• Nenhum resultado encontrado

Tigrão, chinelo e bandido: termos guarda-chuva na produção social de homens

4. HISTÓRIAS SOBRE A “TIGRADA”: A ECONOMIA MORAL NO HOSPITAL DE TRAUMA

4.2 Tigrão, chinelo e bandido: termos guarda-chuva na produção social de homens

“Quer dançar, quer dançar O tigrão vai te ensinar Vou passar cerol não mão Assim, assim” (Cerol na mão, Bonde do Tigrão,2003) “Tchutchuca Vem aqui pro seu Tigrão Vou te jogar na cama E te dar muita pressão!”

(Tchutchuquinha, 2003)

Fábula. Composição literária para crianças. Os personagens são animais com características humanas que revelam um ensinamento moral de caráter instrutivo. Cada

animal simboliza algum aspecto do homem. Leão: a força; a Raposa: a astúcia; a Formiga: o trabalho. E há o Tigre.

Homem-animal, que domina ferozmente sua presa, é o rei do poder sexual. Para quem conhece minimamente o funk brasileiro, lembrará do Bonde do Tigrão. Um dos maiores representantes do funk, o Bonde do Tigrão é constituído por homens negros da favela do Rio de Janeiro com letras de temática erótica/pornográfica que fizeram sucesso nacional e internacional a partir do ano de 2001. (Denis Weisz Kuck, 2005)

Um valor social positivo do homem pobre e negro foi possível pela via artística. No entanto, ainda revela, em parte, a animalização racista de nossa sociedade. Exarcebação físico-genital, incompletude intelectual, são vistas como inerentes a esses homens. (Mônica Conrado, Alan Ribeiro, 2017, p. 75). bell hooks (1992) revela os modos pelos quais os homens são socializados na família, nas escolas e nos grupos de amigos, apontando a virilidade como expressão que mascara complexidades emocionais. Virilidade explicitada pela sexualidade potente e/ou pela sua força física é um modo de ser reconhecido publicamente.

Nas fábulas de homens-tigres no âmbito dos hospitais de trauma os personagens não cantam, não dançam. Não entretém o povo. A entrada deles é indesejada. De tão naturalizada a categoria, soube que numa das instituições, foi necessário que se estabelecesse uma conversa com a direção científica, em um dos seminários da residência multiprofissional no ano de 2017, para que não usassem e não incentivassem o uso do termo depreciativo.

Então você é uma águia (ou apenas um passarinho me contou), que busca na sala de descanso dos profissionais da emergência de saúde do HPS saber: Quem é o tigre; quem eles são, onde eles vivem? Nada se escutou sobre e já faz um mês.

Estaria extinto? Até o entrar rasante e o gesticular da raiva. Sinal de ameaça, que se põem rente, com todo seu corpo, em frente a outra colega técnica de enfermagem: “O fulano, sabe o fulano? Veio me ameaçar agora, tu acredita!? Que iria me pegar na rua quando ganhasse alta. Tigre né? Só podia ser tigre. Mas eu peguei e falei bem alto na frente de todo mundo para ele: Ah é, tu vai me pegar na rua!? Fala mais alto agora. Viu, gente ele está me ameaçando!!! Vocês são testemunhas! Vou chamar agora o plantão policial e fazer um BO (boletim de ocorrência). Quero ver se tu vai continuar me ameaçando!”

- E tu fez o B.O.? Perguntou a colega.

-Não fiz nada. (E sorri de seus impropérios). Queria assustar ele para parar de me incomodar.

Em outra ocasião, ao encontrar a mesma técnica de enfermagem, ela ri quando pergunto sobre o que significa Tigre para o hospital: “Ah, o tigre. Me lembro de ti quando reclamei daquele paciente. Sim, ele era. Atormentou eu e os pacientes reclamando e caminhando sem parar pela sala amarela, pedia coisas o tempo todo. Tigre é aquele cara incomodativo, que faz escândalo, que ameaça, que briga com os profissionais. Parecem bandidos mas nem sempre são.” (técnica de enfermagem).

