• Nenhum resultado encontrado

Tensions and Feelings in European Conscience from 1532 to

No documento Martinho Lutero e Portugal (páginas 105-125)

De São Bernardo de Claraval (séc. XII) a São Tomás de Aquino (séc. XIII), encontram- -se posições diferenciadas sobre a divulgação da fé – entre a persuasão e a imposição – e  sobre a liberdade de consciência, assim como sobre o dever moral do indivíduo de viver a sua verdade e o da Igreja de anunciar e defender o dogma. Exigirá o Papa no século XIV maior colaboração entre a Inquisição e as estruturas eclesiásticas, sobretudo os bispos, cabendo à primeira o exame da ortodoxia da causa por ela julgada e diferindo das sanções penais do poder temporal.

Mas desde a França medieval que se revela patente a colaboração entre reis e Inquisição na forma de se desembaraçar de opositores incómodos, do mesmo modo que o poder real procura assimilar a Inquisição a uma jurisdição real (Toulouse 1331) ou subordinar o tribunal ao Parlamento (Dauphiné/Parlement de Grenoble).

Trata-se de uma tensão que difere nos Estados ibéricos, onde a Inquisição, esta- belecida em Espanha em 1478 e em Portugal em 1536, constitui um tribunal misto e subordinado à autoridade do rei1.

Impõe-se, a quem investiga, fazer comparações contextuais, questionar sobre simi- litudes e contrastes de problemas e de respostas práticas, num processo de esclareci- mento de particularidades identitárias.

* Centro de História da Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. E-mails: cruz- maria@campus.ul.pt; ml.garciacruz@gmail.com.

Estados como o Império alemão, a Inglaterra e a França, além dos Estados ibéricos, estes com alterações antecipadas e de natureza um tanto diferente, serão varridos no século XVI por movimentações sociais e clivagens religiosas e políticas que se reper- cutem internamente, assim como além-fronteiras, configurando uma Europa de facto dividida, expressão aliás utilizada por Elliott na sua obra sobre o período2.

Se as tensões internas no Império alemão e em França justificam o seu afastamento das reuniões e decisões do Concílio de Trento (subjacentes às suas diferentes etapas de 1545-1549, 1551-1552, 1562-1563), ao procurarem compromissos para uma concilia- ção dos súbditos que não poderiam ser bem vistas pelo Sumo Pontífice, tais tensões em regiões do Noroeste e do Norte da Europa tomarão por vezes um protagonismo extraor- dinário em conflitos armados no último quartel do século XVI e ao longo do século XVII. Na verdade, a ruptura luterana, que ganha dimensão peculiar primeiro no Império alemão, virá rapidamente a internacionalizar-se em conflitos que contam com o apoio de diferentes poderes ou autoridades civis.

A reivindicação dos príncipes alemães no que respeita à administração das igrejas dos seus territórios, se remonta a tempos anteriores à Reforma, visível em concordatas ainda no século XV com o Papado, decorre de particularismos de um vasto espaço nominal- mente subordinado ao Imperador mas, de facto, compósito, preenchido por vários poderes com graus diferentes de autonomia3. De salientar, todavia, que, comparativamente com

acordos da Igreja universal com Estados nacionais, se trata de um fenómeno tardio. Seja como for, o processo em causa acaba por desenvolver fenómenos de territo- rialidade política no Império alemão, a que se junta, de forma adjuvante, a definição religiosa, definição esta que decorre da chefia secular. Numa evolução que se agudiza nos inícios da década de 1530 com a formação da Liga armada de Smalkalde contra o Imperador católico, a Paz de Augsburgo de 1555 não será, contudo, o término do pro- cesso de reconhecimento de diferentes crenças (a católica e a luterana), mas revelar- -se-á, como já o afirmámos noutro estudo, “uma etapa provisória de uma luta fratricida e extrafronteiras, que, alimentada por novos movimentos e interpretações doutrinárias – particularmente o calvinismo –, justificará políticas e guerras que só se solucionarão, pelo menos em parte, nos tratados de Vestefália de 1648”4.

