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Documentos e monumentos linguísticos

2.1 MEMÓRIA, DOCUMENTO E MONUMENTO

2.1.1 Documentos e monumentos linguísticos

A partir dessa reflexão sobre a definição do documento, isto é, da forma de conceber o documento como agente na pesquisa acerca da memória, Paul Zumthor (1960) faz a distinção entre documentos como ―monumentos linguísticos‖ ou ―simples documentos‖έ Enquanto uns pretendem ser referências de edificação de um valor moral ou ideológico, outros pretendem apenas fazer parte da intercomunicação entre os sujeitos. O que invoca uma dualidade linguística entre certos textos que fazem ocorrer a comunicação humana, prestam-se ao fazer linguageiro de interlocução entre os sujeitos da linguagem, como é o caso dos documentos simples; e textos que são elaborados para fazer sentido ao passo que também significam. Eles próprios já são significantes, não são meros textos, documentos simples, e sim, monumentos linguísticos, marcos discursivo-textuais.

Apesar da relevância dessa diferenciação dos documentos para os estudos da memória, Zumthor (1960) não chegou a refletir acerca da construção/ampliação de certos documentos, antes simples, mas que com o tempo tornam-se monumentos linguísticos, pela força de ideologias construtoras de objetos e de histórias. É, também, o que pretendemos ampliar em nossa pesquisa.

Poderíamos, assim, considerar que uma carta, um simples documento, que tem como estrutura a interlocução entre um destinador e um destinatário, em Zumthor (1960) é posto como mensagem desencadeadora de subjetividades: sentimentos. Ela pode, então, tornar-se um objeto de sentidos, um desencadeador de sentimentos (angústias, medos, alegrias, confortos, etc.). Pode ser a lembrança de uma separação, chantagem, amizade etc., que com o tempo passou a representar algo significativo para um indivíduo ou sociedade. Assim, também, um convite de casamento, encontrado entre coisas antigas, transforma-se num signo motivador, que para o sujeito que o toma em suas mãos (sujeito divorciado ou viúvo) representa muito, por ser desencadeador de lembranças, impondo um recordar-se daquilo que ―incomoda‖, por ser durável: uma memória de perda que custa muito para tornar-se esquecimento.

Vemos, com isso, como certos objetos tornam-se monumentos por vencerem a guerra contra o esquecimento, tornam-se ―sólidos‖ (signos marcados) objetos que resistem à ação do tempo, por representarem algo de grande relevância para os sujeitos evolvidos com eles. Percebemos que, enquanto certos documentos vêm à tona para ser monumento e impor um valor, outros se tornam monumentos pela atribuição de valores dos sujeitos que apreciam tais

documentos, guardando-os ou escondendo-os, por temerem a ação de uma memória do descontentamento.

O tempo age, muitas vezes, contra ou a favor do documento, o que permite que possamos assistir a vitória de certos documentos, a derrota de outros, que talvez tenham nascido fortes, ―em berço de ouro‖, mas que não se mantiveram fortes como aqueles que vivem para nos fazer lembrar, que cobram de nós uma lembrança, um fio de memória, que mesmo incomodando não permitem que nos desfaçamos deles, pois eles fazem parte de nossas vidas, dão coerência à nossa existência como objetos de sentido e de memória. Há textos/documentos/escrituras que se tornam, significativamente, monumentos linguísticos, mas só o tempo apontará para aquele que é ou não um monumento, um objeto de memória.

A Bíblia, por exemplo, antes de ter a configuração que conhecemos já foi folhetos, folhas volantes, e pela importância que foi dada a cada um dos discursos que inspiravam, levou a uma coleta e uma organização, passando a ser considerada como ―Escrituras Sagradas‖, um todo significativo que foi tornando-se cada vez mais importante com o passar dos tempos e pela ideologia que pretende significar no cristianismo. A Torá e o Alcorão seguem a mesma linha de significação, de valorização do documento, são monumentos linguísticos, documentos de uma memória sagrada que impõe importância aos sentidos ideológicos neles contidos e continuamente negociados.