“Nem sempre são”. Na construção social do homem-tigre como se dá essa aparição? (Aparição não de natureza, já que essa sempre fora nomeada pelos homens e não pelas leoas, cães, lobos marinhos). Quem nos ensinaria mais do que profissionais técnicos de enfermagem de uma das enfermarias do Hospital Cristo Redentor? “Nós também somos Tigre, nós somos da comunidade, a gente sabe como funciona. A gente é tigrada porque a gente fala alto, conversa, não é fechado que nem em outras enfermarias, a gente é tudo doido.” “Tiro, facada, agressão. A gente trabalha com os caras do crime, das facções.”

“Meu negócio é crime, roubo, sacanagem (risos)”. Toda vez que os técnicos de enfermagem declaravam que eram Tigres, em meio às medicações que iriam ser administradas, havia muitas risadas. O humor era uma tangente de convivência na relação entre muitos deles.

Ao andar por longos corredores com uma das técnicas de enfermagem, vamos parando de quarto em quarto para que ela me apresente o espaço. Ela vai passando pelos quartos e cumprimentando: “E aí Capitão”. “Aquele ali é o capitão porque é o primeiro a internar no quarto”. Entre quartos, ela abraça outro homem no corredor: “e aí boy magia!” Enquanto estávamos no corredor, pergunto como funcionam os apelidos, como são escolhidos. Ela conta ao lado do boy magia que geralmente os próprios pacientes dão os apelidos, que eles escolhem geralmente pelo motivo que os levaram para lá.

“O apelido do boy magia era seteléguas porque ele quebrou a perna quando tentaram matar ele”. Ela estava para responder sobre a mudança de apelido desse usuário de saúde

quando nesse momento se aproxima no longo corredor o simpático “risca faca”, homem branco, de cerca de 40 anosque teve perfuração no abdome por ferimento de arma branca. Eles relembram, entre risadas, de quando ele fugiu “de fininho” para um outro quarto desocupado ao se deparar no leito, ao lado do seu, com o familiar do homem de facção inimiga que tentara lhe matar.

- Eu ia administrar a medicação dele e pensei: Ué, mas cadê ele? Fui encontrar bem quietinho no outro quarto junto com todas as coisas dele. Tava com medo né?, ela pergunta rindo para o homem.

- Não tava com medo nada, qualquer coisa botava pra voar. (E todos os três riem: profissional de saúde, risca faca e boy magia/ex seteléguas).

-É, mas tu é gente fina (ela olha para o “risca faca”), o outro que era semente do mal, diz a técnica.

“Semente do mal” é nome dado a homens como aquele que nú, jogava comida para o alto e gritava “vagabunda!!!” para a enfermeira. Na reunião de passagem de plantão, a enfermeira dizia em tom de piada para a enfermeira chefe do turno anterior: “A gente tinha que andar com um teaser para dar choque neles nessas horas. Fiquei com medo dele me bater. Aí chamei o psiquiatra para ver se dava uma medicação para ele pelo menos dormir à noite.” Em outro momento, a mesma técnica de enfermagem que me apresentou os quartos disse à enfermeira, em meio ao preparo das medicações na antisséptica sala da enfermaria: “Ele é semente do mal, deixa ele sem comida.” E dá risada.

Nessa selva de pedra, os corredores da internação do Cristo Redentor podem permitir a circulação aos que estão mais dispostos e interessados ao contato para além do delimitado espaço do quarto. Um deles havia recebido alta hospitalar e estava perto do elevador, quando de longe a técnica o chama: “Já vai embora, não vai! Fica um pouco mais.” Ele diz: “Eu vou, tu não gosta de mim e sorri.” Nesse jogo de reconhecimento, aos poucos se aproximam até que se abraçam: “Tchau macumbeira, obrigada por tudo”. Ela responde: “Tchau macumbeiro.”

Logo depois, ela comentou, enquanto arrastava uma bandeja de metal de rodinhas com medicamentos e materiais de curativo: “Esse paciente é baiano, tu notou né? Ele era super difícil, arrancava todas as agulhas do soro que colocávamos. Arrancava as agulhas e dizia

que caía. Não dava duas horas. Até que eu peguei o garrote (elástico para torniquete) e comecei...” Então ela começou a dramatizar sua ação pra mim em meio ao corredor: Pegou o garrote e jogou de modo rápido para trás e para frente, para frente e para os lados; enquanto o corpo se movia em ondas, ela pronunciava palavras das quais eu não entendia.