Nestes acordos internacionais, onde aliás se evidenciam conceitos recuperados do alargamento dos princípios do direito natural, estabelecendo-se regras de convivência entre Estados sem a intervenção e arbítrio do Papa como entidade supranacional, obter- -se-á um equilíbrio de forças na Europa face a uma Espanha católica e hegemónica e, além

2 Elton 1982; Elliott 1985.

3 Barraclough 1972. A renovação da autoridade eclesial em terras alemãs luteranas parece, assim, ter sido sentida como menos revolucionária do que posteriormente se julgou, fosse pela capacidade de controlo já existente por autoridades civis, fosse pelo carácter mais administrativo que teria a própria autoridade episcopal. Ver Chadwick 1990.

disso, significativas mudanças no Império alemão pelo reconhecimento de um alargado corpo de eleitores e a emergência de Estados como a Suíça e a República das Províncias Unidas dos Países Baixos, assim como o engrandecimento da França e da Suécia.

Se na década de 60 de Quinhentos o Concílio de Trento marcara, além de reformas disciplinares e de renovação espiritual, embora reafirmando o dogma católico5, uma fun-

ção específica para a instituição ao afirmar a sua independência em relação aos poderes seculares, agora afastava-se o Papado das negociações internacionais, propositadamente, e prescindia-se definitivamente do arbítrio pontifício supranacional.

Recorde-se a este propósito como na propaganda pré-reformista e na protestante o Papa era alvo de fortes ataques pelo seu poder efectivo ou pretendido do ponto de vista político. O Sumo Pontífice defendera até aos alvores da época moderna a plenitude do seu poder transmitido por Cristo, como entidade acima dos reis, cujo poder por ele se instituía, considerando-se ainda, com base em falso documento, portador das insígnias imperiais doadas pelo imperador Constantino, circunstância esta aliás estudada e con- testada pelo humanista Lorenzo Valla (1440). Na gravura da série da Dança Macabra dos anos 1520, note-se o sarcasmo de Hans Holbein o Moço (Fig. 1) ao submeter o Imperador a uma suposta investidura de poderes por parte do Papa. O mundo rola por terra enquanto a morte e os diabos voltejam em torno das personagens.

1 Hans Holbein o

Moço, Dança Macabra (1523 e 1526), o Papa.

5 As disposições pós-Trento, se impulsionam mais ainda a reforma da Igreja, não evitam, contudo, que se dis- tingam tendências elitistas de religião pregada de manifestações de religião vivida, com reflexos em programas iconográficos. A liturgia católica manifesta-se, aliás, ligada através da pregação (incluindo sermões e literatura mística) à utilidade da imagem religiosa, sendo a manifestação artística esclarecida e determinada por condi- cionantes sociais. Ver como exemplo Monterroso Montero 2000, 225-257.

Mas o luteranismo terá uma ampla divulgação também nos Países Baixos, que, dadas as suas características socioeconómicas e singularidades políticas, se revelam uma área privilegiada de trocas materiais assim como de contactos intelectuais. Nesta área cedo se desenvolvem correntes de inovação espiritual que se evidenciam no misticismo de certos meios, no amplo movimento da devoção moderna, em círculos de humanistas e nas universidades. Erasmo de Roterdão admitia já em 1533 a urgência de muitas refor- mas da Igreja preconizadas por Lutero, sem contudo prescindir do dogma e da obediên- cia aos cânones católicos.

Logo a partir de 1542, também nos Países Baixos se divulga o calvinismo numa influência que se revela no dinamismo de forças sociais como a nobreza do interior ou em actos populares de invasão e destruição de imagens em igrejas católicas.

Note-se, contudo, que, muito além de simples exaltação religiosa, a revolta geral de 1566, que eclodirá contra Filipe II de Espanha, será um movimento que envolve católi- cos e protestantes contra uma política acentuadamente castelhana e católica do rei e da regência por familiares próximos, agregando tensões motivadas pela ameaça e desres- peito de particularismos políticos acordados e mantidos desde os governantes borgo- nheses face à coroa francesa e pelos Habsburgos, incluindo o imperador Carlos V, na defesa de uma herança familiar.

Liberdades violadas e razões económicas, mais do que uma manifestação de cisão religiosa, conduzirão, aliás, a manifestações políticas de intenso simbolismo como a pro- cissão e o festim de supostos mendigos pelos nobres da terra (Fig. 2) numa afirmação carnavalesca contra Filipe de Espanha6, ou o uso pelos revoltosos de divisas, particu-

larmente no mar, como a do pendente em forma de crescente e com a legenda “Antes Turcos que Papistas” (Fig. 3).

