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Capítulo 1 – A Unesco e a “harmonia racial na Bahia”

1.10 Fogo amigo

Ao se dispor a elaborar uma história do projeto Unesco no Brasil, Marcos Chor Maio divide o campo entre os que entendem que o conjunto de trabalhos produzidos sob patrocínio da Unesco “frustrou as expectativas iniciais da instituição”167 de obter material científico que subsidiasse sua propaganda antirracista, impedindo a ênfase do Brasil como exemplo de harmonia racial ante o mundo; e os que interpretam que aquele mesmo conjunto de trabalhos deve ser lido como “resposta e confirmação plena” do “espírito que inicialmente animou a Unesco”168. Contudo, a questão que a documentação examinada ao longo de minha pesquisa me leva a propor é se há, de fato, rendimento analítico em

165 “J’espère que vous avez retrouvez votre mirador et que [de] votre lucarne vous admirez la rade et

Itaparica. Je vous imagine dans votre grernier, les reins ceints d’une toge et disputant aux rats les fragments de vos notes. Je vous vois montant et descendant le Pelourinho, vous arrêtant, l’échine courbée, devant une vendoeuse d’acaraje – mae de santo ou votre mère tout court. Je vous vois aussi buvant de maté froid aux gaufrettes dans l’espoir de fciliter la digestion du pneu carbonisé qui vous aura été servi das le sympathique restaurant que nous fréquentions. Le soir um tram cahotant vous conduit vers les terreiros que vous escaladez dans la boue. Vos paumes levées disent votre respect des orixás et étant um prêtre versé dans les choses de Guinée, votre prestigie est si grand que personne n’ose vous disputer la place. Ne croyez pas que j’ironise – loin de moi cette atitude, mais simplement la marque d’un regret, la formulation d’un espoir. Je vous dois mês meilleurs souvenirs brésiliens. Si ma compagnie vous a été souvent lourde, la votre m’a été la meilleure défense contre l’angoisse des voyages. Mieux que le gardénal. Vous voyez que je vous place três haut.” (MÉTRAUX e VERGER, 1994, p. 234-235)

166 “Ma vie à Bahia pourrait étre celle que vous décrivez avec verve... mais, hélas ou heureusement,

Orunmila mon bom seigneur seul le sait, la réalité esbien diferente. Je méne une vie de fonctionaire précis, maniaque et routiner.” (MÉTRAUX e VERGER, 1994, p. 237)

167 MAIO, 2004, p. 157. 168 MAIO, 1997, p. 301.

73 seguir tratando aqueles trabalhos enquanto um conjunto, na medida em que, a cada vez que o pesquisador se aproxima do tema e das contribuições de cada um deles, mais difícil fica identificar linhas de força que justifiquem seu tratamento como uma unidade. A rigor, trata-se de pesquisas extremamente heterogêneas dos pontos de vista ecológico, metodológico, político e, enfim, epistemológico, para além dos fatos não estritamente científicos em comum de 1) terem sido financiadas pela Unesco; 2) terem tido como tema central a noção (ampla demais ou, a rigor, vaga) de estudos sobre relações raciais no Brasil; e de 3) terem tido relativo impacto na consolidação seja do campo acadêmico das ciências sociais em quatro praças do país, seja das carreiras dos pesquisadores diretamente envolvidos. O fato em comum de as ações terem sido coordenadas por Métraux, com maior proximidade do dia-a-dia da pesquisa e do tratamento dos dados (como no caso baiano), ou menor (como nos casos paulista e carioca), parece demonstrar mais uma preocupação do antropólogo suíço-americano de acomodar egos e dissonâncias no interior do campo das ciências sociais brasileiras, do que propriamente em garantir alguma unidade dos recortes, métodos e textos finais. Em suma, os pesquisadores contratados pela Unesco de maneira alguma podem ser vistos como um grupo, quanto menos podem seus resultados tratados como unidade: cada trabalho foi conduzido de um modo, e as divergências entre eles, inicialmente visíveis apenas na correspondência com Métraux, aos poucos foram se tornando públicas.