“Nesse momento ele também começou a falar baixinho como se estivesse rezando. Nós dois ficamos rezando como numa sessão de umbanda. Eu disse a ele: agora vou te dar uns passes, e eu estalava os dedos.” (Os dedos dela faziam uma música para a cabeça girar até esquecer) “Agora a agulha não vai cair mais, viu, tá protegida. E não é que a agulha do soro durou dois dias?”

Pergunto qual sua religião, é quando ela me mostra a correntinha de Jesus Cristo. “Sou cristã.” Ela também acha graça quando rememora o dia em que disse para o “baiano” que ela iria fazer uma reza para ele ter alta e no outro dia o médico “o liberou”.

Os técnicos de enfermagem debocham de si mesmos e dos desafios que vivenciam na atenção aos homens que chegam por conflitos violentos. Como a vez em que o técnico de enfermagem, para acalmar um senhor muito agressivo e que segundo ele tinha “algum problema cognitivo” começou a cantar “Brilha, Brilha Estrelinha”. “Só falta ele cantar a galinha pintadinha”, brinca a colega. A infantilização do paciente seria citada por estudos no terreno hospitalar, como parte da vida nas instituições totais, onde o corpo deve responder docilmente às manipulações. “Eu costumo cantar para os pacientes que estão muito agitados. Cantei bem baixinho, bem suave e ele começou bem devagarzinho a fechar os olhos. Parecia um bebê que eu estava ninando”.

Essa é a equipe reconhecida como Tigre, subverte os próprios preceitos acadêmicos sobre o poder disciplinar nos hospitais. Nos departamentos e outros hospitais do Grupo Hospitalar Conceição, esses profissionais de saúde, antes de serem alocados na equipe, ouviram muito sobre a enfermaria que recebe especificamente homens que chegam por agravos devido a conflitos violentos: “Não acredito que você vai lá com os Tigres. Lá é péssimo. Só bandidagem.”

Os técnicos de enfermagem contam que a relação com o restante do Grupo Hospitalar Conceição (que agrega o Hospital Cristo Redentor/HCR) é estigmatizada. Quando é necessário

acompanhar algum paciente para realizar algum exame indisponível, muitas vezes os profissionais se sentem maltratados: “Uma vez ameaçaram de não atenderem o paciente no Hospital Conceição dizendo que não havia sido marcado o exame, sendo que foi. Tive que bater pé para eles atenderem. Eu vi a cara de nojo da profissional dizendo: Tu é da equipe tal né?”.

O complexo do GHC, inclui diversas estratégias de educação permanente na atenção básica, constituída pela residência médica e multiprofissional, nas quais, inclusive, a pesquisadora foi convidada a participar de alguns espaços. No entanto, para as enfermarias do Hospital Cristo Redentor, a paisagem lida pela pesquisadora é de uma jaula sem grades aparentes. Solidão. Profissionais do campo da enfermagem nem sequer sabem da existência desses eventos, não há residência em saúde e outros núcleos de saber que transitem frequentemente, a fim de provocar a heterogeneidade de leituras e práticas, nem mesmo é oferecido espaços de educação permanente sobre temáticas que lhes atravessam e lhes causam angústias, como violência, abstinência por uso de drogas ou acolhimento dos homens atravessados pela violência urbana.

O humor, nesse contexto, se revela como estratégia defensiva que, a princípio, classificaria o sujeito internado, mas que nesse contexto, produz sua eficácia simbólica no processo de cuidado em saúde. Por ser uma equipe que também carrega o estigma de ser Tigre, a ironia, apresenta-se como potência de subverter o modo de aproximação, para além do sujeito nomeado pelo número do leito, para além de não olhares, não sorrisos, não toques. Para além do corpo-procedimento. Rir da doença, da tragédia, é possível entre pessoas com posicionamentos subjetivos similares, que advêm de territórios periféricos.

É uma estratégia complexa. A rotulação irônica nega a singularidade do sujeito ao passo que tenta dar um outro destino relacional para além da assepsia das relações. Além disso, busca subverter o próprio saber-poder médico que aparece em instantâneas visitas à enfermaria, deixando termos e diagnósticos técnicos escritos no prontuário de cada paciente onde o técnico de enfermagem deve ler e seguir as instruções sem que, minimamente, algum diálogo sobre o usuário de saúde seja estabelecido. Aquele que permanece então, lida com o

corpo que sofre, sem qualquer escape de reconhecimento institucional,68 enquanto o profissional da medicina transeunte deteria o poder decisório valorizado no cuidado em saúde sobre o sujeito.

