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3 PELA PORTA ADENTRO: DEMOLINDO PAREDES E LIMITES

4 NA SALA DE ESTAR: DUAS ESCRITORAS DA MESMA ÉPOCA

4.3 DOIS OLHARES, MESMA ÉPOCA

Partindo da hipótese de que as duas escritoras tenham sido influenciadas pela atmosfera do Existencialismo, levantei vários temas recorrentes na produção de Elvira Foeppel e Rachel Jardim que, embora, às vezes, se apresentem diferenciadas pelo tratamento, se aproximam pelo discurso.

Tanto Elvira Foeppel quanto Rachel Jardim saíram de cidades do interior (Ilhéus e Juiz de Fora) em direção ao Rio de Janeiro por motivos diversos. Foeppel para trabalhar, pois, pela sua conduta, não encontrava mais espaço em sua cidade; Jardim com a família e logo depois quis ingressar no ensino superior, mas ambas já tinham a intenção de escrever.

Dentro desse desejo e dessa escolha as duas colaboraram em periódicos com contos, principalmente para a revista O Cruzeiro (um importante espaço para os novos escritores), embora as publicações tenham sido em períodos diferentes: Foeppel escreveu para a revista entre os anos 1948 e 1952, enquanto Jardim escreveu apenas no ano de 1946.

Ambas utilizaram-se da literatura como forma de protesto, recusando-se a se juntar a um grupo de escritores já renomados120. O que elas não tinham é conhecimento, talvez, de que também estavam formando um grupo, ainda que disperso e heterogêneo, porque uma não tinha conhecimento da outra, e é quase certo que muitas não se liam nem se comunicavam. Mas é difícil tomar tal dado como afirmativo, porque Nélida Piñon, que freqüentava o mesmo círculo, tenta aglutinar o grupo, realizando chás e festas. Provavelmente, elas tinham notícias das outras por trabalharem na mesma revista. Contudo, isto não quer dizer que elas formassem um grupo que tinha propósitos e regras próprias. Viviam nos espaços que eram dados ou percebidos pela maioria dos intelectuais masculinos.

120 Por depoimentos de alguns deles, na época da construção biográfica de Elvira Foeppel, percebe-se que tinham

preconceito sobre a mulher escritora e as desqualificavam dentro da área, entretanto as aceitavam no círculo por serem bonitas e possíveis amantes.

Pelo depoimento de Rachel Jardim, as duas escritoras nunca se encontraram, nunca se conheceram, mas entrecruzaram-se no mesmo desejo: realizar-se, enquanto escritoras, mesmo tendo como resultado o fato de terem de se acostumar ao apagar dos holofotes a cada passagem pela crítica, a cada livro publicado, a cada tempo passado.

Elvira Foeppel caracterizou-se por ter preferido uma linguagem com uma sintaxe mais complexa, deslocando palavras, utilizando constantes inversões e abusando de metáforas. Foeppel iniciou suas publicações no fim dos anos 40 na revista O Cruzeiro, e mesmo com uma contínua produção e publicação em outros periódicos, pára de escrever exatamente no período em Rachel Jardim reinicia.

A escrita de Jardim, pela interrupção, ficará marcada por uma estagnação no que diz respeito às discussões acerca das conquistas e da liberdade feministas. Vivendo em uma época de transição, o mal-estar, a posição da mulher, as relações (hipócritas) da sociedade já trazem incômodo para a literatura feminina, porém ela não chegará a identificar os anseios e questões da mulher dos anos 1960 a 1980. A discussão ou denúncia de um estado de coisas ficará sempre no patamar de metáforas, em situações sutis, de insinuações, que podem ser lidas pelas leitoras sem que chamem sua atenção.

A geração de transição (Rachel Jardim, as irmãs Lispector, Elvira Foeppel) se distinguirá da seguinte, a dos anos 1970 a 1980, porque esta discutirá, abertamente, em seus textos, a luta pela libertação da mulher dos paradigmas que imperam desde a era vitoriana no que diz respeito ao comportamento.

