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Elvira Foeppel e Rachel Jardim pertencem, cronologicamente, ao mesmo período, dividiram ou se consumiram com os mesmos impasses, as mesmas preocupações com a “condição da mulher”, além de engendrar uma outra maneira de se expressar35, buscando um discurso baseado em uma linguagem semântica experimental na qual pudessem revelar (e não relatar, contar) mais intimamente suas angústias.

Ambas foram escritoras que, ao assumir como ideologia a atmosfera do Existencialismo de Sartre, arriscaram-se a ser mal compreendidas pelos leitores devido ao hermetismo da linguagem e da própria discussão temática.

Para perceber a dificuldade da crítica especializada em operar com essa temática e ainda mais na escrita feminina, basta verificar as análises mais verticais que aparecem nos jornais da época. Uma delas, que se preocupa em dar conta de um conjunto cronológico dos cinco séculos de literatura brasileira, julga o segundo livro de Elvira Foeppel da seguinte forma:

Em 1956, estreando com “CHÃO E POESIA”, Elvira Foeppel, baiana de Ilhéus já mostrava grandes qualidades de narradora. Era uma força nova, um toque inédito na paisagem do conto nacional. Seu livro marcou assim o nascimento de uma

35 Observamos na poesia de autoria feminina da mesma época, só na Bahia, outros nomes, com as mesmas

tendências, como Áurea Miranda, Jacinta Passos, Edite Mendes da Gama e Abreu e Selêneh Medeiros. Para maiores informações ver a antologia Retratos à margem: antologia de escritoras das Alagoas e Bahia (1900- 1950), organizado por Izabel Brandão e Ivia Alves, editado pela Universidade Federal de Alagoas, 2002.

escritora de primeira ordem, que lutava contra o “lugar comum” e trazia, em seus trabalhos um modo de dizer diferente, às vezes estranho, mas sempre pessoal. Voltando agora, com “CIRCULO DO MEDO”, reedita a jovem escritora, em larga escala, aquelas virtudes de quatro anos atrás. O tempo que ficou entre um e outro livro foi empregado por Elvira Foeppel em cortar certos exageros de estilo, certas gorduras. Veio mais disciplinada em seu segundo livro, mais medida.

Secando, ganhou força e vivacidade. Se em “CHÃO E POESIA”, era apenas uma narradora de jardins interiores, de estados de alma, neste “CIRCULO DO MEDO”, Elvira Foeppel entra pelo largo mundo da criação de personagens, para nos dar, de fato, duas ou três figuras quase de carne e osso, como, por exemplo, no conto: "Afinal, lá estava ela". Não seria exagero dizer que esse conto é dos melhores já escritos por mãos femininas nos últimos tempos e numa terra que tem Clarice Lispector e Raquel de Queiroz. Sim, há defeitos, principalmente uma certa indecisão que marca quase todos os personagens do “CIRCULO DO MEDO”. Mas, por outro lado, há qualidades que tornam o trabalho de Elvira Foeppel um dos mais sugestivos e interessantes do ano. E é bom notar que 1960 foi um ano que teve de tudo, desde Homero Homem, com um esplêndido livro de contos a Gilberto Amado memorialista e Clarice Lispector outra vez na Ficção. Um ano, cheio, servido por gente de talento e sensibilidade. Mesmo assim, “CIRCULO DO MEDO” não é parente pobre em mesa rica. Tem seu lugar de destaque, bem marcado36. (Grifo meu)

Com “Círculo do Medo” Elvira Foeppel nos apresenta um livro de contos de excelente categoria literária, mas que não obstante suas qualidades e talvez mesmo pela natureza e teor de suas qualidades, está fadado a encalhar nas livrarias. O fato é que estamos diante de um livro sem concessões ao leitor mediano, livro que inaugura uma linguagem extremamente pessoal e onde se encontram bloqueadas todas as pontes para uma comunicação fácil. Atitude que é na autora uma consciência, um propósito, haja vista o repúdio sistemático à linguagem cotidiana, porque como no seu personagem (o menino pescador) já lhe “doíam as palavras de ocasião”. E é nesse aspecto de composição verbal que repousa a nosso ver seu atributo fundamental, sua contribuição mais decisiva37. (Grifo meu)

O que quero demonstrar com a reprodução integral da crítica acima e através dos trechos sublinhados na análise, é que a crítica, mesmo tentando “avaliar” o livro positivamente, sutilmente, pela contradição de idéias, deixa aos leitores um “aviso” – está fadado a encalhar nas livrarias ou sim, há defeitos... –, o que não favorece a ampliação de um público leitor.

A crítica não percebeu que seus instrumentos teóricos não davam conta das diferentes perspectivas ressaltadas pela mulher escritora, e isto se deve ao fato de não entender ou não se

36 CARVALHO, José Cândido. A contista Elvira Foeppel. Revista Leitura, Rio de Janeiro, p.36, 1960. 37 CABRAL, Astrid. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1961. [s.p]

dar conta das mudanças nas práticas sociais, das transformações de costumes trazidos pela guerra e suas conseqüências no cotidiano, da presença do urbano na literatura e na cultura, e de que havia um novo tipo de estruturação do pensamento. Na realidade, os críticos insistiam em considerar apenas o caráter estético dentro de determinadas perspectivas, pouco se importando com a voz do discurso, o local, o momento e o contexto dessa fala.

Diante de tantos empecilhos e desqualificações, uma pergunta talvez fique no ar: por que, então, Elvira Foeppel e Rachel Jardim foram escolhidas para um estudo vertical de suas produções?

Exatamente porque seus nomes foram esquecidos pela crítica, mantenedora e legitimadora da perpetuação da considerada “alta cultura”, deixando um grande número de escritoras (es) excluídas (os) e sem estudos.

Meu objetivo será demonstrar o quanto a literatura brasileira vem perdendo ao esquivar-se (ou omitir-se) de estudar mais profundamente outras trilhas temáticas, como a introspecção; por outro lado, os textos de autoria feminina voltam a circular, voltam à cena, no momento em que se procede sua leitura empregando as ferramentas das teorias feministas das relações de gênero articuladas à análise do discurso.

Portanto, no próximo capítulo, mostrarei um pequeno painel da produção de autoria feminina na Europa, Estados Unidos e Brasil, resgatadas pelos estudos na Contemporaneidade. Embora em suas épocas muitas autoras citadas tenham conseguido publicar, elas foram silenciadas pela Modernidade voltando à cena após as pesquisas de resgate e verticalização da produção da escrita das mulheres.