Na verdade, em poucas décadas agudizar-se-ão as tensões, com cisões políticas e territoriais, migrações e também uma radicalização confessional, definindo-se pelas províncias do Norte a abjuração do rei-tirano em 1580, a escolha de um novo governante e o início de um processo de independência que só terminará em 1648 com o reconhe- cimento internacional. De facto, o movimento nacional irá reforçar-se com a expansão paulatina do calvinismo e com alianças externas. Estas visam combater a hegemonia espanhola e, no primeiro quartel do século XVII, a ameaça da transformação do próprio Império, até então electivo e federal, numa monarquia centralizada também Habsburgo.

Note-se que já será no contexto desta nova profissão de fé, calvinista, que se irá debater, no âmbito das comunidades e dos seus representantes em órgãos políticos, as relações entre o poder civil e a directriz religiosa, revelando-se continuamente uma antinomia de projectos que, não desvinculados de apoios externos, uma vez mais, nem alcançando soluções sempre pacíficas, prevalecerá no século XVII.

2 Revolta nos Países Baixos, emblema dos Gueux.

Emblema dos Gueux durante a revolta nos Países Baixos. [Consultado em 30/09/2017]. Disponível em https://fr.wikipedia.org/wiki/R%C3%A9volte_des_gueux#/media/File:Emblem_ of_the_Geuzen.jpg.

3 Revolta nos Países Baixos, pendente liver tvrcx dan pavs / antes turcos que papistas!

Pendente durante a revolta dos Países Baixos. [Consultado em 30/09/2017]. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/nl/collectie/NG-VG-1-407-A.

A problemática da definição dos dois poderes – Estado e Igreja – e a coordenação entre eles estarão sempre presentes, aliás, nos movimentos de reforma – seja no mundo católico, seja em singularidades protestantes. Em qualquer deles as premissas podem diferir, até ser opostas, levando à colisão de propostas antagónicas, pretendendo-se a imposição de uma norma absoluta, mas a solução encontrada radicará sempre na defini- ção de um Estado confessional na cena europeia.

Quer também isto dizer que as orientações específicas encontradas não trazem con- sigo nem a liberdade, nem, muitas vezes, a tolerância religiosa. Perseguições e condena- ções prosseguidas em vários Estados ou entidades políticas europeias conduzem à morte

ou ao exílio individual ou até familiar. Casos há, não raros, de fenómenos de migração, quantas vezes alargados a outros territórios continentais ou a áreas ultramarinas.

Enquanto nos Países Baixos, em França ou na Escócia a Reforma começa como movimento religioso que virá a ganhar conotações políticas, na Dinamarca e na Suécia ela será antes uma revolução política com consequências religiosas, revelando, por outro lado, na Inglaterra características únicas7.

De facto, um processo distinto de afirmação plena do Estado sobre a Igreja inicia-se em Inglaterra no século XVI, pela mesma época em que no Império alemão se constitui a Liga de Smalkalde, liga armada protestante contra o imperador e príncipes católicos, que desenvolveu uma luta de definição da fé e do decorrente controlo da Igreja e da comunidade cristã do respectivo território.

Se o processo de reforma em Inglaterra culmina (ou arranca verdadeiramente) só ao tempo de Isabel I, com os actos de 1559 e a definição da profissão de fé dos 39 Artigos em 1563 mediante a qual se fixa a ortodoxia anglicana, ele tem início com Henrique VIII, “protector da Igreja inglesa” desde 1531 e que se tornará chefe de uma nova Igreja a par- tir de 1534.

Muitas e contrastantes vicissitudes políticas e sociais entre as duas épocas (Fig. 4), quantas vezes expressão da movimentação de minorias inconformadas e de tentativas de força por parte da própria autoridade suprema, irão marcar com desfechos sangrentos uma luta feroz contra o herético, seja este católico, anglicano ou presbiteriano (Fig. 5).

4 Iconoclastia protestante na Inglaterra isabelina.

Cobbett 1864, 12.

5 Devassas e prisões na Inglaterra isabelina.

Cobbett 1864, 127.

