• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – A Unesco e a “harmonia racial na Bahia”

1.2 Em busca de um exemplo de harmonia racial

Paralelamente, entretanto, Métraux se via “finalmente no centro de um laboratório de antropologia aplicada muito ativo”43, incumbido da tarefa de dar feição prática ao projeto que Ramos iniciara. Num artigo no International Social Sciences Bulletin – periódico científico “projetado para atuar como uma ponte entre especialistas de diversos

da posição em que Métraux se encontrava naquele processo: “Depois de receber comentários de cerca de sessenta acadêmicos, variando do ‘endosso entusiasmo à rejeição irônica ou cortante’, Métraux começou a cogitar que ‘o plano de criar um texto que pudesse reunir o consenso da maior parte dos cientistas não era uma utopia... que poderia ter o efeito oposto.” (“After receiving comments from nearly sixty scholars, ranging from ‘enthusiastic endorsement to sharp or ironical rejection,’ Métraux had begun to wonder whether ‘the plan to create a text which might rally the consensus of most scientists was not an utopia ... which might have the opposite effect.’ (Idem, p. 1402)

42 Cfr. BRATTAIN (2007).

43 “At UNESCO, and in Paris, Métraux was finally at the center of a very active laboratory of applied

anthropology.” (KREBS, 2016, p. 36) A historiadora Chloé Maurel mostra que é a partir do fracasso da construção coletiva da Declaração sobre Raça da Unesco que Métraux toma a frente da condução da política antirracista da Unesco: “Métraux não é diretamente implicado na natureza problemática da primeira

Declaração. Ele acredita, como Margaret Mead, que a incompetência de Ashley Montagu é responsável por seus muitos pontos fracos. Em compensação, Métraux rapidamente se encontraria envolvido em questões extra científicas, em relação à sua própria produção e à dos colegas cujos textos ele deve avaliar para a publicação pela UNESCO de uma série de livros sobre ‘a questão racial’” (“Métraux n’est pas directement mis en cause dans le caractère problématique de la première Déclaration. Il estime, comme Margaret Mead, que l’incompétence d’Ashley Montagu est responsable de ses nombreux points faibles. En revanche, Métraux se trouvera rapidement pris dans des enjeux extra-scientifiques, concernant sa propre production et celle de collègues dont il doit évaluer les textes en vue de la publication par l’UNESCO d’une série de livres sur « la question raciale»”) (MAUREL, 2017, p. 15).

22 países e a Unesco”44, editado pela própria organização, que reunia colaborações de importantes atores da comunidade científica internacional em diversas áreas do conhecimento – , Métraux sumariza, no segundo semestre de 1950, as discussões sobre a questão racial travadas na Conferência Geral da Unesco realizada em Florença, Itália, em dezembro de 1949. A premissa anunciada ali era que a “doutrina racial [era] o resultado de um sistema de pensamento fundamentalmente antirracional e est[ava] em flagrante conflito com as tradições humanistas inerentes à nossa civilização”45, e que, assim sendo, deveria ser combatida pela Unesco com o “estudo e coleta científica de materiais concernentes às questões de raça”, uma “ampla difusão da informação científica coletada” e “uma campanha educacional baseada nessa informação”.46

No âmbito desse programa geral, deliberara-se, na mesma assembleia, pela realização, no Brasil, de “uma investigação piloto dos contatos entre raças ou grupos étnicos, com o objetivo de determinar os fatores econômicos, políticos, culturais e psicológicos, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis às relações harmoniosas entre raças ou entre grupos étnicos”47. A sugestão entusiasmada partira do chefe da delegação brasileira na Unesco: “O professor Paulo de Berredo Carneiro, do Brasil, propôs que seu país fosse escolhido, porque, disse ele, o Brasil era uma nação que devia sua evolução a uma fraternidade entre cidadãos negros, brancos e indígenas, ‘e nossa mistura racial está crescendo o tempo todo’”, conforme se lê em uma nota não assinada na edição de julho/agosto de 1950 do Unesco Courier48. A curtíssima nota informativa, de dois parágrafos apenas, que revela o tom da sugestão de Carneiro, aparece em um pequeno

box inserido em meio à diagramação do artigo principal da página, intitulado “Scientific