Nos textos da baiana Foeppel, suas personagens continuarão cerceadas, presas, acorrentadas, ainda controladas pelos valores morais pregados pela era vitoriana. O impacto de sua linguagem ou do emprego contínuo de personagens-mulheres em crise ou marginalizadas poderão ser causas da não circulação de seus livros, mas sendo, profissionalmente funcionária da Revista Súmula Trabalhista, tinha oportunidade de entrosar-

se com jornalistas, mas não diretamente com a cena intelectual. Talvez até carreasse maiores dificuldades, já que pouco circulava no meio, tirando, assim, a oportunidade de publicar com a ajuda de autores renomados que tinham acesso e apadrinhavam, nos anos 60, a entrada dos novos nas grandes editoras.

Diferentemente da situação de Elvira Foeppel, Rachel Jardim teve posição social e cultural que veio a favorecer sua inserção na cena intelectual, uma vez que participava do círculo de intelectuais provenientes de Minas Gerais, sua terra. Com o casamento, este círculo de amizades se dilata e quando inicia a publicar (após o divórcio) já era conhecida nos meios intelectuais mineiros e da capital do país. Por outro lado, sua produção, de tom memorialista, mas sem deixar de fazer emergir frustrações, anseios e desejos da mulher, seguia uma linhagem de escritoras brasileiras anteriores e não causava o impacto que a produção de Foeppel causou. Evidentemente que, com tais condições, teve mais sorte nas publicações, podendo ter mais visibilidade (com a venda de seus livros) com as críticas na mídia, portanto, foi mais lida.

Rachel Jardim utilizou-se não só de uma forma / gênero literário que já era aceito desde o final do século, mas também empregou uma linguagem simples, fato que se foi estratégia, deu certo e concorreu para a sua permanência por mais tempo em revistas de circulação e ainda a possibilidade de publicação em editoras de maior visibilidade. Não havia em sua produção inicial nenhuma marca de experimentação ou de contra-discurso.

Com o casamento, Rachel Jardim pára de escrever, retornando ao ofício nos anos 70, dentro da mesma linha que havia sido suspensa em 40, não tendo sido afetada pelas transformações que aconteceram com a sociedade e o contexto cultural da mulher, com as reivindicações do que se pode designar de “segunda onda” do movimento feminista.

Enquanto casada, Jardim não deixou de trabalhar, sendo funcionária pública ligada a círculos intelectuais, com facilidades para publicação em grandes editoras, as quais já tinham,

nos anos 70, sua estruturação formada para divulgação na mídia e outras formas de circulação dos produtos culturais nas principais livrarias.

Por outro lado, Elvira Foeppel sofreu vários percalços no que tange à permanência de seus livros em bibliotecas. Um exemplo que deve ser citado como fato é o que aconteceu com os exemplares de livros da escritora na Biblioteca Monteiro Lobato, na cidade do Salvador, Bahia. Mesmo depois de a equipe do projeto ter localizado seu romance, Muro frio, no fichário do acervo em 1999, dois anos após, quando assumi a pesquisa da autora e fui ao local indicado, uma funcionária confirmou, em conversa informal, que o livro não mais existia para manuseio porque estando, pelo tempo, em estado precário e nunca tendo sido consultado, fora jogado fora, sem, sequer, ser dirigido ao setor de restauração, pois, segundo ela, não havia “interesse para o patrimônio cultural do Estado guardá-lo”, isto quer dizer, gastar uma soma em dinheiro com sua recuperação visto que a folha de consultas e de empréstimos se encontrava limpa, ou seja, não havia interesse do público. Tal atitude não poderia ser tomada por uma funcionária ou bibliotecária, pois uma biblioteca deverá sempre ser o repositório da memória cultural de uma região, de uma nação. Mas tais atitudes extremas e equivocadas de funcionários devem ter levado ao lixo outros textos de autores e autoras “não renomados”.