O processo consolida-se até Jaime I, cuja orientação erastiana provocará forte con- testação católica por parte de Francisco Suárez na sua Defensio fidei, onde caracteriza cada um dos poderes, o do Estado e o da Igreja, e legitima o poder indirecto do Papado. Na mesma obra, aliás, contesta ainda o radicalismo de Marsílio de Pádua, que, nos iní- cios do século XIV, defendera a soberania do Estado sobre os órgãos da Igreja, reflectin- do-se tais proposições em actos imperiais da sua época.

As alterações no protestantismo, do ponto de vista doutrinário mas também das práticas, não esquecendo a perspectiva política, terão constituído, segundo Alec Ryrie, um amadurecimento cultural. A cultura protestante, desenvolvida nas universidades e propagada na imprensa londrina, não terá, por outro lado, assumido grande diversidade local, exceptuando na Escócia, onde se efectuará uma ruptura8.

Na terceira década de Quinhentos abre Henrique VIII todo um percurso de afirma- ção do monarca, do ponto de vista político e doutrinal, angariando estrategicamente o apoio dos representantes das forças sociais em Parlamento. A secularização dos bens da Igreja católica e a sua venda garantem-no, numa actuação considerada por alguns his- toriadores de golpe de Estado e de maior poder absoluto do rei, mesmo em assembleia, quando afirma reorientações no plano da lei.

A sua soberania consagra-se no Acto de Supremacia de 1534, que, ao impor-se, não sem alguma resistência violentamente reprimida, identifica a heresia com crime de alta

8 Ryrie 2015. Do ponto de vista confessional, irá tornar-se ainda notória a divisão entre puritanos e conformistas. Sobre comportamentos e sensibilidades nas formas de piedade pública e privada e inclusivamente na pondera- ção do género, ver Ryrie 2015.

traição, daí derivando a condenação à morte. Em época de desconstrução da Igreja cató- lica e de projectos de conduta reformista, a adaptação e a flexibilidade terão constituído, naturalmente, respostas a uma mais fácil sobrevivência9.

Ora, é nesse mesmo ano de 1534 que em França, na sequência do “affaire des pla- cards”, com importantes reacções nos meios populares e oficiais, e da violenta repressão que se lhe segue, ocorrerá uma acentuada alteração da política régia e no âmbito desta, também aqui, a marcada configuração do herético como opositor político.

Anarquia ou confusão religiosa definiria o clima até então vivido10, se se pensar

como eram vistos e confundidos certos humanistas (do grupo ou cenáculo de Meaux, do humanismo evangélico, como Lefèvre d’Étaples, Farel ou Roussel), ideias de renovação em meios eruditos e em parte do alto clero, no círculo próximo do rei (Margarida de Angoulême, sua irmã), a par de críticas e crenças pouco sistemáticas provenientes então da arraia-miúda. Longe se estaria ainda das tensões religiosas de organização e unidade doutrinal. Artesãos, camponeses, membros do baixo clero, atraídos por uma ou outra ideia dos reformadores, distanciam-se ainda do rigor da teologia calvinista que animará o percurso de Farel ou de de Bèze alguns anos depois.

Lefèvre d’Étaples traduz o Novo Testamento em francês, sendo alvo das recrimina- ções da Faculdade de Teologia de Paris, a Sorbonne, em 1527. O bispo de Meaux, que o chamara, sofrerá um processo por suspeita de heresia, pelo Parlamento de Paris, e as traduções da Escritura serão interditas. Guillaume Farel, membro do mesmo cenáculo, lê e divulga os escritos de Lutero, que chegam a França em 1520, sendo traduzidos em 1524 e impressos em Paris, Alençon, Lyon e fora da França, mesmo depois de interditos como heréticos pela Sorbonne. Farel irá refugiar-se em Estrasburgo e depois na Suíça. A partir de 1530 a heresia provém da Suíça, introduzindo-se as ideias de Bucer e Zwinglio.

Note-se que os protestantes, luteranos até então, pertenceriam sobretudo a uma elite social de letrados, estudantes, clérigos, mestres-escola, impressores, artesãos têxteis (e de coro), embora não se possa desprezar o impacto dos pregadores nos meios popula- res. O luteranismo cedo irá influenciar círculos intelectuais de humanistas, com figuras bem próximas do rei.

Só posteriormente, portanto, e os de maior literacia, terão tido oportunidade de ler a edição francesa de 1542 das Instituições de Calvino11.

