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Dos ignorados e dos Acusados: o nome próprio no acesso à saúde e à segurança

2. A MARQUIZE E O MARQUEZAN: DA RUA PARA O SERVIÇO DE EMERGÊNCIA

2.2. Dos ignorados e dos Acusados: o nome próprio no acesso à saúde e à segurança

É o momento de entrar pela porta da frente da emergência. “Nome?”, é a primeira coisa que a(o) recepcionista lhe perguntará, sempre com um vidro entre o usuário de saúde e o profissional “para evitar agressões” (profissional administrativo do Hospital Pronto Socorro); “para evitar contaminações” (recepcionista do Hospital Cristo Redentor). “Documento?” Não tem? Não se preocupe, no SUS todas as pessoas são atendidas, mas há quem não goste. “O que me custa perder 5 minutos para fazer o cartão SUS se a pessoa não tem? Aí essa colega ameaça a pessoa sendo que vai ser atendida igual.” (recepcionista do Hospital Cristo Redentor)

Se você conversar com a recepcionista com mais de 15 anos de trabalho no HPS verá que o sistema de informação, até ano 2014, era impresso em formato de boletim de atendimento: “às vezes o paciente se perdia lá dentro, ninguém sabia em que momento do atendimento ela estava” (gestora).

Com o advento do prontuário eletrônico é possível acessar pelo boletim de atendimento exatamente em que processo de atenção em saúde o usuário de saúde se encontra. Além disso, tem-se o histórico de todos os acessos em saúde que foram realizados pelo usuário de saúde no HPS e igualmente em outros hospitais municipais da cidade. Se fosse no Hospital Cristo Redentor se aplicaria ao acesso informatizado de todo Grupo Hospitalar Conceição, já que é um hospital federal. Em ambos locais, tudo isso é possível com um nome, de preferência munido de um documento de identidade ou CPF.

Depois do Nome vem o “qual o motivo?”, “o que aconteceu?”. Queda da própria altura pode ser o quesito registrado no boletim de atendimento, mas se foi devido a violência interpessoal será registrado como Agressão. Ferimento por arma de fogo, ferimento por arma branca e outras violências também são registradas dentro do quesito Agressão. “Muitas

pessoas não contam pois estão acompanhadas pelo agressor, como violência do homem contra a mulher. Mas se na classificação de risco eles dizem que foi agressão nós mudamos no sistema.” (recepcionista)

A grande diferença entre os dois hospitais de trauma é que no Hospital Cristo Redentor (HCR) a recepção não possui a incumbência de perguntar o motivo que trouxe o sujeito ao serviço de saúde, ela só pega os dados de nome, endereço e cartão SUS. Quem busca saber a demanda e necessidade em saúde do usuário de saúde será posteriormente o(a) enfermeiro(a) da sala da Classificação de Risco, o que parece ser ótimo para a recepção pois diminui o risco de agressão verbal e parece aumentar o (a) do(a) enfermeiro(a), de acordo com o profissional da portaria, pois a classificação de risco fica numa sala bem na entrada, antes mesmo da recepção.

Figura: A recepção do Hospital Cristo Redentor. Placas explicando ao usuário de saúde sobre a classificação de risco (azul, verde, amarelo, laranja, vermelho) estão logo na entrada do hospital, na recepção à esquerda (foto) e à direita.

Figura: No HPS, a imagem foi idealizado pelo projeto Quali SUS para reforma que começou no ano de 2014. (Observação: salienta-se que o cartaz de classificação de risco é de tamanho muito reduzido em comparação com o postulado. À esquerda o guichê da recepção não possui cadeiras, sua altura é para as pessoas ficarem de pé. O banheiro que aparece é o feminino; a máquina de salgadinhos e cadeiras conferem à imagem. O homem sentado na cadeira é descrito na imaginação do vigilante como “ele já foi atendido e agora tá lendo um jornal”.)