Chegamos aqui a um ponto importante. O que leva um determinado documento a possuir certas atribuições de valor, de significação, comparado a outros? Acreditamos que seja um ponto de vista de identidade do leitor tanto coletivo quanto individual. Dessa forma, alguns textos serão monumentos linguísticos para um conjunto de indivíduos que se aproximam ideologicamente, identificam-se com o objeto lido, a partir de uma memória coletiva. É o caso dos monumentos linguísticos citados anteriormente: a Bíblia, a Torá e o Alcorão. Já outros documentos, tais como as cartas, convites, lp´s, livros, etc., quando evoluem de simples documentos de informação ou entretenimento para monumentos linguísticos é pelo fato de terem atingido uma subjetividade discursiva que atribui uma identidade individual (para o sujeito ou o grupo), por analogia a outros objetos discursivos que compõem o universo de linguagem humano e que são objetos de sentido, elementos de intersecção entre seus valores e os valores que os outros objetos negociam.

Tais documentos ganham importância significativa ao passo que são os responsáveis ou companheiros dos sujeitos envolvidos em certas práticas, em que tais objetos/documentos são solidários aos seus agentes nos lugares e nos tempos em que os sujeitos-agentes

desenvolvem as suas performances. Isto é, são importantes pela transformação que realizam entre os sujeitos, os discursos e os valores que eles empreendem simbolicamente em sociedade.

Dessa forma, e com o passar do tempo, eles se tornam estímulos para a memória, por prestarem serviços como agentes da memória, por fazerem lembrar, sensibilizando, emocionando, incomodando, alegrando ou mesmo angustiando, individualmente, cada sujeito ou cada grupo. Eles são importantes para os sujeitos envolvidos, devido ao fato de aproximar os indivíduos, de compor os grupos, fazendo sentido a um grande número de pessoas que se fortalecem, por exemplo, pela identificação com o objeto sagrada (a pedra que veio do céu, Pedra Negra de Meca, Islã); ou pela representação do sagrado e divino na Terra (a cruz12

cristã ou católica, referência ao sacrifício de Cristo pela humanidade).

Torna-se relevante acrescentar que, para Zumthor (19θ0, pέ 0θ), ―o escrito, o texto é mais frequentemente monumento do que documento‖, mas isso não anula o papel da oralidade na escritura ou da escritura oral, como monumento linguístico. Definitivamente, o próprio autor assinala que houve diversos ―monumentos ao nível de expressão vulgar e oral‖έ Para ele, o que fez da língua (enquanto sistema saussuriano) um monumento, foi o valor dedicado à gramaticalidade conferida ao documento, fazendo crer aos desavisados que a fala, o oral, não possuía uma gramaticalidade, pois como Chomsky (1998) deixou claro, em

Linguagem e mente, há uma gramática da escrita, assim como há uma gramática da fala, do

oral, sendo a primeira artificial e uma tentativa de substituição da segunda.

Assim sendo, há duas competências gramaticais da língua, uma escrita e outra falada, sendo que a primeira deriva da segunda. A gramaticalidade da língua escrita é uma tentativa de ―imitação‖ da competência gramatical que é própria dos seres, sendo inata ao homem e que resulta em sequências performáticas coerentes aos sujeitos-atores da linguagem: o locutor e o interlocutor. Além disso, um aspecto importante da fala é o seu poder de subjetividade linear, isto é, de ser específica a cada indivíduo sem deixar de ser coerente enquanto elemento de comunicação e interação sociais.

