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Os móbiles da Razão Pura Prática

2. NATUREZA E LIBERDADE

3.8 Os móbiles da Razão Pura Prática

Para Kant, a essência do valor de um ato moral reside única e exclusivamente na lei. Quando isto ocorre temos uma ação legal e moral. Quando só ocorre apenas de acordo com a lei e ademais, influenciada por alguma inclinação, a ação só contém legalidade. Nas palavras de Kant:

249 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática . Tradução de Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2001. A 122, p. 83

250 Ibid., A 123, p. 83

O essencial de todo valor moral das ações depende de que a lei moral determina imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade acontece de acordo com a lei moral, mas unicamente mediante um sentimento […], não por mor da lei: então, a ação conterá certamente legalidade252, mas não moralidade253.

Se entendermos por motivo o princípio que determina subjetivamente a vontade de um ser, que por ter uma natureza sensível não é determinado exclusivamente pela simples lei, compreenderemos, segundo Kant, que não poderemos atribuir, em hipótese alguma, uma condicionalidade à vontade divina, e que a vontade humana não pode ter outro móbil, a não ser a própria lei moral.

O problema proposto por Kant é o reconhecimento do modo pelo qual a lei moral é feita o princípio determinante da ação e, por conseguinte, o que essa mesma lei ocasiona à faculdade de desejar do ser humano.

O primeiro ponto é que, segundo Kant, “o essencial de toda a determinação

da vontade mediante a lei moral é que ela, como vontade livre, será determinada unicamente pela lei”254, o que para isso requer que os impulsos sensíveis sejam deixados de lado ou mesmo rechaçados, de modo a não influenciar a vontade em sua tomada de decisão. O resultado é previsível: um efeito altamente negativo.

Kant nos lembra bem que toda e qualquer inclinação é uma espécie de sentimento; e que o efeito produzido pela ação da lei moral sobre a vontade é também um sentimento. Isto significa que não precisamos de um evento concreto da realidade para identificarmos os efeitos que a lei moral causa sobre as inclinações de todo ser racional finito. Citamos o filósofo:

O efeito da lei moral como móbil é puramente negativo e, enquanto tal, este móbil pode ser conhecido a priori. Com efeito, toda a inclinação e cada impulsão sensível funda-se no sentimento e o efeito negativo sobre o sentimento […] é também ele próprio sentimento. Por conseguinte […], a lei moral enquanto princípio determinante da vontade deve, por causar dano a todas as nossas inclinações, provocar um sentimento que pode chamar-se dor255.

Todos os elementos, que nos produzem algum tipo de satisfação, podem ser incluídos no conjunto daquilo que produz o que Kant chama de felicidade pessoal, e

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Legalidade é a ação realizada em conformidade com a lei e que tem no seu fundamento, no seu princípio de ação um sentimento qualquer. O caráter legal da ação se encontra em realizar a ação por dever para com a lei que obriga à ação, mas tão-somente na vontade determinada por um sentimento aprazível em conformidade com a lei moral, mas obrigada para com ela. Toda ação que é conforme ao dever é moral, mas não é moral no sentido strito.

253 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática . Tradução de Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2001. A 126-7, p. 87 (Grifos do autor).

254 Ibid., A 128, p. 88. 255 Ibid., A 128-9, p. 88.

esta é especificamente particularizada, por ele, como egoísmo, também chamado de amor próprio quando identificado como o amor de si; esse mesmo egoísmo pode ser identificado ainda como a complacência em si próprio256, que também pode ser reconhecida como presunção.

Por meio de sua ação, a razão prática prejudica somente ao amor próprio, pois o restringe ao que é óbvio e possibilita que acorde, em nós, o amor de si racional, única condição que temos de nos harmonizar com a lei moral. Entretanto, em relação à presunção, esta é necessariamente aniquilada257.

Se percebermos bem, por esse meio, a lei moral ao agir desse modo é vista como positiva, pois é uma causalidade do intelecto, ou simplesmente a liberdade em ação e, também, como digna do sentimento de respeito, justamente por ser este (o respeito pela lei moral), segundo Kant, o único que podemos conhecer a priori e “cuja necessidade podemos discernir.”258 Portanto, somente a lei moral é o princípio objetivo da vontade e, quando efetivada, elimina necessariamente toda e qualquer influência do amor de si à mesma e causa um dano irreversível à presunção.

Todo homem que realiza uma comparação de sua tendência condicionada com a lei prática é, necessariamente, humilhado em seu íntimo por ela, não permitindo, com isso, que ele esconda esse sentimento de si mesmo.

Pela eliminação das inclinações, consequentemente, da própria tendência que tem uma vontade, sensivelmente afetada, de fazer daquelas o princípio determinante de escolha das ações, a lei moral acaba por exercer um duplo efeito sobre o sujeito agente, a saber, um positivo e outro negativo. Este último dá-se na medida em que age sobre um sentimento, ocasionando um desagrado, um efeito negativo, sobre o sentimento patológico. Entretanto, em virtude de ser um efeito da própria consciência da lei moral, o sentimento de um agente que é determinado sensivelmente é tido por ele (pelo próprio agente) como humilhação; todavia, no que diz respeito ao princípio positivo daquela causa, a saber, a lei, ele (o sujeito agente) reconhece o que sente como sendo um grande respeito por aquela mesma lei.

Podemos afirmar, portanto, com Kant que: “o respeito pela lei não é móbil

da moralidade, mas é a própria moralidade, subjetivamente considerada como móbil”.259

256 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática . Tradução de Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2001. A 129, p. 89

257 Ibid.

258 Ibid., A 130, p. 89.

Ou, dito de outro modo, o sentimento moral é determinado pela lei e não o seu contrário. A liberdade deve ser compreendida, dessa forma, como a capacidade de limitação da ação das inclinações no que toca o princípio de determinação de sua ação. Nos termos de Kant: “a liberdade, porém, cuja causalidade é determinável simplesmente pela lei, consiste justamente em ela restringir todas as inclinações, por conseguinte, a apreciação da própria pessoa à condição da observância da sua lei pura.”260

260 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução de Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2001. A 139, p. 94