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“Exames pré-operatórios”

1.5. Da memória e do testemunho, cortes aparentes

1.5.1. Dor e amor nas representações de gênero por Clara Charf

Há discursos testemunhais de tanta relevância que validam ou viabilizam a narrativa. É quando a memória ecoa a partir de um passado-presentificado (ou seria um presente que se tornou pretérito no Brasil?) sob tensão. Uma narrativa que ocorre ao som de tiros, compassado pelo espectro de virtudes, idealismo, fugidio entre o ontem e o presente que sobrou além dos documentos. Nas páginas biográficas escritas por Mário Magalhães, e também nas obras de Emiliano José e de Edson Teixeira da Silva Junior, ou nos documentários dirigidos por Isa Ferraz e Sílvio Tendler, uma personagem testemunhal, em especial, lança luz a discussões que se tornam referenciais nessas obras. É Clara Charf (a companheira de vida de Carlos Marighella), representada como uma mulher idealista, esposa do guerrilheiro durante 20 anos, de 1949 até o dia do assassinato dele, em novembro de 1969.

Essa mulher é identificada também como uma militante audaciosa e forte na jornada de combate a ditaduras (primeiro a de Vargas e, depois, a dos militares que tomaram o poder em 1964). Em um contraponto à ideia permanente que “Marighella é valente”, Clara ajuda a refazer a trajetória de um homem estudioso, determinado e “doce”. Sob essa autorização do sentir, Clara é representada como “amorosa”,

“sensível” e “idealista”. Mas, na trama, a revolucionária é apresentada em deslocamento, parceira do protagonista, e ativa nas reuniões da ALN, em contato com as ações urbanas de guerrilha. Vale, nesse sentido, em uma análise mais pontual sobre essas questões de gênero, o que Dalcastagnè (2015) havia criticado sobre ser primazia de personagens masculinos da ficção o movimento entre terrenos urbanos, restando à mulher o deslocamento para outros cenários, fora da cidade ou do país.

Nesse contexto de representação de gêneros, é indissociável a ideia do masculino guerreiro x feminino guerreiro. Mas as reafirmações de diferentes matizes, como de “beleza”, “organização”, “persistência”, “doçura” e “cuidado” são emprestadas de forma especial a essa personagem. Se Carlos age de forma até misteriosa, Clara é quem traz a narrativa para a racionalidade e a faz aflorar. Nos filmes, a personagem gravada demonstra imprecisões e incertezas ao relatar acontecimentos específicos.

Trata-se de uma laboriosa investida a uma personagem-chave, que não apresenta apenas a participação dos dois na guerrilha, mas nas circunstâncias de família, trazendo ao debate discussões sobre a luta contra o machismo mesmo em espaços que são marcados por ideais de igualdade, como seria de se supor em um partido de matriz comunista, e que, em algumas células, posteriormente, aderiu à luta armada como forma de enfrentar a opressão do Estado ditatorial. Outro tema que a personagem dela traz para debate é o do racismo que o homem negro Carlos Marighella enfrentou para garantir o relacionamento com a mulher branca nordestina e de família tradicional.

Neste estudo, em que Clara é um dos personagens principais e que se move e age em função das memórias prevalecentes, em todos os produtos que fazem parte do corpus de pesquisa, pode-se discutir como testemunhos atribuídos a ela contribuem para representação de gênero na obra. Mesmo não sendo a questão central, pode ser identificado, durante a análise, que os vínculos estabelecidos com os temas ligados à cidadania e aos direitos humanos podem ser elementos de coesão e de sutura em obras que tratam sobre política, resistência e revolução. Para isso, preliminarmente, por exemplo, foram detectadas na biografia Marighella, o

guerrilheiro que incendiou o mundo (2012) participações em 48 momentos da

Nessa identificação, foi possível preliminarmente estabelecer diferenças nessa representação: ora surge como companheira de resistência (na guerrilha), e como parceira amorosa do guerrilheiro (revelando detalhes da relação familiar). Os detalhes das vidas dos personagens nos trabalhos biográficos, conforme observamos nos capítulos anteriores, são, aliás, elencados por Dosse como representações fundamentais e elementos constitutivos na construção da narrativa biográfica, superando planos panorâmicos da vida dessas criaturas. Os detalhes, e há riqueza deles em obras desse gênero, dispostos ao longo das narrativas, trazem vividez à memória, evitando que as cenas fiquem embaçadas, incoerentes ou aparentem desconfiança por causa da incompletude.

