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Capítulo 1 – A Unesco e a “harmonia racial na Bahia”

1.6 Domando evidências

São abundantes os trechos de Les élites... que obrigariam ou, no mínimo, facultariam ao autor e aos editores da obra cogitar estarem diante de uma forma perniciosa de racismo à baiana e/ou à brasileira, ao invés de, apressadamente, descartar tal indesejável malignidade, enquadrando todas as manifestações de preconceito racial encontradas em campo em uma tese já conhecida e repisada: a de que tudo que parecesse racismo estrutural na Bahia não passava, na verdade, de ecos ou sobrevivências moribundas do período escravista apenas recentemente superado; e que, logo, a consolidação de uma estrutura social capitalista que promovesse a miscigenação e a mobilidade social (apesar de com algum grau de preconceito racial, supostamente remanescente e residual), era parte da “solução praticável” baiana rumo à inexorável da superação da chamada questão da raça.

Essa tese era conhecida e hegemônica, ao menos nos meios intelectualizados, na Bahia e no Brasil no final dos anos 1940. Seu principal porta-voz era Donald Pierson, sociólogo norte-americano que publicara, em 1942, um livro intitulado Negroes in Brazil – que em português seria traduzido para Brancos e Pretos no Brasil: um estudo de

contacto racial, e seria publicado em 1945 – resultado de pesquisa de campo realizada

em Salvador entre 1935 e 1937. Primeiro estudo de caráter estritamente sociológico sobre o tema das relações raciais na Bahia, o estudo de Pierson consistia, em linhas gerais, numa tentativa de aplicação da teoria assimilacionista de seu orientador, o sociólogo norte- americano Robert Park. A tese central de Pierson pode ser resumida neste excerto:

o que encontramos na Bahia é uma sociedade multi-racial de classes. Não existe casta baseada em raça, existem apenas classes. Estas classes são ainda consideravelmente identificadas com a côr, é verdade; mas apesar disto, são classes e não castas. A tendência mais característica da ordem social brasileira tem sido a redução gradual, mas contínua, de tôdas as distinções culturais e raciais, e para a fusão biológica e cultural do africano e do europeu em uma raça e cultura comuns.108

Embora tivesse identificado manifestações de preconceito relacionado à cor da pele na Bahia, Pierson não as enxergou enquanto parte de uma possível forma de racismo estruturante, sequer como episódios que poderiam tender a persistir e/ou a agravar-se se não fossem diretamente combatidos, mas sempre enquanto uma espécie de subproduto da desigualdade em relação ao status, à condição material e à origem social – que ele

45 chamava de “classe” fundamentalmente para marcar a oposição à noção de “casta”, cujo extremo seria o regime de estratificação social vigente na Índia, do que para mobilizar efetivamente a dinâmica social marxista. Ademais, a despeito dos episódios de discriminação associados à cor da pele verificados em campo, subsistiria em Pierson sempre o quadro interpretativo da “tendência (...) à redução gradual, mas contínua, de todas as distinções culturais e raciais”109 na Bahia, cuja validade ele estendia para a maior parte do Brasil. A tese de Pierson se hegemonizara graças, em grande medida, aos esforços do próprio autor de divulgação e promoção de seu livro nos meios intelectuais na Bahia, no Brasil e nos Estados Unidos ao longo dos anos 1940, como discutirei no decorrer do próximo capítulo. Ademais, após o trabalho na Bahia, Pierson estabelecera- se em São Paulo, onde chefiava o curso de ciências sociais na Escola Livre de Sociologia e Política – que disputava a hegemonia do campo com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde atuavam Roger Bastide e Florestan Fernandes.

Para já, convém observar que o trabalho de Pierson fora tomado como referência desde o processo de definição das diretrizes das pesquisas da Unesco no Brasil, mencionado, como vimos, desde o anteprojeto da pesquisa na Bahia enviado a Métraux por Charles Wagley. O exame da documentação mostra clara influência da leitura de Pierson. Por exemplo, no item “Demografia” de um dos primeiros rascunhos do projeto de pesquisas da Unesco no Brasil, os subitens a serem observados no trabalho a ser realizado em Salvador correspondem, em grande medida, às questões que haviam interessado a Pierson, e mesmo a alguns dos capítulos de Negroes in Brazil: “1- Casamentos inter-raciais; 2- Mobilidade social de elementos de cor em comparação com a mobilidade sócio-econômica geral; 3 – distribuição ocupacional; 4 – Distribuição espacial de elementos de cor em áreas urbanas e rurais”110. Não seria por acaso, portanto, que as preocupações de pesquisa e mesmo a divisão dos capítulos do livro de Thales refletiriam tanto o anteprojeto de Wagley, para não falar da semelhança com a estrutura de capítulos do livro de Pierson.

