

nia de atribuição do pálio ao religioso agostiniano recém-consagrado arcebispo. Nesta análise pretende-se considerar, em particular, a pintura que decorava a charola deste Convento, realizada pelo pintor régio Jorge Afonso e intitulada Entrada de Cristo em

Jerusalém. Este tema bíblico, muito popular entre a época medieval e a moderna, era

veiculado através da cultura oral, visual, performativa12, e também as cerimónias de

entrada papal/episcopal encontraram um excelente modelo arquetípico nesse episódio da vida de Cristo13. O tópico bíblico era tão conhecido a todos os níveis da sociedade,

que foi usado também pelo teólogo alemão e seus colaboradores como arma visual de propaganda polémica contra o papado romano14. Na análise, baseando-nos em exem-

plos iconográficos variados, tentar-se-á considerar um conjunto de elementos simbó- licos visualizados nessas imagens de diferente origem cronológica, geográfica e suporte artístico. Uma incursão que visa descodificar atributos antigos e novos, códigos iconoló- gicos representados naquela cena ritual, objecto de representação do sagrado e veículo de ideias, crenças, comportamentos. A narrativa dessa imagem litúrgica retomava as

9 Paiva 2016, 111-136.

10 Biblioteca Nacional de Portugal [BNP], Códice 603 – La metropoli de Braga compuesto por Fray Hieronymo

Romano, 1592, f. 192v, 194 r.

11 Costa 2008.

12 Reau 2008, 412-416.

13 Visceglia 2002, 64; Paiva 2006, 153-154. 14 Scribner 2000, 148-189.

sagradas escrituras, a figura do fundador da religião cristã (Corpus Christi), os após- tolos e um complexo sistema de valores teológico-sacrais-religiosos que, na época da imprensa e da polémica do culto das imagens sagradas, foram reconsiderados quer por parte dos reformadores protestantes, quer por parte da Igreja romana e suas estruturas diocesanas. Este processo teve consequência também na encenação do ritual de entrada e na amplificação ou simplificação de gestos, na representação das hierarquias sociais ou topológicas, nos comportamentos, nos códigos cromáticos, etc.

Relativamente ao outro relato da viagem e da entrada do arcebispo de Braga, tra- ta-se de um documento editado em 1635 por D. Rodrigo da Cunha, exímio sucessor na cátedra metropolita entre 1627 e 1635, e autor de eruditas obras de história eclesiástica ou diocesana. Ao contrário do teólogo espanhol coevo à cerimónia, o erudito canonista português parece ter utilizado relatos diferentes para descrever esse solene episódio da história da Igreja bracarense e dos seus varões15.

Para além dos aspectos documentais, a cronologia do evento é outro ponto impor- tante da cerimónia, encenada em Março de 1589, grosso modo na década anterior à edi- ção do Caeremoniale episcoporum. Este texto em latim foi editado em 1600 por iniciativa pontifícia, com o objectivo de uniformizar no orbe católico essa e outras cerimónias protagonizadas pelos bispos. O tratado, juntamente com os textos eruditos em português de Lucas de Andrade, de 1671, contribuiu grandemente para o processo de domestica- ção e de uniformização das solenes entradas entre meados do século XVII e o seguinte, sobremaneira em Portugal e seus espaços de ultramar.

É possível acrescentar outro elemento cronológico: a viagem e as cerimónias que se seguiram nos distintos territórios atravessados pela comitiva episcopal inserem-se nou- tra conjuntura institucional e editorial importante, promovida pela Igreja de Roma16.

De facto, a jornada e os momentos de festa comunitários foram consumados após o ano de 1588, quer dizer, a seguir à instituição, pelo papa Xisto V, da Congregação dos Ritos e Cerimónias. Tais eventos, aliás, seguiram também a edição de livros litúrgicos e das festividades solenes como o Breviário Romano de 1568, o Missal Romano de 1570, o

Martyrologio Romano de 1584. Estes textos, para além de reconstruírem o sistema ceri-

monial, pretendiam recuperar o passado cristão e a rigorosa cronologia dos seus santos, visando contrastar as críticas protestantes sobre o rito eucarístico com a invocação e o culto dos santos e das relíquias. Correspondendo às indicações romanas, essas obras litúrgicas encontraram uma pronta aplicação e tradução em Portugal. Por exemplo, em 1571, por mandato do bispo de Coimbra, foram editadas as Regras geraes e ordem de

celebrar as missas conforme o Missal Romano de Pio V.

