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4. MORALIDADE E FELICIDADE

4.3 O fim do caminho moral: A Religião

4.3.1 O Mal Radical na natureza humana

A pergunta que sustenta a investigação desse problema é: o homem é bom ou mau por natureza?405 Na resolução desta questão, Kant entende por natureza apenas a máxima, que, subjetivamente, atua no livre arbítrio do homem. Portanto, o primeiro ponto é identificar que o homem só pode ser dito como bom ou mau406, naquilo que toca sua natureza; somente no âmbito do princípio subjetivo de seu querer. Dessa forma é que se deve entender que o mal é inato407 ao homem racional, tendo sua origem neste mesmo homem e não na natureza. Porém, uma questão: se o homem não se cria, como vai dar origem ao mal (inato) nele desde sua origem (dele, o homem)? A resposta está

405 CRAMPE-CASNABET afirma que a intenção de Kant com o conceito de mal radical não se direciona a favor do cristianismo, corroborando com o conceito de pecado original, pelo contrário, “Kant critica radicalmente a teoria do pecado original, pois ela implica a noção de um mal hereditário transmitido pela espécie e na espécie. […] A Bíblia narra em forma história que o pecado é perversão da ordem da lei moral.” (Op. cit., p. 100).

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Em virtude da opção (dos recortes) que fizemos na filosofia prática de Kant entendemos juntamente com PAVÃO (2007) e GALEFFI (1986) que o problema do mal radical está ligado necessariamente à moralidade e não à religião como sustenta – segundo o próprio PAVÃO – Bekenkamp em seu artigo: Kant e o problema do mal na filosofia moral e Bruch no texto La philosophie Religieuse de Kant. A discussão acerca do local correto do mal radical no sistema filosófico kantiano nos parece muito interessante, mas preferimos não enveredarmos por este caminho por entendermos que este é um tema que por si só é passível de um grande estudo “isolado.” Entretanto, pensamos que é na moral, especificamente, a morada e local de debate sobre o mal radical e não na religião. Conforme CRAMPE- CASNABET, “se a função de toda religião é tentar uma explicação da existência do mal, a teoria do mal radical não é, entretanto, extraída do conteúdo religioso.” (Op. cit., p. 98).

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“O mal radical, dissemos, é inato no homem. Isto não quer dizer que seja hereditário: o homem é sempre responsável por ele.” (PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 180) Segundo FILHO, “o mal encontra-se enraizado no homem em geral, conquanto não pertence à sua essência.” (O mal Radical e a Possibilidade da Conversão ao Bem. Studia Kantiana, v.2, n. 1, p. 87-104. 2000, p. 89).

no livre arbítrio humano. O mal está na sua liberdade408, mas precisamente nas máximas que direcionam sua ação. Citamos o filósofo:

[…] diz-se inato simplesmente no sentido de que é posto na base antes de todo o uso da liberdade dado na experiência (na mais tenra juventude retrocedendo até o nascimento) e, por isso, é representado como presente no homem à uma com o nascimento, não que o nascimento seja precisamente a causa dele.409

A natureza humana tem como finalidade, para Kant, três disposições originárias, a saber, para a animalidade, para a humanidade e para sua personalidade.410 A primeira indica o amor de si mesmo e que, para tal, não pede auxílio à razão para satisfazê-lo. Esta disposição se lança em três direções: primeiramente na direção de sua autoconservação: o indivíduo busca sempre, naturalmente, preservar em primeiro lugar a si próprio; em segundo lugar, busca o indivíduo a propagação da espécie e, para isso, entra em contato com outros semelhantes (mas do sexo oposto), para, por meio do sexo, proporcionar a perpetuação e o crescimento da espécie humana; em terceiro lugar, o indivíduo tem uma espécie de impulso a viver em sociedade e, nesta convivência, podem-se acrescentar vícios dos mais variados possíveis, que, apesar disso, não saem dessa disposição à sociedade. Esses vícios podem ser os da luxúria, da gula, da ira etc. A disposição para a humanidade, verdadeiramente, refere-se ao amor a si próprio. Mas, quase sempre em sentido de comparação, ou seja, por esta disposição busca o homem sempre obter uma valoração acerca de si, valoração esta que será dada pelos outros. Entretanto, esta valoração não será permitida lhe deixar inferior a outro e, justamente aqui, brotará o sentimento de superioridade em relação aos demais e, desta compreensão (mesmo ação) podem surgir os vícios mais horrendos da humanidade, justamente por ter sido promovida a inveja, quando da comparação de um homem com outro, ou outros

homens. Porém, estes vícios, segundo Kant, “não despontam por si mesmos da natureza

como de sua raiz, mas, na competição apreensiva de outros em vista de uma

superioridade que nos é odiosa”.411

408 Segundo CORREIA, “a doutrina do mal radical é então uma tentativa de dar uma fundamentação filosófica adequada à liberdade moral, e ao mesmo tempo, de tornar possível a concepção da responsabilidade pelos atos não conformes à lei moral.” (Op. cit., p. 85) FILHO assim comenta: “… pois, em quanto mal do ponto de vista moral, tem que ser imputável, e para tanto, precisa originar-se de um ato livre…” (Op. cit., p. 89).

409 KANT, Immanuel. A Religião Nos Limites da Simples Razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 28.

410 Ibid., p. 32. 411 Ibid., p. 53.

A disposição para a personalidade é a capacidade, por assim dizer, que tem o indivíduo de ver a lei moral como móbil do arbítrio; ou seja, o homem é passível de ser influenciado pela lei moral. Neste caso, é apenas um sentimento moral, visto não

agir diretamente e sem restrições na “alma” do ser humano, mas tão-somente este se

permite ser atingido por ela, pela lei moral. Ora, destas três disposições, apenas a

“personalidade” tem fundamento na razão pura prática, ou seja, a razão enquanto

autolegisladora. Mas todas elas são boas, não são contrárias à lei moral e, também, são de igual modo, disposições para o bem e deste modo fomentam o seu surgimento.412 E são também originárias, em virtude de estarem no âmbito da possibilidade da própria natureza humana. Porém, tem o ser humano, também, uma propensão para o mal413.