No Hospital Pronto Socorro (HPS), a coordenadora da recepção e da entrada das visitas do hospital chama minha atenção: “Eu saber teu número celular pode não ajudar em nada. Tem que ter no cadastro do Cartão SUS o nome da tua referência. Se vier sem nenhum documento, desacordada, como vou saber quem tu é? Como vão chamar teu familiar?” A recepcionista do HPS me mostra por mais de uma hora como funciona o boletim de atendimento e faz questão de complementar o meu cadastro com o nome do familiar. “Às vezes a gente revista a pessoa desacordada para ver se encontra algum documento, quem sabe uma conta de luz que daqui a pouco a pessoa ia pagar antes de sofrer o acidente.”

Quando perguntei quais eram as possibilidades de ter o Nome Social incluído no sistema de informação do HPS, a recepcionista confirmou o que uma das gestoras do HPS havia me dito, que isso dependeria da Procempa (Processamento de Dados Do Município De Porto Alegre), pois estavam há muito tempo para encaminhar essa mudança. Verifiquei então com ela, se haveria linhas de fuga para o sujeito ter direito ao nome, tanto no sistema informatizado como nas vozes dos profissionais de saúde. Fomos testando todas as possibilidades: não há como incluir o nome social visto que o nome deve se encaixar com o CPF fornecido. Ela poderia colocar o nome social após o nome de registro (sem parênteses nenhum pois se fizer isso o nome some) mas os profissionais irão chamar pelo nome que aparece primeiro. E como não é possível colocar nenhuma pontuação na caixa de texto “Nome” acreditarão ser um sobrenome.

As tecnologias que encerram a possibilidade de existência das pessoas transgêneros dentro do circuito hospitalar, são antes efeitos das relações de poder cotidianas: “Se a pessoa incomoda muito que nem chegou um homem dizendo que a identidade estava sendo encaminhada, que era um direito dele, eu ponho o nome social depois do nome de referência”. A recepcionista me orienta ir a campo nos finais de semana: “Também aparece os homossexuais, eles se prostituem, vem tudo agredido da rua.”

Não se pode denominar um nome sem o documento de registro a não ser que seja descrito como IGNORADO, caso dos que não possuem nem documento nem consciência. Uma das recepcionistas revela: todas pessoas são atendidas, com documentos ou sem. E se elas vierem sem nada será registrado o nome que elas derem (se bater com o CPF do sujeito). Nesse caso, a polícia pode ir checar a real identidade, mas é uma iniciativa que é da própria polícia civil32. Junto com o nome Ignorado é gerado um número. Cada pessoa tem um número no hospital que guarda todos os prontuários do paciente. “O médico me xingou que eu não cadastrei pelo nome, mas ele chegou por agressão e não sabia do número de nenhum documento”, disse a recepcionista.

No caso do Hospital Cristo Redentor (HCR) uma residente conta que há uns meses o termo Ignorado se tornou DESCONHECIDO, no caso quando o sujeito não tem nenhum documento mesmo que lhe dê um nome. “Que bom que mudaram, achava horrível o nome Ignorado”. (residente multiprofissional do Hospital Cristo Redentor)

Mas o cúmulo de não ter nome é quando nem o aparelho estatal o descobre. Em uma das UTI’s do HPS é preciso três profissionais para entubar novamente o jovem desacordado antes que a visita dos familiares comece (médica, fisioterapeuta, enfermeira e técnica de enfermagem). Se estivesse consciente, ele teria dado um nome, mesmo sem o documento. O jovem adulto negro encontrado em via pública desacordado foi trazido pelo SAMU com traumatismo craniano e desde então em seu prontuário se encontra o motivo: “suspeita de agressão”.