Tanto é assim que Les élites..., ao ter a versão em português publicada no Brasil, em 1955, pela coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, é recebida com duras críticas pela escola sociológica paulista. A crítica à escolha de Wagley, Métraux e Thales por seguir o paradigma interpretativo de Donald Pierson extrapolava os bastidores: Fernando Henrique Cardoso, quando ainda era um jovem discípulo de Florestan Fernandes, escreveu uma resenha crítica sobre o livro em que afirmava:

Justamente esta peculiaridade da situação de contacto inter-racial brasileira, em face da norte-americana, tem sido um obstáculo, flagrante em Pierson, perceptível ainda em Thales de Azevedo, para a descrição e compreensão das relações entre negros e brancos no Brasil. Donald Pierson, apesar dos cuidados que teve para evitar o "bias" das informações que colheu[,] não foi capaz de guardar-se contra o próprio "bias" que, por sua formação intelectual e por sua experiência como participante da vida social norte- americana, possuía. O prof. Thales de Azevedo, da mesma maneira, trabalhando já sôbre os resultados de uma investigação anterior que incorria neste equívoco, e ainda, em parte, preso por uma ideologia de convivência inter-racial em que as boas relações entre as raças são um valor arraigado do sistema de mores, não chegou a formular o problema (embora por várias vezes analisando com agudeza situações particulares o tivesse percebido) em têrmos que permitissem, dentro de um enquadramento teórico mais fecundo, a análise desta situação peculiar à nossa sociedade. Daí que o prof. Thales de

74 Azevedo tenha chegado à conclusão de que dificilmente se pode distinguir o preconceito de côr do de classe.169

Em sua argumentação, Fernando Henrique isola a questão do “viés” (“bias”) norte-americano de Pierson, que Thales herdara acriticamente: não era tanto a diferença entre os brasis “moderno” e “tradicional”, associados, respectivamente, a São Paulo e à Bahia que explicava a diferença entre as reflexões da sociologia paulista e da baiana (ou da norte-americana feita na Bahia) sobre a questão racial, e sim a tentativa equivocada de interpretar a realidade brasileira (em específico, a baiana) tomando como premissa a maneira como a questão se apresentava nos Estados Unidos.

Em 1957, Roger Bastide publica no International Social Sciences Bulletin da Unesco um artigo dedicado a revisitar criticamente o programa de pesquisas sobre a questão racial no Brasil. Em 17 páginas, o antropólogo francês faz ali possivelmente a primeira tentativa de síntese analítica daqueles trabalhos encomendados pela Unesco: historia brevemente a questão racial no Brasil, resenha os principais trabalhos realizados no escopo do programa brasileiro e propõe uma comparação entre eles – muito embora observando que as significativas diferenças teóricas e metodológicas, bem como as características sociais e históricas de cada região pesquisada, impossibilitavam uma comparação mais precisa. Ali, nova crítica ao trabalho de Thales:

Thales de Azevedo encontrou certa quantidade de preconceito e discriminação em certos setores da sociedade, muito embora fosse impossível determinar se isso se devia ao antagonismo racial ou à resistência de classe à mobilidade de pessoas tradicionalmente ocupantes de uma posição inferior. A dificuldade que muitas pessoas questionadas encontraram, a despeito de seu nível intelectual, para expressar suas visões sobre o problema racial demonstra, em nossa opinião, um desejo de reprimir memórias desagradáveis e é evidência de tensões subjetivas em Negros e mulatos ‘bem- sucedidos’.170

É preciso salientar, contudo, que as críticas que a sociologia paulista desferiu contra Les élites... não chegam a afirmar, com maior ênfase, que Thales também poderia ter descrito, na Bahia, um quadro não de tendência à harmonia, e sim de agravamento da tensão racial, ainda que em alguma medida diferente do quadro encontrado pelas pesquisas feitas em São Paulo. A crítica, portanto, é ambígua: de um lado, critica-se o

169 CARDOSO, 1955.

170 “Thales de Azevedo found a certain amount of prejudice and discrimination in certain sectors of society,

although it was impossible to determine whether it was due to racial antagonism or class resistance to the mobility of persons traditionally occupying an inferior position. The difficulty which many of the persons questioned found, despite their high intellectual standard, in expressing their views on the race problem, shows, in our opinion, a wish to repress unpleasant memories and is evidence of subjective tensions in 'successful' Negroes and mulattoes.” (BASTIDE, 1957, p. 500-501)