109 Idem.

110 ““1 – Interracial marriages; 2 – Social economical mobility of the colored elements of the group as

compared to general social economical mobility; 3 – Ocupational distribution, according to race; 4 – Spatial distribution of colored elements in urban and rural areas.” (MÉTRAUX, Summary of Tentative Plan for Research on Inter-racial relations in the state of Bahia, Brazil, 1950)

46 Desenvolver, aqui, uma resenha ou comparação pormenorizada entre os livros de Pierson e Thales seria demasiado exaustivo ao leitor111. Selecionei, portanto, alguns exemplos ilustrativos acerca de três itens tratados pelos dois autores (casamentos inter- raciais, ocupações/profissões liberais e clubes baianos, nas décadas de 1930 e 1950, respectivamente) apenas para demonstrar que as evidências etnográficas permitiam a ambos, sobretudo a Thales, especular acerca da possibilidade de estar diante de um contexto cuja tendência, para o futuro, poderia ser de manutenção ou mesmo de recrudescimento da discriminação e das barreiras raciais, e não da pretendida harmonia.

A tese de Pierson para os casamentos na Bahia era de que estes ocorriam geralmente no interior das classes sociais, sendo raras as uniões “inter-classes”, de modo que “côr parece ser claramente um dos critérios de classe”112. A porosidade dessa regra geral aparece, em Pierson, nos casos excepcionais em que negros, através da distinção alcançada via mecanismos individuais de ascensão social (sendo a educação o principal deles), conseguiam escapar da identificação pela cor e ser aceitos em círculos sociais elitizados.

Quando a côr preta deixa de identificar o indivíduo como membro da classe 'inferior', a oposição tende a diminuir. Quase não existe oposição ao casamento com mestiços claros, mesmo na classe 'alta', especialmente se não apresentam nos traços fisionômicos, ou na côr, sinais muito evidentes de origem africana.113

Subjacente ao argumento de que não existia na Bahia uma barreira de raça ou cor intransponível (cuja prova última seria a legislação segregacionista, inexistente no Brasil, mas que então vigorava em boa parte dos Estados Unidos), é possível notar em Pierson a expectativa da miscigenação embranquecedora como uma espécie de silencioso catalisador da ascensão social de quem não fosse considerado branco na Bahia.

Thales, ao longo do capítulo que dedica ao mesmo assunto, apresenta exemplos que evidenciam que a resistência ao casamento aumenta quanto mais escura for a pele da pessoa em questão, independentemente da classe: “O casamento de homem claro com mulher escura, sobretudo quando esta é muito mais pigmentada, sofre oposição forte em todas as camadas.”114 Identifica também sobrevivências do racismo científico entre os

111 Os artigos “Donald Pierson: entre Chicago e Salvador”, de Marcos Chor Maio e Thiago Lopes (2017),

e “As Elites de Cor: Thales de Azevedo e o Projeto UNESCO de Relações Raciais no Brasil”, de Marcos Chor Maio (2017), trazem boas e úteis sumarizações daqueles dois trabalhos, com relevantes informações biográficas e contextuais.

112 PIERSON, 1971, p. 205. 113 Idem, p. 206.

47 brancos baianos, que “justificam a sua oposição ao casamento com prêtos, além das ideologias relativas à inferioridade mental e moral do negro, com a repulsa ‘instintiva’ por certas características orgânicas dos africanos e seus descendentes”, como o “odor corporal”115. E relata, numa nota de rodapé ao final desse capítulo, um dado bizarro, que, embora escape ao tema dos casamentos, é significativo: em transfusões de sangue na Bahia, “muitas vezes os pacientes brancos ou suas famílias preferiam doadores também brancos, mostrando-se constrangidos quando o doador era um mulato ou preto.”116 Como já pude demonstrar, bem antes de escrever Les élites..., Thales tinha clara consciência de que traços fenotípicos atribuídos aos negros não favoreciam a ascensão social de quem os tivesse, a despeito das vias da educação e do casamento.

No âmbito da vida profissional baiana, Pierson reafirma a existência de uma

ordem social de livre competição, na qual os indivíduos pleiteavam posição baseada principalmente em realizações pessoais e favoráveis condições de família. (...) Entretanto, a parte mais escura da população teve de lutar com as sérias desvantagens de terem começado "de baixo", como escravos da classe branca dominante, sem instrução e outros recursos para ascenderem, e de exibirem sempre, em virtude da côr e de outros característicos físicos, as marcas indeléveis desta ascendência africana, símbolos indestrutíveis de status inferior.117

O pesquisador norte-americano não se surpreende, como se vê, com a distribuição hierarquizada dos postos de trabalho em que os negros se concentravam “nos empregos de baixo status e pequeno salário”; afinal, em sua interpretação prepondera o argumento de que “o período de tempo desde a escravidão ainda era relativamente curto”118.