De todo modo, é importante salientar a linha limítrofe que separa a ironia enquanto relação de poder que submete o outro à vergonha daquilo que é uma forma de aproximação e proximidade consentida entre duas pessoas, inclusive como produtora de cuidado em saúde, como bem vimos nos casos acima. Paradoxos, que não devem ser explicados subitamente por quem observa tamanha riqueza de movimentos, a fluidez do que escapa e se reinventa diante de determinados contextos.

Como no HPS, de um rapaz que deu o nome falso inspirado em um cantor famoso para não ser reconhecido pela polícia civil. Ao ser encaminhado para os leitos de custódia continuaria a ser chamado exclusivamente pelo nome do cantor e não pelo nome de registro. Notei em uma das estagiárias da enfermagem sua aproximação simpática ao entrar no quarto: “E aí Roberto Carlos, vai vir teu costureiro?” (o costureiro seria a pessoa de empresa contratada pela família para tirar as medidas para colete ortopédico). O jovem permanece calado e sério, pareceu não gostar, mas sorriu ao ouvir: “quando tiver alta tem que nos deixar umas rosas, como o cantor”.

Logo depois ele ironiza a um dos agentes da Susepe que estava saindo do quarto para ir almoçar “Me traz uma trufa?” O agente de custódia da SUSEPE: “Claro, de que?” “De café”. Ambos riem.

Quando o profissional se retira da sala, o jovem “Roberto Carlos” comenta comigo e com outro agente da SUSEPE que permaneceu na escolta69: “Eu e ele, a gente já brigou bastante, mas depois a gente se entendeu. A gente brigou para se entender.” Ao escutar isso, logo após o outro profissional da Susepe relembra: “Esses dias ele me pediu um abraço: me

68 Os técnicos de enfermagem em relação aos médicos costumam reclamar “que nem olham na tua cara e te dão bom dia”. Quando o paciente vem da cirurgia, o primeiro curativo deve ser aberto pelo médico que olha e deixa como está sem trocar. “Costumam tirar sondas e curativos com sangue e atirar no chão para técnico de enfermagem limpar e trocar.”

69 “A regra é sempre dois agentes da susepe permanecerem na escolta dos presos” (coordenador dos hospitais de custódia).

dá um abraço, me dá um abraço cara. Ele tava todo mijado por isso queria me abraçar”. “Custodiado” e agente da Susepe riem, dessa vez buscando em meu sorriso pactuar um momento de leveza, qualquer brisa que lhes dessem fôlego para permanecer no denso ar de um cubo sem janelas.

No entanto, há um tabu nessas interações espontâneas. Profissionais da SUSEPE e principalmente da Brigada Militar revelam que nenhum contato com o “preso” deve ser realizado. “Tem colegas meus que eu digo: Oh, te liga, não dá abertura. Eu só falo com eles quando quero pescar alguma informação. Eles dão muita liberdade, só falta convidarem o preso para assarem um churrasco juntos.”

Até o ano de 2017, no HPS, agentes da Susepe (para casos de homens foragidos do presídio ou encaminhados do presídio ao hospital) e/ou da brigada militar (para casos de flagrante ou denúncia) ficavam fazendo vigília desses pacientes fora da ala de internação no HPS, no entanto, no governo do prefeito Junior Marquezan, houve acordo entre a própria secretaria de saúde e segurança pública, diretamente agenciada pelo prefeito, para a construção de um quarto de custódia70 com três leitos. Dizem que o espaço é blindado; o quarto foi construído nos fundos da Unidade de Neurologia ou a chamada antiga Enfermaria Oito do HPS.

O quarto para homens privados de liberdade é chamado pela maioria dos trabalhadores da enfermaria de Sala VIP, visto que há quem pense que há certo privilégio em ocupar um quarto, quando, no caso do HPS, não há nenhum tipo de separação entre as macas. O quarto é VIP, mas também é chamado de Mini Carandirú71.

Ao ser convidada para tomar chimarrão com os agentes da Susepe em frente ao quarto de custódia do HPS, uma das médicas especialista da enfermaria cumprimenta um dos profissionais em exercício de escolta: “Eu conheço o enfermeiro (nome), é teu irmão, não?”

