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2.5 A prestação de favores e a generosidade como hatitus do lugar

2.5.1 Dos cateretês/carêtetes ou adjuntos

Os cateretês eram denominações usadas pelos ‘nativos’ para identificar qualquer reunião para desenvolver algum trabalho. Assim, no dia combinado, reúnem-se muitos homens na roça para o trabalho da colheita e as mulheres na cozinha para o preparo da comida. Na roça, a colheita é alegre e envolve uma mistura de esforço, alegria e magia. O esforço próprio da atividade, das dificuldades do lugar, a alegria por ter aquela oportunidade da colheita, sendo a magia, algo que assinala o reconhecimento, uma espécie de agradecimento a seu Deus.

A alegria pode ser percebida nas cantorias que envolvem versos e rimas a respeito de elementos naturais, como o reproduzido a seguir:

Quando Horácio entrou na barra/ Militão correu/ [grupo da frente] Abre o olho Militão/ que Horácio é eu [grupo de trás]. Piriquitinho verde já comeu/não que Iaiá não me deu/piriquitinho verde já bebeu/não que Iaiá não me deu/piriquitinho verde já dormiu/não que Iaiá não cobriu/ piriquitinho verde vá embora/vou sim senhor, sim senhora/ não vai não piriquitinho verde/ fica aqui pra nós sambar/me dá um beijo meu louro. Boi preto maia no maiador/ boi preto bebe no bebedor /na sombra do morro onde o boi preto maiô/ leva o boi para o matador ô, ô, ô. (domínio público)

2. 5.2 Da debulha de milho

Atualmente, no município de São Gabriel, observamos a existência do mutirão para a debulha do milho, que envolve alguns trabalhadores rurais e pequenos agricultores familiares, sobretudo no bairro Mansambão. Neste mutirão diversos trabalhadores rurais se juntam na propriedade de um deles, enquanto a esposa, a mãe, filhas, irmãs, cunhadas e até mesmo vizinhas ou amigas fazem, também em mutirão, a refeição para culminância do evento. Antes disso o plantio e a colheita já haviam sido realizados pelas famílias ou com a colaboração remunerada de terceiros. Quando o milho colhido já se encontra em grandes ‘rumas’ na roça, o trabalhador decide qual o melhor dia para a debulha e a partir daí convida tanto aqueles que já participaram do mutirão, quanto àqueles que ainda participarão fato observado durante o trabalho de campo (ver anexo 4 e 5) e pelo depoimento de uma das mulheres da freguesia:

Quando Deus ajuda que a gente arranja milho para fazer o milho. Aquele povo todo ajudando a gente, que é uma comunidade que nos ajuda. Se tiver o milho, aquela comunidade ajuda a debulhar e quando aquela pessoa também tem milho, os maridos da gente vão ajudar, é uma comunidade boa... A gente não paga nada, as pessoas vêm e debulham o milho, o marido da gente vai também ajudar aquele povo debulhar o dele. É tudo um a comunidade [...] E se for a comunidade ali, a gente só da a comida, eles debulham o milho, carregam tudo e botam dentro de casa, sobra uma coisinha pra gente. Se for pagar tudo a dinheiro não sobre nada [...] A despesa, no preço que está hoje as coisas, que o milho não tem valor e quando a gente termina de pagar trabalhador para quebrar e tudo não sobra nada pra gente. E a comunidade ajuda às vezes ainda fica alguma coisa..[...] Se tivesse galinha vai matar e tratar as galinhas. Se for um bode, o povo tira o couro e agente vai ajeitar aquele bode para cozinhar, tratar o fato para fazer a buxada. E daí cozinhar para aquele povo todo, arroz, macarrão se tiver o que tiver a gente cozinha... (Adolfina, 62 anos)

Comparando os dois eventos - a freguesia e a debulha de milho - temos que a freguesia, por se tratar de um trabalho comumente realizado por mulheres, como

lavar e passar, acaba dando conformidade e composição exclusiva de uma rede de mulheres. Já no mutirão para a debulha do milho, as atividades são coletivamente realizadas por alguns trabalhadores rurais e pequenos produtores, enquanto

algumas trabalhadoras ficam no espaço da casa preparando a comida53.

Tratando-se da freguesia, sabemos que algumas mulheres ‘agendam’ um dia para lavar as roupas e que, por ser um processo de acompanhamento individual ao resguardo, levam mais tempo com o ciclo de dar/receber/retribuir do mutirão. O lavar e passar não corresponde a uma atividade de encontro ‘festiva’, como se poderia dizer do mutirão para a debulha de milho, mas uma atividade a mais e complementar ao trabalho realizado pelas mulheres da freguesia: ela tem que se dedicar às suas atividades domésticas, dentro de sua casa e no quintal, e agregar a estas a responsabilidade de entregar uma ‘trouxa’ de roupa limpa e passada ao final da tarde. A ‘trouxa’ passa a ser um elemento extra, proveniente de outra família, e que reforça uma atividade do espaço privado da casa.

Diariamente, a exemplo da freguesia e do mutirão para a debulha de milho, pululam estratégias de organização em torno de acontecimentos ou resolução de problemas dentro do espaço estudado. Estratégias que, na maioria das vezes, não são consideradas para aquela população residente, quando acionados os modelos

mais tradicionais de organização54, com seus estatutos sociais, designadores de

exemplos, de assembléias gerais e do pagamento de mensalidades. A freguesia e o mutirão para a debulha lastrados por dar, receber e retribuir sem os condicionantes financeiros e burocráticos que proporcionam a funcionalidade de outras formas de organização, que apesar de sua estrutura de cobranças e decisões coletivas, é historicamente excludente em relação à participação das mulheres, principalmente

nas diretorias e nas tomadas de decisões55 .

Além dos cateretês outro evento que também envolve a generosidade num sistema de dádivas é o da ‘espinhaçada’.

53

Cabe aqui mencionar a crítica advinda principalmente das militantes do movimento negro quanto à diversidade de ‘mulheres’ existentes. Sabemos da heterogeneidade de mulheres rurais e se comparamos as diversas regiões do Brasil, há variedade de atividades realizadas pelas mesmas. Por exemplo, as extrativistas de babaçu, logicamente adquiriram saberes diferentes das agricultoras familiares ou das assalariadas da cana-de-açúcar na região nordeste do Brasil.

54

Pode-se mencionar que nas últimas décadas, para formação de organização e estratégias de mobilização social em comunidades rurais têm-se como referência as associações e as cooperativas. Dentro do município de São Gabriel registramos a existência de organizações ligadas ao movimento sindical como o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.

55

Podemos mencionar a luta das trabalhadoras rurais para garantir sua representação nas diretorias dos Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais com a criação da Comissão de Mulheres.