Clara recorda fatos e circunstâncias nas cinco obras estudadas e é apresentada ao leitor e ao público como integrante ativa do Partido Comunista Brasileiro (PCB) antes de completar dezoito anos de idade. Ela fugiu de casa, decepcionou o pai e foi trabalhar como aeromoça na companhia aérea PanAir (para encontrar liberdade), nessa ordem de acontecimentos. “Com seu uniforme azulado, de saia a casaquinho, fora apanhar documentos na sede do Comitê Nacional do PCB. Era um pombo-correio do partido numa época em que os serviços postais não tinham asas: aproveitava o emprego para levar e trazer correspondência de cidades longínquas” (MAGALHÃES, 2012, p. 195).

Articulada, trabalhou na assessoria parlamentar, defendeu ideais feministas ao ser ativista de movimentos sociais, o que incluiu declarar-se a favor do divórcio e até salário igual aos dos homens e das mulheres. Chegou a ser presa e torturada psicologicamente. Solta, manteve a luta ao lado do companheiro-marido até o dia em que ele foi morto em 1969. No livro, surge como memória prodigiosa ao retomar detalhes de ações e de sentimentos retrabalhados pelo tempo. Ela se apresenta emocionada, mas com clarividência. Nos filmes, seu ânimo diante das memórias engraçadas vai cedendo lugar a um olhar circunspecto e de tristeza. Nessa memória, estão lá as fugas refeitas, as dificuldades e as emoções em citações curtas. Loira, de olhos castanhos, abandona, de acordo com a obra e com o seu testemunho, família e vaidade, já que na “luta”, não há espaço para isso. As despedidas dela nas obras referem-se ao exílio compulsório em Cuba. Clara volta à cena como alguém disposto a revelar segredos, mas principalmente como uma sobrevivente.

A exposição de Clara Charf como testemunha referencial de uma suposta realidade (acordo explícito na obra de não-ficção) faz com que a personagem ocupe papel central das narrativas. Visto que o termo “experiência”, não deve ser lido como o fato em si com os dados exatos, mas sim como resultado de discurso social mediado a partir do olhar a si mesmo e ao outro (SCOTT: 1999). A personagem encontra significação a partir do que serve à narrativa, funcional para fazer com que Marighella sobreviva em meio a um cenário caótico, hostil e militarizado, entendido aqui como “país”. O testemunho de Clara também é uma forma de não morrer, e de evitar a morte.

A militante, como testemunha, traz materialidade da experiência vivida e, por isso, é identificada com características que não são limitantes, mas singulares. Segundo Elshtain (1987), nominações de inocência, fragilidade e maior vulnerabilidade costumam estar ligadas ao feminino nas narrativas de ficção ou de não ficção. A mulher seria o corpo a ser protegido. Por isso também vale recorrer aos escritos e aos filmes para avaliar o resgate e o testemunho que são feitos às personagens mulheres de obras biográficas em meio ao cenário de resistência. Ao masculino, são atribuídas informações de valentia, força e coragem. Contra essa lógica, na biografia escrita por Mário Magalhães, esses papéis não são apresentados dessa forma, o que está longe de ser negativo no aspecto de garantia dos direitos e de valorização do gênero, uma vez que reestabelece uma singularidade a partir do que os personagens enunciam.