Isto, para dar exemplo do descaso para com uma autora apenas. Quantas outras enfrentaram o mesmo problema? Talvez nem mesmo tivessem seus livros em alguma biblioteca para que se pudesse ler e pesquisar, nem mesmo se houvesse a oportunidade. Essas são situações externas à literatura que causam dano ao acervo cultural e / ou permanência de um autor / a ao longo do tempo.

A preservação dos textos de Rachel Jardim e a dificuldade de permanência de Elvira Foeppel podem estar na hipótese de que Jardim escreveu em 1970, momento muito próximo à emergência dos estudos feministas no Brasil.

Outra hipótese pode estar na própria abordagem da autora. Jardim focaliza fatos, paisagens sociais, através de formas e gêneros mais próximos do público leitor – memórias, crônicas e diários (sobre suas lembranças de Juiz de Fora), enquanto Foeppel emprega o hermetismo lingüístico e o contra-discurso, principalmente nos textos nos primeiros poemas publicados pelo jornal Diário da Tarde, ainda em Ilhéus.

A ficção de Foeppel (contos e romances) não é de fácil captação ou sedução para o leitor pela busca de um outro tom e um patamar mais interiorizado, tentando fixar sensações, nuances de sentimentos, narrativas, eminentemente, de atmosfera emocional do ser.

Assim, as publicações de Jardim a favoreceram no que diz respeito ao formato e aos conteúdos, bem como sua linguagem que está mais próxima de uma comunicação direta com o público, enquanto Elvira Foeppel, assumindo a experimentação de uma linguagem estética, se afasta do público leitor.

Tais experimentações interferem, inclusive, na estrutura frasal quando ela desloca palavras, abre ou conclui seu texto sem nenhuma explicação, criam atmosfera, como podemos perceber na metalinguagem incluída em suas narrativas:

A concepção moderna pode ser inspirada na realidade dos extremos. O que está perto demais, o que está distante, invisível, inapropriado, informe. Fico com as duas possibilidades vingando como jabuticabas, considerando a vida como um amador sem qualidades para profissional. Apaixonada pela vida sem dominá-la.121

A gramática, a ortografia, as regras, as pontuações desautorizam estas linhas de composição. É nesta medida que sou revolucionária de minha própria língua..122

Não consigo escrever o romance, sinto-me em ponto morto. Então, me vem a idéia de fazer disciplinadamente um diário.

Passar a vida para o papel é uma forma de ser fiel ao meu destino de escritora. Assim, começo esse diário123.

121 FOEPPEL, Elvira. Chão e poesia: memórias curtas. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1956. p.12. 122 Ibid., p.21.

Há outros elementos ou indícios que evidenciam ser as duas da mesma época, vivendo o mesmo contexto, podendo-se então fixá-las dentro do mesmo momento cultural maior – a aproximação do tema do mal-estar das personagens, embora em vertentes diferentes.

Foeppel toma, explicitamente, como base de seus produtos escritos a filosofia existencialista, uma vez que há um debate ou dilaceramento interior de suas personagens no sentido de buscar uma opção diante dos caminhos oferecidos pela vida – as personagens se vêem diante de tomadas de decisões, que irão influenciar o resto de suas existências, uma vez que estão em um momento crucial para se decidirem.

Em Rachel Jardim, as personagens percebem a fragmentação de suas vidas diante de seus olhos, sentem, também, o mal-estar, mas seguem as opções oferecidas pela sociedade sem questioná-las, não sendo trazida à tona a angústia de suas decisões, a autora descreve apenas a percepção de um incômodo.

Outra aproximação entre elas é que ambas eram mulheres intelectuais, e como tal, quase no limiar ou marginais aos papéis destinados à mulher de seus estratos sociais, ambos burgueses. Ao buscarem um espaço no ambiente público a falta de diálogo entre elas e a sociedade em que viviam, dicotomizada pelo que ordena (o código hegemônico do homem) e pelo que acata (a mulher), sendo que esses papéis, antes de ordem imutável, as tornaram vulneráveis.

5 MANTENDO-SE NA SALA: UMA LEITURA SOB A PERSPECTIVA DO