75 viés “piersoniano” adotado por Thales no tocante à ancoragem da noção de preconceito racial nos padrões da sociologia e da sociedade norte-americanas; do outro, reafirma-se o senso comum dos “dois Brasis” – o moderno e o tradicional –, que acaba por reificar a leitura que Pierson fizera da sociedade baiana. Em suma, a preocupação era menos com o eventual equívoco da conclusão de que a sociedade baiana tendesse à harmonia racial, e mais com a refutação da pretensão de validade universal, no Brasil, de características iguais às da sociedade baiana, no tocante às relações raciais, que Pierson, baseando-se em um paradigma equivocado, descrevera. Assim, Bastide terminava por afirmar 1) que a comparação com os Estados Unidos continha um “risco de que isso pudesse obscurecer o que é especificamente brasileiro no problema racial no país”171 , porém era São Paulo, jamais a Bahia, o lócus em que essa suposta especificidade poderia ser observada; 2) que “o novo é encontrado no velho, e o velho no novo”172, porém o “velho”, patriarcal e atrasado confinava-se à Bahia e ao Nordeste, já que o “novo”, dinâmico, industrial e moderno, somente existia em São Paulo; e, por fim, que 3) tudo isso resultava em um “Brazilian Dilemma” (dilema brasileiro): o país queria se modernizar, e substituir “o velho paternalismo por um esforço não mais por igualdade legal, mas por igualdade econômica racial”, porém mantendo o “orgulho das relações afetivas que tinha conseguido estabelecer entre as raças”173. Tal dilema é apresentado por Bastide como exclusivo do “Brasil industrial”, mas, curiosamente, os exemplos hipotéticos em que ele se manifestava poderiam ter aparecido na etnografia de Thales, ou mesmo de outras cidades brasileiras:

No Brasil industrial, esse dilema é revelado, por sua vez, na forma que a discriminação assume; a um Negro não é recusado um posto porque ele é negro – a ele é dito que infelizmente a vaga já foi preenchida; a ele não é recusada uma promoção – ele é reprovado no exame médico. Essa solução, que não engana ninguém, obviamente não pode perdurar. A grandeza do Brasil residirá em extricar-se desse dilema passando do paternalismo à igualdade sem permitir que as qualidades de atenção calorosa, tolerância e mútuo respeito de seu povo se percam nesse processo.174

171 “risk that it may obscure what is specifically Brazilian in that country's racial problem” (BASTIDE,

1957, p. 509).

172 “the new is found within the old and the old within the new” (Ibidem).

173 “the old paternalism by a struggle no longer for legal, but now for economic racial equality”/ “proud of

the affective relations he has succeeded in establishing between races” (Idem, p. 512).

174 In industrial Brazil, this dilemma is revealed, for instance, in the form which discrimination takes; a

Negro is not refused a post because he is a Negro – he is told that unfortunately it has just been filled; he is not refused promotion – he fails to pass the medical examination. This solution, which deceives no one, obviously cannot last. Brazil's greatness will lie in extricating itself from its dilemma by passing from paternalism to equality without allowing its people's qualities of warm affection, tolerance and mutual respect to be lost in the process. (Ibidem)

76 A “solução que não engana[va] ninguém” de ocultar uma mentalidade racista para manter as aparências de harmonia racial aparece, na crítica de Bastide, fundada no paternalismo herdado da sociedade escravocrata. Mas, em vez de ser exaltado como vetor de promoção da absorção progressiva dos negros a uma sociedade que supostamente embranquecia, como propusera Thales, o paternalismo era aqui visto como uma espécie de mácula, de herança maldita do passado arcaico, a ser expurgada da modernidade – para a qual o sul do país, acreditava-se, se encaminhava, e da qual o nordeste se encontrava supostamente marginalizado.