Outro elemento cronológico é interessante destacar: a viagem e a cerimónia da entrada consumaram-se também a seguir à aplicação do calendário gregoriano de 1582.

15 Cunha 1635, 405-406. 16 Visceglia 2002, 100-103.

Esta iniciativa pontifícia, fixada sob o governo do papa Gregório XIII, pretendia regu- lamentar o tempo das festividades móveis como a Páscoa e, conforme outras iniciativas romanas, foi prontamente aplicada na península ibérica17. De facto, ao contrário do que

aconteceu nos países protestantes, onde essa dinâmica religiosa só foi aceite no século XVIII, textos como o Calendario romano perpetuo (1588), dirigido ao arcebispo de Lisboa, são exemplificativos desse processo de regulamentação do calendário litúrgico e das preces do ofício divino, do santoral aprovado pela igreja de Roma. Livros de fácil manuseamento, como o Calendario romano, contribuem para fornecer indícios úteis para os fiéis se orientarem num quotidiano ritmado pelas regras das orações e das cele- brações em louvor de Deus e dos santos reconhecidos pela Igreja de Roma. Aliás, essa obra foi editada na capital portuguesa sob o patrocínio do arcebispo de Lisboa, membro da “antígua prosápia dos Castros”, conforme disse o autor desse livrinho, o franciscano Fr. Joam Baptista Feio18.

A interferência do nobre prelado lisboeta não se limitou à edição e patrocínio deste livro: o arcebispo D. Miguel de Castro foi também a autoridade que, em 1589, sagrou o congénere de Braga, D. Fr. Agostinho de Jesus/ Pedro de Castro, na igreja principal da ordem dos agostinhos, o Convento de Nossa Senhora da Graça19. Conforme um padrão

estudado20, a cerimónia confirmava e legitimava o poder sacral do bispo e foi celebrada

no início de Janeiro, nos dias que antecipavam a festividade da Epifania. Contudo, o caso considerado remetia à consagração de um eclesiástico com o estatuto superior de arcebispo; portanto, somente outro ritual de passagem, como a cerimónia da recepção do pálio21, permitia ao prelado eleito gozar plenamente dos seus poderes jurisdicionais,

antes da entrada no seu amplo território diocesano. Como veremos, quer a data da ceri- mónia da recepção da vestimenta apostólica, quer a igreja onde celebrar o rito solene, constituem coordenadas cronológico-espaciais densas de significados políticos, sociais e religiosos. Constituem elementos simbólicos decisivos da encenação da cerimónia, da posição institucional do arcebispo recém-eleito perante outros poderes, mas também em forte contraste com as polémicas geradas por Lutero e pelos outros reformadores que desvalorizavam as hierarquias da Igreja de Roma, assim como um complexo sistema de valores religiosos e práticas quotidianas. De facto, a viagem em direcção a Braga e a entrada do arcebispo D. Agostinho de Jesus foram consumadas na altura do ano litúrgico correspondente à Quaresma de 1589, entre os dias 18 de Fevereiro e 8 de Março. Porém, a cerimónia pública na cidade metropolita não coincidiu com um domingo, conforme o simbólico dia da semana escolhido para celebrar estas liturgias22. Consagrado ao Senhor,

17 Gouveia 2000, 317-322.

18 Calendario romano perpetuo, Epistola dedicatoria.

19 Cunha 1635, 404. 20 Paiva 2006, 101-105. 21 Ibidem, 104.

esse dia remetia também para a Dominica in Palmis, a festividade da Entrada de Cristo em Jerusalém, a qual representava o arquétipo bíblico da cerimónia pontifícia/episcopal. No caso considerado, a falta de coincidência com o dia escolhido para celebrar a entrada não corresponde a uma anomalia qualquer, analogamente com o que aconte- cia noutros eventos e rituais de agregação romanos cuidadosamente organizados23.

Conforme se tentará reconstruir, o desvio à regra do sétimo dia da semana para soleni- zar e carregar simbolicamente a liturgia episcopal, revela, talvez, a importância de outro dia do calendário religioso, à volta do qual gravita quer a viagem cerimonial, quer a sua organização pausada. Para além de significados meramente político-espaciais, a para- gem ocorreu num dia com um vívido significado para as hierarquias pontifícias, e que foi revigorado para responder aos ataques dos reformadores da Europa do Norte.

No documento Martinho Lutero e Portugal (páginas 74-77)