A experiência de Clara Charf, embora lembrada dessa forma pelo autor, não está centralmente na ideia de “miss Classe Operária”. Longe disso. Não há neutralidade no seu testemunho, visto que ocupa um lugar também de guerreira, ainda que destinada principalmente a cuidar da logística na Ação Libertadora Nacional, responsável por ações de guerrilha durante o regime militar. No caso da observação das obras sobre Marighella, é válido recordar Soares (2011), que trata da violência simbólica contra as mulheres. A autora revisa a literatura para estabelecer múltiplas visões que se desenvolveram principalmente entre os séculos XIX e XX. Clara é mulher que está situada, em suas ações, principalmente nos anos 1960 e 1970. E é justamente nessas décadas de 60 e 70 do século passado que Reis (2009), ao estudar as escritas femininas na América do Sul, explica que as histórias das mulheres passam a desafiar o discurso oficial. O testemunho avaliado de Clara Charf ocorre

como ação política. Selligman-Silva (2017) explica que o testemunho, entendido também como memória, existe a partir da defesa de uma causa, por vezes contrapondo-se ao homem branco e heterossexual.

Esses relatos escolhidos pela autoria conflitam a relação entre o feminino e a situação do país. Por isso, uma hipótese de pesquisa é que Clara Charf não traz simplesmente o resumo das ideias de Marighella. Traz novo ponto de vista. As memórias atribuídas a ela são de uma mulher de alguma forma interditada, ainda que branca, descendente de europeus. Ela fala a partir de uma criação judaica e que precisa de autorizações. Louro (2000) explica que as mulheres judias são submetidas a especiais regras ou estratégias de disciplinamento, nas quais são ensinadas a ter “vergonha e culpa”, a censura e o controle.

A própria personagem lamenta que o pai, Gdal Charf, proibiu que ela se relacionasse com um negro, comunista e não judeu (MAGALHÃES: 2012, pág 196). Ela resiste e depois passa a lutar, conforme explicitado pelo texto biográfico, a diminuir interdições políticas e até mesmo dentro da guerrilha, onde ela não imaginava que assim ocorrerresse. A companheira de Marighella ocupa espaço privilegiado nos três livros e em outros produtos, como os documentários em vídeo. São válidos para compreender o valor da lembrança e da memória ainda mais evidente.

No documentário Marighella (2012), de Isa Grispum Ferraz, sobrinha do guerrilheiro, relatos com narração em off e imagens da infância dela expõem como teriam sido as aproximações com o tio célebre e perseguido pela ditadura. Ao tratar do revolucionário, a diretora reconstrói, mais do que a história do personagem, seu próprio discurso e suas emoções. Os escritos deixados por Marighella, utilizados como testemunho (portanto, memórias construídas pelo personagem) foram utilizados também no documentário como evidências de acontecimentos e isso será mais explorado a seguir. As palavras atribuídas a outros personagens, embora não sejam exatas como definem Sarlo e Agamben (2002), foram tratadas como provas e se distanciaram de narrativas ficcionais. Com registros de memória e de pós-memória. Na obra da autora, ela traz exemplos e contra-exemplos para designar os efeitos do verbo “lembrar” (ou do “vale lembrar”). Outro pensamento que pode ser útil é a referência a Derrida a respeito à utilização da memória no interior da narrativa.

Clara Charf é personagem fundamental nessa história e de referência no século XXI para os produtos culturais que tratam sobre a luta armada no Brasil. O testemunho

atribuído a ela evoca representações que excedem a posição de uma coadjuvante. A militante, que recebeu em 2019 o título de Cidadã Paulistana cinco décadas depois da morte do esposo, tem contribuição ativa não somente à história de Marighella, mas também à trajetória do Partido Comunista do Brasil e aos ideais de igualdade no país.

São pelas palavras de Clara Charf que Marighella continua vivo e, por isso, as ações desembainhadas pela memória dela tornaram a presença do revolucionário resistente por muito mais tempo, sobrevivendo a ataques ditatoriais, além de esmaecimentos e apagamentos de documentos. Clara, ao concordar em colaborar com os diretores e escritores, fez a história retornar e, mesmo com as idiossincrasias do tempo, não deixou as páginas amarelarem e fez com que as fotografias se movessem. Os materiais biográficos também podem modificar a participante. Nesta(s) história(s), a memória virou Clara.