Nesse sentido, convém ponderar que Thales, assim como Wagley e Métraux, não havia perdido de vista o problema da marcha em direção à modernidade. Em Les élites..., Thales observara que, muito embora a sociedade baiana lhe parecesse dotada “do “melhor dos padrões de relações inter-raciais conhecido no mundo”175, havia, segundo ele, o risco de que o pleno ingresso da Bahia numa suposta modernidade capitalista, acompanhando o ritmo da industrialização e urbanização paulista, pudesse ter, como efeitos colaterais malignos, o acirramento da competição social e, consequentemente, a mobilização das desigualdades raciais como catalisador de conflitos de classe. A esse propósito, Thales de Azevedo afirma, nas conclusões de Les élites..., que

As facilidades para a ascensão social das pessôas de côr estão aumentando na Bahia; segundo a opinião de muitos informantes, continuarão aumentando, a menos que a mudança cultural, sob a influência das novas condições sociais pela esperada industrialização da região com a exploração das jazidas de petróleo e com o grande suprimento de energia elétrica das usinas hidráulicas em construção, produza uma sensível modificação do ethos bahiano”176

É interessante notar, portanto, que os trabalhos patrocinados pela Unesco, ora tendendo a exaltar (como nos casos de Thales e Wagley), ora tendendo a criticar e negar (como nos casos de Florestan e Bastide, e também de Costa Pinto) a tendência brasileira à harmonia racial, convergiam em um aspecto fundamental, cuja problematização poderia ser demolidora: a naturalização da ideia de que a existência do racismo propriamente dito no Brasil fosse uma espécie de condão da modernidade industrial capitalista, tratada sempre como o estopim da radicalização de uma racialização sabidamente existente, mas vista como tolerável e mesmo benigna, desde que mantida confinada aos “atrasados” contextos baiano e, mais amplamente, nordestino. Essa argumentação até poderia ser lida

175 AZEVEDO, 1951, p. 43. 176 AZEVEDO, 1955, p. 197-198.

77 como benfazeja, se fosse verdadeira; mas, a rigor, repousava em uma quimera elitista, da qual todos os envolvidos tiveram elementos para desconfiar.

Repetida ad nauseam, essa acreditada dicotomização entre o sudeste moderno e o

nordeste tradicional escapa ainda hoje sem maior escrutínio às análises e à historiografia

acerca do projeto Unesco, chegando a praticamente naturalizar-se em parte delas177. Ainda que artificialmente agrupados para fins analíticos e historiográficos, os trabalhos patrocinados pela Unesco no Brasil nem “frustraram” as intenções da Unesco, nem podem ser entendidos como “resposta e confirmação plenas” do compromisso científico do organismo internacional com a produção de uma leitura fundamentalmente científica da questão racial na sociedade brasileira. Não se pode dizer que houve frustração, na medida em que a Unesco produziu sobre a Bahia precisamente o discurso que desejava, e o divulgou internacionalmente, projetando uma Bahia supostamente exemplar como amostra ideal do Brasil, escamoteando ou mesmo silenciando as dissonâncias ante o argumento da tendência brasileira à harmonia racial. Tampouco se pode dizer que prevaleceu o espírito científico na empreitada da Unesco no Brasil: se houve, em relação à intenção original da instituição, algum grau de porosidade às demandas pelo alargamento das regiões onde a pesquisa deveria acontecer, bem como relativa liberdade na escolha das abordagens e na condução das diferentes pesquisas realizadas no país, resultando em dois trabalhos que negaram veementemente a pretendida tendência brasileira à harmonia racial, isso tudo esteve longe de sensibilizar a Unesco a empregar, em ações de denúncia e combate ao racismo à brasileira, vigor semelhante ao que anteriormente pretendera empregar na propaganda do Brasil enquanto exemplo de terra da harmonia entre as raças. Nesse sentido, a “abertura da caixa preta da iniciativa da agência intergovernamental”, de acordo com a terminologia de Bruno Latour invocada por Maio, permite não simplesmente “encontrar cientistas sociais em ação, gerando resultados não-antecipados” e “relativizar o autoengano da Unesco” 178, mas, ao contrário, observar cientistas sociais contornando evidências, acomodando egos acadêmicos e interesses intelectuais e profissionais, exercendo autoridade editorial e política para

177 Nesse sentido, Maio afirma que “as avaliações e interpretações do quadro racial brasileiro que emergem

das investigações não são consensuais. As perspectivas teórico metodológicas e as regiões nas quais se realizaram os estudos foram algumas das variáveis que interferiram nos diagnósticos. Em tela, a interlocução permanente com os trabalhos de Donald Pierson e Gilberto Freyre, seja em regiões tradicionais (Bahia e Pernambuco), seja em regiões modernas (Rio de Janeiro e São Paulo).” (MAIO, 2004, p. 162) O pesquisador parece reafirmar a dicotomia “moderno x tradicional”, reificando-a, à guisa de argumento explicativo, e não de categorias a serem alvo de problematização.