44 Uma nota não assinada no Unesco Courier de novembro de 1949, na mesma página em que fora publicado

o já citado artigo de Artur Ramos, definia o periódico como "designed to act as a link between specialists in different countries and Unesco" (Unesco Courier, nov.1949, p.14)

45 “Racial doctrine is the outcome of a fundamentally anti-rational system of thought and is in glaring

conflict with the humanist traditions inherent in our civilization” (MÉTRAUX, 1950, p. 384)

46 “the Fourth Session of the Unesco General Conference adopted the following three resolutions for the

1950 programme: “‘The Director-General is instructe: To study and collect scientific materials concerning questions of race; To give wide diffusion to the scientific information collected; To prepare an educational campaign based on this information.’” (Ibidem)

47 “a pilot investigation of contacts between races or ethnic groups, with the aim of determining the

economic, political, cultural and psychological factors, whether favourable or unfavourable to harmonious relations between races or between ethnic group” (Idem, p.388)

48 “Professor Paulo de Berredo Carneiro, of Brazil, proposed that his country be chosen because, he said,

Brazil was a nation which owed its evolution to a fraternity of black, white and Indian citizens, ‘and our racial mixture is increasing all the time’” (Unesco Courier, jul/ago 1950 p. 8)

23 Basis for Human Unity”, que anunciava a publicação da primeira versão da Declaração sobre Raça da Unesco, cujo texto integral vinha a seguir.49

Naquela mesma edição, o Unesco Courier anunciava, na sessão do planejamento de atividades da instituição para o ano seguinte na área de ciências sociais, a realização de “estudos das tensões sociais” carreadas por “uma investigação dos contatos raciais no Brasil, para determinar os fatores que contribuem para relações raciais harmoniosas”50. Na edição de setembro, nova propaganda: na nota também não assinada intitulada “Estudo dos grupos étnicos irá ajudar a Unesco a lutar contra o preconceito racial”, lia-se que o

Brasil é um dos poucos países que nunca conheceram aqueles sistemas de opressão legal praticados por brancos dominantes contra as massas escravas, conhecidos como “Leis Negras”. A abolição da escravidão, que criou graves problemas sociais nos Estados Unidos, foi efetivada no Brasil sem incidentes. O preconceito racial, causa de amargos

conflitos em muitas partes do planeta, é tão leve que é frequentemente confundido com preconceito de classe. Qual é a razão para isso? É difícil encontrar uma resposta satisfatória. 51

49 Michelle Brattain afirma que “A declaração de 1950 recebeu ampla e positiva cobertura de imprensa

internacional, com centenas de matérias, editoriais e programas de rádio, bem como menções proeminentes no noticiário, sermões, simpósios públicos e programas de televisão nort-americanos. Mas, na comunidade científica, a declaração causou uma tempestade de fogo.“ (“The 1950 statement received broad and positive international press coverage, with hundreds of stories, editorials, and radio features, as well as prominent mentions in American newsreels, sermons, public symposia, and television programs. But in the scientific community, the statement caused a firestorm.” (BRATTAIN, 2007, p. 1398)

50 Nota não assinada no Unesco Courier de julho/agosto de 1950 anuncia “an investigation of race contacts

in Brazil, to determine factors contributing to harmonious race relations” (Unesco Courier, jul/ago. 1950, p.5)

51 A nota não assinada “Study of ethnic groups will help Unesco to fight racial prejudice” afirma: ““Brazil

is one of the few countries which has never known those systems of legal oppression practised by ruling whites over the slave masses and known as the ‘Black Laws’. The abolition of slavery, which created such