Outro aspecto importante, diz respeito à qualidade de improvisação da linguagem individual, da fala, no momento de interlocução entre sujeitos de um mesmo campo linguístico. Chomsky (1998) sugere que deve ser levada em consideração, pelo pesquisador

12 Por mais que alguns historiadores ou alguns cristãos protestantes sustentem que a morte de Cristo ocorreu em

uma estaca, e não em uma cruz, popularmente a cruz é a imagem-símbolo desse ocorrido da história sagrada, no imaginário da humanidade cristã.

da linguagem, a capacidade que tem os sujeitos de improvisarem as suas falas, enquanto usuários/interlocutores da linguagem, isto é, a capacidade criadora que tem os sujeitos de serem, ao mesmo tempo, criaturas (usuários) e criadores (inventores) da linguagem. Ele chama a atenção para dois pontos fundamentais acerca da linguagem. O primeiro é que cada frase dita ou ouvida é uma nova combinação de palavras, que aparece pela primeira vez na história do universo. Cremos que isso se dá porque quem pronuncia ou ouve uma palavra atua com boca e ouvidos distintos e em contextos que só se repetem de forma aproximada, por alusão a outra realização que é trazida à tona pela lembrança, mas que como lembrança é representação e não atuação da voz. Atuar é dar vida, trazer à tona uma vitalidade, o que é próprio da fala, da voz, que preenche de hálito (calor e umidade) o espaço dos sentidos humanos (ZUMTHOR, 1993), que dá sentido aos atos dos homens, isto é, suas ações e reações (BOURDIEU, 1994).

Scarpa (2000) pontua que mediante a GU (Gramática Universal) Chomsky vincula a linguagem aos mecanismos inatos da espécie humana, dando ensejo à ideia dos universais linguísticos. De acordo com essa visão, todo homem é equipado da gramaticalidade universal (GU), que o dota dos princípios universais pertencentes à faculdade da linguagem e de parâmetros não marcados que adquirem seu valor no contacto com a língua materna. Alguns desses parâmetros vêm sendo estudados, buscando observar se a língua aceita sujeito nulo ou preenchido, se o objeto é nulo ou preenchido etc.

Stenberg (2000) explica que, para Chomsky, o ritmo que as crianças adquirem e usam novas palavras, além da ―lógica gramatical‖ empreendida é, extraordinariamente, rápido para ser explicado apenas do ponto de vista da aprendizagem, o que indicaria uma pobreza de conclusão dos pesquisadores envolvidos com esse fenômeno. Coerente seria a hipótese que sugere que as crianças criam tipos diferentes de frases que nunca ouviram antes, mas que, com razão, não são meras imitações ou repetições de palavras. Outro ponto importante é que muitos dos ―erros‖ cometidos pelas crianças pequenas resultam do excesso de generalização das regras gramaticais lógicas, o que é chamado de superextensão, explicado como sendo quando um léxico utilizado pela criança se torna similar ao dos adultos.

Disso tudo, conclui-se que, na perspectiva chomskiana, aludida por Wood (1996, p. 1θ5), a capacidade de aquisição da linguagem funciona como um órgão mental, pois ―os sons de fala que estimulam os nervos auditivos são processados naturalmente de modo a revelar (a certa altura) as regras pelas quais aquela fala se estrutura‖έ O autor explica que, apesar das várias línguas serem aparentemente diferentes, quanto à sintaxe e a fonética, Chomsky está

convicto de que todas sigam certas propriedades universais, para cuja produção e aquisição desenvolveu-se evolutivamente num sistema congênito.

Mesmo nos apegando aos sentidos negociados por Chomsky (1998), há um aspecto em que discordamos. Cremos que uma língua não pode ser considerada como um mero mecanismo, uma máquina, com movimentos friamente calculados, que processa um repertório de respostas, em que o cérebro segue algum tipo de receita ou programa que permite construir um número infinito de frases (combinações), a partir de uma lista finita de palavras. O falante possui, sim, a capacidade criativa de moldar-se à linguagem e moldá-la, a partir de suas necessidades, de seus interesses. Ele apropria-se da língua, reproduzindo-a, ou mesmo negando-a, agindo de forma ―rebelde‖, de forma a atingir o seu ideal, se esse for o caso: agredir, causar estranhamento, reivindicar um lugar distinto do padrão social. Uma atuação perceptível mediante uma performance de estranhamento, de confronto entre ações e reações num campo de atuação que envolve os sujeitos, suas práticas e os valores que estão por trás delas. Ação que pode ser percebida como voluntária ou involuntária, dependendo do grau de envolvimento do sujeito na ideologia do grupo social.