78 silenciar resultados indesejados, enfim, torcendo a ciência para viabilizar a afirmação de convicções etnocêntricas previamente levadas a campo, apesar de suas intenções politicamente benignas, em escala global. Mais que isso, permite afirmar que, a despeito de alertas e argumentos científicos, a Unesco, personificada em Métraux e em Thales, ao escolher não erguer a voz contra o racismo à brasileira, resignou-se ao autoengano179.

1.11 “Eu mesmo gostaria de refazê-la melhor”

Ainda nos anos 1950, Thales responderia às críticas da escola paulista, acolhendo algumas delas em alterações parciais à argumentação acerca da questão racial na Bahia que propusera em Les élites.... No artigo "Classes sociais e grupos de prestígio", a que tive acesso na versão publicada em 1959, Thales parece querer dar mais ênfase à correspondência entre classe social e cor da pele – mais do que fizera Pierson, e com mais clareza e assertividade do que fizera ele próprio no livro patrocinado pela Unesco:

Em nossos dias, para os baianos mais modestos a sociedade local compõe-se dos "ricos e dos pobres". Os ricos são os brancos, os que 'não pegam no pesado', isto é, os que trabalham com a cabeça, os que usam gravata, os doutôres, os empregados do Govêrno, os negociantes fortes; os pobres são os pretos, “os que suam” fazendo trabalho manual e braçal, os humildes, na terminologia política derivada da Ditadura [Vargas]. É a este último grupo que se costuma chamar ‘a gente do povo’ ou simplesmente ‘o povo’; um indivíduo dêste grupo é muitas vêzes descrito no noticiário dos jornais como ‘um popular’180.

179 Busco aqui avançar em relação à interpretação de Maio reiterada no ensaio “As Elites de Cor: Thales de

Azevedo e o Projeto UNESCO de Relações Raciais no Brasil” (2017), que enfatiza que “a pesquisa realizada por Thales de Azevedo evidencia que todas as pesquisas da Unesco, independentemente da região, revelaram o preconceito de cor e as desigualdades raciais no Brasil” (p. 102) e conclui que Thales, “embora tributário da ideologia da democracia racial e de uma de suas vertentes regionais, o ethos baiano, (...) reconhece que o conflito e seu acirramento no plano racial são um dos cenários possíveis do processo de modernização, em detrimento do ideário das relações raciais harmoniosas.” (pp. 110-111) Alternativamente, proponho uma ênfase crítica ao silenciamento, por parte da Unesco, desse “preconceito de cor” e dessas “desigualdades raciais” reveladas – ainda que nas entrelinhas, como no caso do livro de Thales – por pesquisas patrocinadas pelo próprio organismo internacional. Consequentemente, por esse prisma, entendo que Les élites... minimiza a gravidade de um cenário marcado por candentes tensões e barreiras raciais à mobilidade social e ao exercício da cidadania na Bahia, ao escrutiná-lo com um olhar empenhado em administrar evidências visando construir uma retórica científica voltada a afirmar a teleologia da harmonia, e não a denunciar o conflito racial enquanto condição e/ou tendência da sociedade baiana. Nesse discurso, convenientemente, hipoteca-se o “acirramento” das tensões/barreiras raciais a um futurológico processo de “modernização”. Reconfigurando os termos usados por Maio, entendo que Thales utiliza a categoria “modernização”, tal como era manejada pelas elites baianas, como subterfúgio para blindar o cenário de conflito e acirramento racial baiano da devida análise crítica, e, a despeito das evidências, opta por seguir tributário da ideologia da democracia racial e furta-se a problematizar um pernicioso “ethos baiano” forjado no seio da classe dominante, ethos esse que nada tinha de benigno e talvez fosse, enquanto discurso, justamente um dos motores da desigualdade racial e social na Bahia.

79 Thales viabiliza teoricamente essa distinção fazendo uma análise do cenário social baiano ligeiramente distinta daquela proposta por Pierson, que ele mesmo havia reafirmado em Les élites..., de uma “sociedade multi-racial de classes” em que o preconceito de cor aparecia invariavelmente como índice do preconceito de classe. Sem negar completamente essa ideia, o antropólogo baiano propõe que, imbricada à noção de