Ele é mais um dos que entrou como IGNORADO. O IGP (instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul), através de solicitação do plantão policial, desloca o papiloscopista (profissional que verifica quem é o sujeito pelas digitais) para resolver essa e outras palavras cruzadas de nomes próprios. No entanto, nem para o IGP esse homem existe. Mas ele está ali, sendo entubado novamente após a tentativa de poder torná-lo consciente. Será necessário então enviar as digitais para identificação a outros estados brasileiros, visto que não há comunicação direta entre eles. Quem é? De onde ele é? “Que doido isso, saber que o cara

32 Será explicado posteriormente na tese como funciona o fluxo de atendimento da segurança pública no hospital e isso inclui o Nome do sujeito na recepção.

pode não ter uma identidade, não ter um nome. Se nada der certo vão dar um novo nome para ele, um novo registro. É como se ele pudesse renascer no hospital. Mas também será como se não tivesse tido uma história de vida.” (residente multiprofissional). Em outra ocasião, quando pergunto ao policial civil como percebe essa situação: “É necessário o hospital ter o nome do sujeito pois precisa prestar as contas do número do documento pessoal. (policial civil).

“CPF, RG é atenção em saúde sim!”, afirma uma das enfermeiras do Consultório na Rua do Grupo Hospitalar Conceição no Seminário sobre Saúde da População de Rua que ocorreu no HPS. Sem os documentos, o Ignorado não tem acesso a todos os documentos; não foi possível para uma educadora social de rua conseguir o exame CD4 para posterior internação de um rapaz “nós perdemos ele por isso, ele morreu”.

Não ter um nome legítimo às ordens biopolíticas de controle da população não revela apenas sobre quem acessa os serviços de saúde e como o acessa. Da importância do nome como meio de comprovação do atendimento, mesmo que o seja como Ignorado, e todas informações de seu passado na instituição, temos especialmente a produção do sujeito criminoso. Um lugar de captura.

O policial civil do plantão policial tem acesso a maioria dos homens que chegam foragidos. Do confronto entre facções de tráfico. Do confronto com a brigada militar. De assalto a mão armada. A Central da Polícia Civil geralmente avisa por telefone o plantão do hospital de que possivelmente irá chegar determinado homem. Enviam o nome e a foto. Quando não é desse modo é a própria equipe da recepção que liga avisando.

Vir por meios próprios quando envolvido por conflitos armados também é um forte preditivo: de carro, de táxi, a pé. Homens que chegam por ferimento de arma branca e de arma de fogo nesses casos são considerados pelo policial civil como “90% dos casos que estão com problemas com a lei. Problemas com a lei: mandado de prisão; foragidos do sistema prisional, não cumprindo adequadamente a semi-liberdade. Também os recentemente envolvidos em crimes que se refugiam no hospital de trauma “quando a dor se torna insuportável, pois eles sabem que aqui possivelmente serão pegos” (policial civil).

Uma profissional da polícia civil não irá se preocupar em dar voz de prisão para algum foragido da justiça, ela chega prendendo o punho à maca. Há um pacto tácito entre usuários de saúde e a polícia civil, todos sabem que ao adentrar no hospital se está sendo resgatado antes pelas malhas da segurança pública. Para escapar dessa lógica, os feridos buscam rotas de fuga, serviços de saúde onde não há plantões policiais. No caso do município de Porto Alegre seria o Pronto Atendimento da Cruzeiro, o Hospital da PUCRS, e serviços de Atenção Básica em que “eles obrigam os médicos a atenderem para não virem para cá e para o Hospital Cristo Redentor”. (policial civil)

Outra estratégia é dar nome falso, situação comum na recepção. Dizem que estão sem o documento. Como o homem que forneceu o documento de identidade que o sistema informatizado do hospital não reconhecia, impossibilitando inseri-lo no boletim de atendimento. “Claro que dava erro, morto não entra no sistema. Ele usou o documento de um policial militar morto. Eu fingi que estava tudo certo, mas assim que ele passou para a classificação de risco liguei para o plantão policial e disse que a carteira de identidade não era dele. Aqui qualquer FAF e FAB que chega ligamos pra polícia civil.” (profissional da recepção)

Para contar a história sobre a abordagem do policial aos casos de reconhecimento do sujeito do crime, ela levanta da cadeira que fica atrás dos vidros e começa me empurrando contra a parede: “Libera aí, libera aí que vai ficar ruim pra ti!” Apesar de estatura baixa ela dramatiza com todo vigor uma feição imponente, os braços duros balançando em direção a mim. É o momento de eu ser ameaçado, envergonhado. É assim que o personagem que me foi convocado a assumir deve se sentir.

