• Nenhum resultado encontrado

4. MORALIDADE E FELICIDADE

4.1 Da felicidade empírica

4.1.5 Dos deveres para com os outros

Assim como os deveres para consigo mesmo foram divididos e subdivididos, também os deveres para com outros os são. Esta divisão é feita por Kant em dois níveis: os deveres para com os outros, que trazem consigo a submissão dos outros à obrigação, e os deveres para com os outros que não trazem consigo esta contraprestação. Segundo Kant, a consciência da compatibilidade ou incompatibilidade do nosso agir para com a lei moral, advinda da capacidade de sentir prazer ou desprazer a partir desta consciência, é denominado de sentimento moral. Sabemos que o único sentimento moral considerado pelo filósofo é o respeito; porém, nesta análise do dever que temos para com os outros, um segundo sentimento surge, a saber: o amor. Mas não qualquer amor, como o que é sentido pelas pessoas de modo físico e que acaba por

328 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. 2ª ed. Bauru: Edipro, 2008, §21, p. 288.

329 Ibid.

330 Ibid., § 22, p. 288. 331 Ibid.

produzir uma relação amorosa, sexual, está mais para o amor que se apresenta num querer e num fazer o bem, ou seja, numa benevolência e numa beneficência. O amor também é dividido, no tocante aos deveres que os tem como força propulsora, que são a beneficência, a gratidão e a solidariedade.

Temos o dever de fazer o bem e este dever parece claro e até óbvio. Tal dever encontra-se no amor prático332, que necessita do exercício do querer fazer, ou

seja, de uma “benevolência ativa”.333

O fito buscado aqui é o de fazer do bem-estar e da felicidade do outro meu objetivo final em minha ação. Dessa forma, não basta o mero desejo pela felicidade do outro; é preciso que se exercite, se transforme a benevolência em beneficência.334

Pelo dever de fazer o bem, ou o dever de beneficência, busca-se satisfazer as necessidades do outro, sem nada, nem se quer um simples elogio, ou reconhecimento, e, muito menos, um esperar, um receber. Isto se exige porque todo sujeito que em determinada situação se encontra necessitado de ajuda tem como maior desejo recebê-la e deve aquele que quer receber algo, sempre buscar oferecer, mas, sem esperar recebê-lo também. Isto fica claro quando se trata de uma ação que diz respeito a uma valoração

moral. É, para Kant, a benevolência “a satisfação com a felicidade (bem-estar) dos

outros”335, e é a beneficência “a máxima de fazer da felicidade dos outros o próprio fim, e o dever a este correspondente consiste em ser o sujeito constrangido por sua razão a adotar esta máxima com uma lei universal.”336 A ressalva é que aquele que age de forma beneficente não o pode fazer achando que os seus conceitos de felicidade servirão àquele que recebe o fruto do ato beneficente. Ao contrário, o benefício só será bem recebido e terá êxito completo na medida em que este é dado, segundo os conceitos de felicidade de quem o recebe.

Além da beneficência, tem-se o dever de gratidão como dever para com outros seres humanos. Mas estes outros a quem se deve a gratidão são justamente aqueles que nos são beneficentes. O dever de gratidão é necessário, pois ele contribui para manutenção do ato beneficente que, segundo Kant, deve ser considerado como um dever sagrado337, e, desta forma, uma obrigação que o mantém, que permite que ele não

332

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. 2ª ed. Bauru: Edipro, 2008, § 26, p. 293.

333 Ibid. 334 Ibid., § 28, p.295. 335 Ibid., § 29, p.296. 336 Ibid. 337 Ibid., § 32, p. 298.

desapareça. Em outras palavras, aquele que recebe a beneficência tem o dever de agradecer com o fim de contribuir com a manutenção daquela, pois acaba por criar um laço de obrigatoriedade recíproca; e também aquele que agradece contribui para a melhora do crescimento moral-espiritual daquele que se oferece beneficentemente.

A solidariedade é a capacidade que temos de nos harmonizarmos com os sentimentos (sejam positivos ou negativos) dos outros seres humanos que conosco convivem ou mesmo que não tenhamos relação nenhuma de proximidade. É um dever nos sentirmos solidários a outros seres humanos ainda que não direto, mas indireto.338 O que não retira seu mérito de obrigatoriedade, visto que ele contribui para a melhora da humanidade em si mesma e daquela que há dentro de cada um. E, assim, como na relação aos deveres para consigo mesmo havia vícios contrários a estes, no tocante aos deveres para com os outros (especificamente ao amor para com os outros), também, aqui, existem os vícios ou os sentimentos que impedem a consecução e o fomento da moralidade no mundo. Estes vícios são a inveja, que é a tendência de ver o sucesso do outro com o sentimento de ódio em si, que o leva a ver (a desejar) aquele sucesso desmoronar; a ingratidão, que é o não reconhecimento àquele que é verdadeiramente merecedor deste; e a malícia que é o oposto à solidariedade. A malícia encontra-se no sentimento de vingança, ou seja, no prazer que sentimos pelo mal que sofre o outro.

Encontramos aqui a noção, sempre presente em Kant, de que a humanidade presente no outro nunca pode ser vista como meio, mas tão-somente como fim por todo

e qualquer ser humano. Portanto, nos termos do filósofo, “todo ser humano tem um

direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e estar, por sua vez, obrigado a respeitar todos os demais.339” Porém, destacamos que o dever de sermos respeitados não pode ser utilizado, em nosso entender, como instrumento de submissão e aniquilamento do direito do outro e da própria liberdade do outro, tal como ocorre quando se profere a sentença: você me deve respeito, numa discussão sobre “fidelidade” conjugal. Geralmente, neste caso específico, aquele que exige o respeito quer, na verdade, que o outro deixe de fazer aquilo que lhe é favorável, que lhe faça feliz, de certa forma, para que aquele (o que exige) sinta-se bem, sinta-se seguro, e, em vez de sair do relacionamento, deixando o outro livre em suas escolhas e dando a ele o direito de caminhar por si próprio em busca de quem lhe convém, prefere esconder-se em seus

338 Não é possível se ter uma lei moral que obrigue alguém ter algum tipo de sentimento por uma outra pessoa visto que todo sentimento é de ordem subjetiva.

339 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. 2ª ed. Bauru: Edipro, 2008, §38, p. 306.

medos, em suas inseguranças e tentar limitar, de modo egoísta, o livre arbítrio do outro, pedindo que este se anule em prol dele (do que exige o respeito). Essa exigência não se coaduna em nada com o conceito de caridade, de amor pleno que encontramos bem definido na 1ª carta do apóstolo Paulo à comunidade de Coríntios, Cap. XII.

No tocante à felicidade empírica, esperamos ter demonstrado que esta mesma não pode fundar nem fundamentar a moralidade. Esta será mais bem compreendida, um pouco mais adiante, enquanto mérito apenas desejável e que, mediante as ações corretas, poderemos, no máximo ter a certeza de sermos dignos da mesma. Entretanto, já vimos que a moralidade kantiana funda-se na ideia de um dever e que, dessa forma, pelo conceito de meritoriedade não há garantia de sucesso na busca do bem maior à ação do sujeito agente. Então, só nos resta pensar e buscar a possibilidade de uma junção entre a felicidade e a moralidade, ou seja, aquilo que Kant denominou de Soberano Bem340. Para ele, sempre se viu essa ligação como possível e viável; porém, o erro ocorre quando essa ligação é forçada via o conceito de necessidade, ou seja, como se, ao agir corretamente, o efeito fosse o ganho da felicidade, ou vice e versa. É sobre essa relação, que trataremos no ponto seguinte.