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O fenômeno social e suas atualizações: campo, contexto, e re-significação da freguesia

Este capítulo é dedicado à experiência etnográfica. Por intermédio dele, tentamos elucidar o processo de regras e normas prescritas e ‘obrigatórias’ para pertencer ao grupo da freguesia. A etnografia, para além de sua importância metodológica consensual entre os antropólogos, tem o mérito de ‘auxiliar’ no olhar do pesquisador sobre seu objeto, sobretudo, quando tal ‘objeto’ não se configura em algo material e passível de controle como é o caso do movimento da freguesia.

De acordo com vários antropólogos (MAUSS, 1921/2003; TAMBIAH, 2003; TURNER, 1974), para se conhecer melhor um determinado lugar, não há mais nada

rentável do que conhecer seus rituais29. Sendo assim, adentramos no universo

pesquisado, no momento do trabalho de campo, na busca por visualização e compreensão dos elementos significativos para as mulheres da freguesia.

A ‘freguesia’ é uma instituição, até o momento, tido como fenômeno, especial do município de São Gabriel, que fica situado no Nordeste brasileiro. Em decorrência do objetivo deste trabalho, ele foi estudado somente entre mulheres trabalhadoras rurais de determinadas ruas do município. Em São Gabriel, ficou evidenciado que determinadas mulheres se organizam e estruturam formas de prestação de ‘favores’ mútuos, envolvendo, praticamente todos os eventos da vida. Sendo assim, celebram desde o nascimento até a morte, em conjunto.

É sabido que a sociedade se organiza e se estrutura socialmente, a partir de significados simbólicos. Todavia, em pontos específicos da sociedade, já há algum tempo, tem-se verificado a recorrência de uma ‘economia’, diferente da perspectiva utilitarista, à base de um sistema de dádivas, uma espécie de favores que circulam e estabelecem laços, sobretudo naquelas formadas por clãs, como coloca Mauss

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De acordo com Stanley TAMBIAH (2003) “o ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica, constituído de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade, estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição)”.

(2003). De acordo com esse autor, mesmo nessas sociedades específicas, o sistema se diferencia de uma para outra, embora apresente traços bem semelhantes.

Diferentemente dos casos estudados por Mauss (2003), em São Gabriel, percebemos que as mulheres trabalhadoras rurais também constroem e atribuem significados à cultura da circulação. Elas se reúnem e estabelecem formas de organização ricas de significados simbólicos, baseando e justificando seus comportamentos em imperativos religiosos e morais. Gravados no ‘fundo do coração’, espontaneamente obedecidos ou inspirados por via da coerção, o grupo de São Gabriel segue regras rigorosamente obrigatória.

Na tentativa de compreender melhor a freguesia, comparamo-la com o

sistema descrito por Malinowski (1984), denominado kula30, em que foi verificado um

complexo sistema de trocas intertribais nas ilhas Trobriand. Nesse sistema, milhares de indivíduos eram envolvidos, ligados por relações diádicas de parceria. Assim como no kula, a freguesia envolve um grupo de pessoas, não sendo considerado pelos ‘nativos’ um sistema comercial, embora as participantes procurem atribuir às ‘necessidades’ do local, justificavas para a existência da organização.

Na freguesia, trocam-se essencialmente serviços. O sistema inicia-se sob o imperativo de determinada ‘necessidade’, em especial quando alguém se encontra num estado de doença ou no resguardo. As que compõem a rede, ou seja, mulheres que percebem alguma situação propícia oferecem sua ajuda e lembram às demais participantes do sistema para lavarem roupas ou fazer uma atividade em prol da necessitada.

Essa atitude funciona ao mesmo tempo como um convite e uma obrigação para a entrada no sistema da freguesia. Torna-se um convite quando se oferece em ‘stand’ disposição do outro, e uma obrigação quando coloca aquela que recebeu, numa situação de devedor, cabendo-lhe, quando se fizer necessário, a ‘obrigação’ de retribuir a ajuda.

À necessitada oferece-se ‘ajuda’ no preparo da comida, na lavação de roupas e no cuidado dos filhos. Essa forma de prestação de serviços traz algo muito rico para a antropologia, pois primeiramente, percebe-se um tipo de negociação no

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A etnografia do kula foi realizada por Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental. De acordo com Maria Claudia Coelho essa obra é considerada a pedra fundamental dos modernos estudos antropológicos sobre os sistemas de trocas primitivos. (COELHO, 2006).

mundo privado ora paralelo, ora muito próximo do público, além de ser realizado unicamente por mulheres. Além disso, o que circula são ‘coisas’ carregadas de significado simbólico íntimo, como as roupas sujas, cujos ensinamentos a seu respeito, que por vezes são até ‘naturalizados’, dizem que não se deve expô-las no universo público.

Todavia, essa negociação é demarcada, em especial, por uma disposição social, uma história singular, carregada de experiências negativas em detrimento de condições geográficas, marcada por pouca quantidade de água, e não raro de pouca possibilidade de cultivo alimentar.

As noções de habitus e “disposição” são, no presente trabalho, essenciais para o entendimento da análise do sistema da freguesia, na medida em que possibilita compreender a estruturação e diferenciação do sujeito que se organiza dando forma a tal sistema. Este, por sua vez, é baseado especialmente nas experiências individuais, sendo capaz de sustentar-se material e moralmente, apesar de todas as contradições.

A dimensão da experiência é algo central e fundante nas relações do lugar.

Um denominador compartilhado, que oferece ao sujeito a legitimação de

determinado status, seja na posição de parteira, seja no lugar que determinado sujeito ocupa na hierarquia do grupo, seja para ‘obrigar’ o sujeito a continuar a pertencer à rede da freguesia, embora não ‘tenha’ muito status.

Assim, a lógica da freguesia parece fazer sentido, no aspecto utilitarista, quando as mulheres explicam as dificuldades enfrentadas, em especial, em função das condições geográficas do sertão nordestino. Sendo assim, esse capítulo tem como objetivo apresentá-los, além de analisar os elementos que concorrem para incentivar determinados grupos de mulheres trabalhadoras rurais construírem um sistema de circulação da freguesia, assim como dos elementos usados na coesão do grupo. Para tanto, iniciamos, situando o município de São Gabriel, para além de dados estatísticos, ou mesmo de perfis demográficos, revisitando impressões e o olhar sobre o campo empírico, devido às suas características peculiares para a união dos sujeitos.