24 Na conclusão, o texto reconhece: “Há muito mais do que interesse científico nessa iniciativa.”52 Era, de resto, corrente entre figuras do alto escalão da Unesco o entendimento de que, no Brasil, a discriminação racial fosse branda e/ou quase inexistente, porquanto exemplar ante o olhar internacional53. Já em 1948, o primeiro diretor-geral da Unesco, o biólogo Julian Huxley, afirmava ter visto com os próprios olhos “a quase ausência de qualquer barreira de cor num país como o Brasil” – o que, junto com outras experiências civilizatórias supostamente bem-sucedidas de populações tidas como inferiores (no Peru, Haiti, África Ocidental e Turquia), despertava nele uma “fé muito

grave social problems in the United States, was effected in Brazil without incident. Racial prejudice, cause of bitter conflict in so many parts of the earth, is so slight that it is frequently confused with class prejudice. What is the reason for this? It is difficult to find a satisfactory answer.” (Unesco Courier, set.1950, p.8)

52 “There is much more than scientific interest in this undertaking.” (Unesco Courier, set.1950, p.8) 53 Marcos Chor Maio (2004), afirma que “de fato, havia no interior da organização uma imagem positiva

do país em matéria racial”.

Figura 3 - Texto de Julian Huxley no Unesco Courier de novembro de 1948.

25 real nos resultados que poderiam advir da genuína aplicação de princípios não discriminatórios”. 54

Métraux também estava entre os que tomavam por verdadeiro esse viés comparatista e benfazejo, mas, a rigor, assimilacionista e etnocêntrico, na linha até então proposta pela Unesco. A ênfase arbitrária em determinados aspectos, como a suposta “efetivação sem incidentes” da abolição da escravidão no Brasil e a não vigência de legislação segregacionista – tomada como índice último da inexistência de amparo político e social a práticas racialistas, deliberadamente ocultando políticas oficiais racialistas do Estado brasileiro como, por exemplo, as migratórias, voltadas ao branqueamento da população do princípio do século XX – , somada à autoridade etnográfica lastreada pelo advento da visão com os próprios olhos, funcionavam como corolário de um entendimento corrente e mais profundamente arraigado no interior da Unesco, i.e., o de que “é bem sabido (...) que há uma diferença entre a atitude dos povos anglófonos e a dos povos mediterrâneos em relação às raças de cor”, como afirmava Métraux55. Nesse discurso, a América do Sul aparecia como lócus privilegiado de observação, entendida como “um continente onde, até poucos anos atrás ao menos, o sentimento racial não era fortemente desenvolvido e o antagonismo entre povos de diferentes cores estava longe de exibir o caráter brutal exemplificado por vários países anglófonos”56. O Brasil, por sua vez, oferecido entusiasmada e voluntariamente por sua própria diplomacia na plenária da Unesco – diplomacia talvez preocupada em granjear notoriedade, prestígio ou talvez somente apenas em reforçar a imagem de país cordial de que o Brasil já gozava no teatro das nações – surgia como candidato a laboratório ideal para produzir as evidências necessárias para a sustentação da retórica científica de uma tese que, segundo a documentação que pude examinar, estava por ser levada ao campo semipronta. É, nesse sentido, lapidar a questão retórica de Métraux: “Que argumento melhor pode ser oposto ao preconceito de raça do que a demonstração de que relações raciais harmoniosas são possíveis?57

54 “a very real faith in the results which could accrue from a genuine application of non-discriminatory

principles.” (HUXLEY, 1948, p. 6)

55 “It is well known (...) that there is a difference between the attitude of Englishspeaking people and that

of Mediterranean people towards the coloured races” (MÉTRAUX, 1950, p. 388)

56 “a continent in which, until a few years ago at least, racial feeling was not strongly developed and

antagonism between people of different colour was far from exhibiting that brutal character exemplified by several English-speaking countries.” (Ibidem)

57 “What better argument can be opposed to race prejudice than a demonstration that harmonious race

26