O monarca, por seu turno, obrigatoriamente católico pelas leis fundamentais da monarquia, governa auxiliado por instituições cuja acção se fundamenta num galica- nismo político definido desde o século XIV. Na centúria de Quinhentos irá reagir bru- talmente à infiltração de concepções confessionais diferentes que, uma vez mais, não se esgotam no campo social e religioso. Trarão com o tempo propostas políticas de

9 Jones 2002.

10 Febvre 1983; Monteiro 2007. 11 Lange 2013. 

obediência condicional, de direito à revolta, e inclusivamente de legitimidade do tirani- cídio ao considerarem a deposição violenta do rei que se revele herege.

De salientar que tais ideias serão extremadas nos campos opostos de católicos e calvinistas. Tal dualismo confessional irá, aliás, definir-se em conjunturas sucessivas, ora clandestinamente, ora em conflito aberto, através de uniões políticas e ligas armadas. Decorrerão de tais tensões uma violência endémica, guerras civis e verdadeiros massa- cres, que se prolongarão pela centúria seguinte com apoios internacionais e que terão por vezes repercussão intensa em áreas ultramarinas de intervenção europeia.

O “affaire des placards” constituirá, contudo, em 1534 um momento de viragem. Em Paris e em outras cidades, incluindo na residência da corte em Amboise e na porta do quarto do rei em Blois, assim como em Rouen, Tours e Orléans, são afixa- das proclamações anticatólicas num confronto inequivocamente dogmático, intituladas

Articles véritables sur les horribles, grands et importables abus de la messe papale, inventée directement contre la Sainte Cène de notre Seigneur, seul médiateur et seul Sauver Jésus- Christ (Fig. 6)12. Tais placards serão da autoria de um elemento pertencente ao grupo

de refugiados franceses na Suíça com Guillaume Farel, o pastor de Neuchâtel Antoine Marcourt.

6 Placard de 1534

Placard contre la messe papale. Antoine Marcourt, Neuchâtel, 1534. [Consultado em

30/09/2017]. Disponível em http:// classes.bnf.fr/livre/grand/040.htm.

Num ataque directo à fé do rei, que este considerará de confronto pessoal e crime de lesa-majestade, tais artigos antagonizam-se com a interpretação dada pela teologia cató- lica à eucaristia (transubstanciação), definindo os ritos da missa como fruto de feitiçaria e acusando o Papa, bispos, padres e monges de mentiras e blasfémias.

Como resposta, o monarca francês irá reafirmar publicamente a sua fé de forma violenta em Paris e nas províncias, com prisões e execuções pelo fogo, alcançando entre outros o impressor dos placards, Antoine Augereau, e amigos de Calvino, como Étienne de La Forge, rico mercador, e provocando o exílio de protestantes e seus simpatizantes. Os acontecimentos conduzirão, de facto, a violenta repressão e a massacres exemplares do herético enquanto opositor político.

Naturalmente, numa época em que a França na sua luta com o imperador Carlos V procura maior proximidade com os príncipes protestantes alemães (incluindo o envio de um embaixador à Alemanha e à Suíça), tal reacção régia trará repercussões negativas. Será na identificação dos condenados como opositores políticos que ela se irá funda- mentar, definindo-os como revolucionários anabaptistas e o “affaire des placards” como ameaça à autoridade régia e ao reino, entidades que urgia preservar da heresia.

É notável o envolvimento pessoal do rei, que participa aliás em manifestações públi- cas, como a procissão de expiação realizada em Janeiro de 1535 e anunciada em todas as paróquias, em que seis heréticos foram queimados. A repressão aumenta e novas tensões se conhecem anos depois.

A conotação política acentua-se. As condenações de heréticos do protestantismo eram desde 1521 da iniciativa da Sorbonne (Faculdade de Teologia), das autoridades eclesiásticas e do Parlamento, implicando penas pecuniárias, prisões e até, no caso de homens da Igreja, a prisão perpétua e a morte pelo fogo. Saliente-se, contudo, a pas- sagem dos assuntos de heresia da Igreja e da Inquisição – que por imposição papal do século XIV eram forçosamente colaborativas, sendo a última alvo de assimilação à juris-

No documento Martinho Lutero e Portugal (páginas 105-125)