Thales constrói um quadro semelhante ao proposto por Pierson, ao afirmar que “mesmo nas mais prestigiosas dessas profissões, pessoas de todos os tipos podem fazer carreira e conseguir clientela, particularmente os médicos e os advogados”119. Entretanto, a seguir, Thales reproduz estatísticas das associações profissionais de quatro categorias “prestigiosas”, dando conta de que, entre os advogados, apenas 30% eram mestiços e 1,1% pretos, sendo a grande maioria restante brancos. Entre os engenheiros civis, nova maioria de brancos: apenas 26,8% mestiços e 0,3% pretos. Entre os médicos, somente 16,9% de mestiços e 2% de pretos; números parecidos aos do grupo dos farmacêuticos, onde mestiços eram apenas 14,4%, e pretos, 3,6%. Contudo, o fato de as pessoas “de cor” serem sempre minoria – e dentre elas as de pele mais escura (“pretas”) uma parcela

115 Ibidem. 116 Idem, p. 90. 117 PIERSON, 1971, p. 226. 118 Ibidem. 119 AZEVEDO, 1955, p. 156.

48 percentualmente diminuta – tende a ser providencialmente enquadrado por Thales na tese de Pierson, que pressupunha, como elemento de integração social, não apenas a ascensão social dos negros por via material e/ou do status, como também a miscigenação. Ou seja, na prática, mestiços só avançariam, percentualmente, na medida em que

embranquecessem, restando a quem tivesse pele mais escura ou traços tidos como de negro (“pretos”) sobreviver residualmente, enquanto grupo, senão simples e tragicamente

desaparecer, enquanto indivíduos. Ademais, passa também sem maior escrutínio o depoimento dado a Thales por um informante, “um estudante de medicina muito preto”, relatando que “os [médicos] pretos em geral não se dedicam à cirurgia: alguns tentam essa especialidade, mas acabam na cínica geral. A odontologia também não é uma bôa carreira para êles: qual é a moça branca, enfeitadina, que quer abrir a sua boca para um preto?”120. Como esse, outros episódios tipicamente baianos relatados em Les élites..., de flagrante discriminação racial – como casos de professores que humilhavam jovens estudantes negras “pouco estudiosas”, a elas “dizendo que havia muita gente precisando de cozinheiras ou de lavadeiras, e no entanto as pretas estavam querendo ser doutoras”121 – são situados por Thales em um impreciso passado, coisa que acontecia “há alguns decênios”, mas que, no presente, já não aconteciam mais – um subterfúgio corriqueiro ao longo de todo o livro122.

Nos clubes sociais ao tempo do trabalho de campo de Pierson, “os prêtos ainda não foram admitidos, embora vários mulatos, inclusive certo número de ‘branqueados’ e mesmo alguns escuros, fôssem membros regulares, desfrutando de tôda a consideração”123. Ao tempo da etnografia de Thales, a estratificação social dos clubes parecia guardar uma vinculação direta com o gradiente de cor da pele: os clubes “mais finos”, com “predominância de associados do alto comércio e da indústria e das profissões liberais, só aceita[va]m pessôas ‘socialmente brancas’, isto é de fenótipo europóide ou

120 AZEVEDO, pp. 157-158. 121 Idem, p. 158.

122 Em seu amplo estudo sobre a classe operária baiana entre o Império e a Primeira República, o historiador

Aldrin Castellucci conclui que “nem toda a população negra e mestiça vivia na pobreza ou foi atirada ao desemprego após a Abolição. A fração da classe operária de Salvador que nós estudamos era, em grande medida, formada pelos artesãos e mestres de ofício, em sua maioria, pretos, pardos e mestiços, que dispunham de melhores condições de trabalho, maior autonomia e salários maiores do que os operários fabris. Talvez por não estarem submetidos à disciplina das fábricas e disporem de alguma instrução formal, puderam adquirir cidadania política, partici.par das eleições com relativa autonomia e lutar por cidadania social.” (CASTELLUCCI, 2015, p. 209) Contudo, a existência dessa “fração da classe operária” não justifica, por si só, a generalização da realidade daquele grupo ao conjunto de trabalhadores negros da primeira metade do século XX, quanto menos autoriza a afirmar qualquer tendência de médio ou longo prazo à harmonia racial ou à equiparação sócio-econômica com as classes médias e altas baianas.

49 classificadas como brancas graças à combinação de leves traços de mestiçagem com posição mais ou menos elevada”124. Os “muito pretos” ou ficavam ou excluídos no interior desses clubes, ou se associavam a clubes que reuniam pessoas “de cor” e profissionais de funções de menor prestígio social. Thales poderia ter questionado, a partir de qualquer um desses exemplos, se a posição de classe era mesmo o determinante último das desigualdades e preconceitos de cor, conforme defendia Pierson, bem como poderia ter duvidado estar diante de um problema residual, tendente ao desaparecimento por simples inércia, como preconizava seu predecessor norte-americano. No entanto, Thales preferiu, mais facilmente, sustentar que aquele quadro “confirma a observação piersoniana de que através das profissões liberais muitas pessoas alcançam classificação social”, do que questionar em profundidade a polifonia de sua própria etnografia, na qual ele, muito honestamente, registra que “esse [clubes sociais] é um setôr das relações sociais em que há certo conflito, muito embora a tensão resultante seja dissimulada por mecanismos de acomodação de parte a parte”125. De fato, da parte de alguns negros bem posicionados social e economicamente, um desses mecanismos de acomodação possivelmente consistia em simplesmente desistir de frequentar esses clubes, de tão calejados que já estavam dos episódios de preconceito que já deveriam ter enfrentado neles.