70 Em capítulo específico sobre os leitos de custódia, descreveremos as condições de possibilidades em que emergiu o quarto no HPS.

71 Carandirú é nome dado a Casa de Detenção de São Paulo. Uma das memórias mais impactantes relacionadas às fragilidades do sistema prisional foi o Massacre do Carandiru ocorreu no Brasil, em 2 de outubro de 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na o, causou a morte de 111 detentos.

Em frente a porta do quarto de custódia que geralmente fica com a porta aberta que de um lado dá para os leitos dos homens em privação de liberdade e de outro a enfermaria da unidade de internação, ela diz em alto tom de voz, gargalhando e apontando para a sala com dois jovens internados: “Ah, tu é o que trabalha nos dois Carandirus, né?” (dois Carandirus dizem respeito ao quarto de Custódia dos dois hospitais de trauma de Porto Alegre: Hospital Pronto Socorro e do Hospital Cristo Redentor)

“Na cabeça deles (profissionais de saúde), o cara internado no quarto dos custodiados é bandidão, mega perigoso, fez o diabo, mas na real é um chinelão, é um bandido qualquer, muitas vezes roubou alguém para comprar droga porque é dependente químico”. (agente da SUSEPE do Hospital Cristo Redentor)

“Não há do que reclamar, não há distinção de tratamento dos profissionais de saúde, eles são ótimos, nós queremos desmanchar essa noção de que o profissional é preconceituoso. Claro que atender as pessoas nessas condições não deve ser muito fácil, então não há muita conversa. Alguns até falam para o preso, às vezes: sai dessa vida, tenta te cuidar agora. Mas a gente ri porque o profissional vira as costas e eles nos dizem: vou matar, vou roubar, fazer e acontecer.”

De Tigre passamos a outro termo guarda-chuva para a segurança pública. O que seria Tigre, antes é Suspeito e, dependendo do contexto de incriminação que ocupa, passa a ser Chinelo/Vagabundo. Algo retomado na fala da profissional de saúde sobre o Tigre, se transpõe para a lógica moral da segurança pública: “parece bandido, mas nem sempre é.” Esse sim, é Suspeito.

Quando o soldado da brigada que conheci na sala de espera da emergência aborda pessoas na rua, ele o faz baseado em certas escolhas morais. “É o jeito deles olharem. Olham pra ti com medo, arredios, devem estar escondendo algo. Ou ficam olhando pra trás para ver se tu já passou. Tu fica especialista em pegar os tipos certos.” Depois diz: “pegamos muita faca, arma, documento roubado nessas horas. É gratificante quando podemos devolver algo à vítima. O carro, o celular, a carteira.” Ao nosso lado, na sala da espera de emergência, um garoto negro, de boné, sentado na cadeira de rodas, foi reparado tanto por mim como pelo soldado e talvez por isso nada acerca do tipo de roupa, da cor da pele, da classe social poderia estar explicitamente envolvido nessa escolha dos tipos a serem abordados. Perceber as

valorações morais que produzem determinadas escolhas é um desafio num espaço em que qualquer sigilo é impossível, em que o espaço vital dos sujeitos é constantemente borrado.

No entanto, como toda norma, há quem escape da nuvem de mistério de quem muito faz, mas nada pode dizer sobre. O território que produz homens de verdade é sagrado: a brigada militar. A maioria dos policiais militares zelam pela instituição com a cabeça ereta e os olhares de canto desconfiados, as palavras contidas e, por vezes, monossilábicas, à pesquisadora. Até que um dos policiais militares, que será retomado em outros capítulos pela força de suas narrativas, denuncia a escolha dos Suspeitos. Esse jovem da brigada militar, praça72 de uma parte da cidade narra a cena em que foi interpelado por um “vendedor ambulante”:

- Porque vocês só abordam negros?

- Porque a brigada é muito racista e acha que todo homem negro que anda na rua pode ser um criminoso.

O trabalhador informal fica sem reação, surpreso com tamanha sinceridade da resposta. O soldado diz que há muitos homens brancos envolvidos em atividades ilícitas, mas os colegas olham mais para roupa e cor da pele do que para o comportamento da pessoa.