“Nós da saúde não podemos nos meter nisso, eles não nos respeitam, mas o policial sabe como agir. O policial civil viu que era foragido da polícia no sistema dele na hora, e no outro dia a SUSEPE já estava lá acorrentando ele e levando para o leito dos custodiados”.

Os profissionais de saúde não interferem nesse processo. Aliás muitos deles acessam o plantão policial “só quando é um problema pessoal deles para ser resolvido” (policial civil), ou quando, o paciente, sem quaisquer documentos ou informações precisa ter os familiares contatados. Como um usuário de saúde que chegando por agressão na face/cabeça não sabia informar nada sobre si. Solicitar o serviço do papiloscopista nesse momento parece ser a única saída.

Em outra ocasião, acompanhei a profissional do serviço social, solicitando a assessoria do policial civil alocado na sala ao lado (no 5 andar ficam as salas do Plantão Policial, a Saúde Mental e o Serviço Social). Era o caso de um jovem que ao tomar uma paulada na cabeça não lembrava de nada sobre si mesmo. A assistente social sugeriu ao policial fazer um BO de Desaparecido para conseguir pelo IGP, o papiloscopista, que pegaria as digitais e faria análise de quem é o fulano. “Mas como vamos dar por desaparecido quem não tem nome?”, pergunta o policial civil para a profissional de saúde.

Então ele liga para o IGP em frente à assistente social: “É por isso que o Brasil não vai para a frente. A responsável não está lá e precisamos dela para liberar esse encaminhamento.” Há 10 anos o IGP está como departamento separado da polícia civil, para ele isso prejudica o trabalho da segurança pública. O rapaz sem memória precisou de dois dias para ser declarado seu nome através da análise do papiloscopista e mais uns bons dias para se lembrar de quem era.

Essa obviamente não será a última vez que veremos a entrada do hospital como fronteira de reconhecimento do sujeito do crime. Nessas relações de poder intercambiantes, a polícia civil nem sempre terá acesso a todas as informações produzidas. Vez ou outra, profissionais de saúde impedem que se tenha acesso ao prontuário sem a autorização do usuário de saúde, ou que acessem o sujeito internado para pegar depoimento. No HPS os médicos se eximem de registrar o nome da vítima nas provas do crime coletadas em cirurgia (quando médicos retiram materiais cortantes ou projéteis). Mesmo assim, a polícia estará andares acima da recepção, um olho que tudo vê (ou um ouvido que tudo escuta). Se não for por dentro dos vasos comunicantes do hospital, será pelas tecnologias de comunicação próprias à polícia civil.

Nesse interím, o corpo traumatizado é também mortificado. A separação entre o internado e o mundo externo, a perda do seu nome, a obrigação em realizar uma rotina diária de vida que considera estranha a ele, aceitar um papel com o qual não se identifica e a violação da fronteira entre o ser e o ambiente, perdendo, assim, sua privacidade, compõem algumas das mutilações e mortificações do eu nas instituições totais. (Erving Goffman, 2001)

Exemplo, são as situações vexatórias e humilhantes vividas pelas pessoas transexuais e travestis ao ter que portar documentos em completa dissonância com suas performances

de gênero. Existem corpos que possuem sua cidadania regulada (Jessé Souza, 2006) como o/a dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e das pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros). A cidadania precária representa uma dupla negação: nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos que carregam no corpo determinadas marcas. O acesso e o cuidado em saúde às masculinidades marcadas pela violência são possíveis pela fragilidade orgânica e física imposta ao corpo, ao passo que sua biografia é suprimida no direito de existir.